quarta-feira, outubro 29, 2008

Simples, leve e doce

Para quem ainda não sabe, andamos numa altura do ano muito especial em Coimbra. É época da festa das latas, a ocasião que sucede as praxes e que marca portanto o início do ano académico e da recepção dos caloiros (tratados por alguns de "animais") no meio.
Mas festa das latas por quê? Iriam perguntar os senhores que nunca ouviram falar nisso. A coisa toda começou por conta de se comemorar nessa época também o final tardio do ano académico anterior, quando quem estava para chumbar vazia os exames de 2ª época e no último minuto conseguia passar. Daí saiam os estudantes a partir da Faculdade de Direito para as ruas da Alta com panelas, latas e tudo quanto houvesse nas mãos para comemorar aquilo.
Hoje em dia, entretanto, é mais porque no dia do cortejo amarram-se latas aos pés do caloiro para que toda gente saiba que lá vem o dito senhor.
Ontem foi esse dia, o esperado desfile dos caloiros. Fantasiados das coisas mais engraçadas, sempre a obedecer as cores do curso e a partir da cidade universitária, foram descendo as ruas, passando pela Praça da República, depois a Avenida Sá da Bandeira, sempre em direcção ao rio Mondego, para serem baptizados!
Os doutores é que comandam, como tem de ser. Cada caloiro tem um doutor como padrinho que portanto deve zelar pelo novato. Havia doutores, entretanto, que levavam seus caloiros à coleira e o fulano a rir-se daquilo como se fosse a coisa mais engraçada do mundo! Outros marmanjos com meias-calça ou mesmo de tanguinha, apesar do frio brutal da tarde!
Toda a gente a descer como uma onda em direcção ao rio. Também lá fomos nós um pouco embalados naquilo e muito bem abraçadinhos, no melhor espírito académico!
Aos colegas do direito até foi doada uma moeda de 20 cêntimos... e para rebater a fome, um saquinho de pipocas doces... quanta doçura!
Ao pé do Mondego, uma grande friagem, mas digamos que o pessoal já se encontrava bem "aquecido" e assim foram descendo as escadas que iam mergulhar nas águas. Os caloiros e os veteranos. Aqueles com seus penicos, estes com seus sorrisos. E faziam lá os baptismos, escolhiam nomes, faziam festas. O que vale no fim são as amizades que se cria, eis o propósito original e mais bonito das latadas: a integração dos mais velhos com os mais novos, os vínculos de amizade, a confraternização.
Tudo muito verdadeiro e por isso muito simples, muito leve e muito doce, como a vida deveria ser.

terça-feira, outubro 21, 2008

Ajuda-me a perceber

Há qualquer coisa a pairar sobre as casas da Alta de Coimbra.
Esse sítio tão especial onde eu moro e onde até os tijolos das casas sabem recitar poesia, do tanto que vêm ouvindo e testemunhando ser vivida no decorrer dos séculos, parece tomado por qualquer coisa boa que não se sabe bem o que é, ou ao menos alguns de seus moradores parecem bastante afectados por ela.
Um exemplo mais tangível desse evento, digamos assim, seria o das senhoras da rua da Matemática que sempre foram simpáticas comigo quando lá passo de manhã para ir à Universidade. Nesses últimos tempos, entretanto, tem sido mais que simpáticas. Andam a dizer-me: "Bom dia, lindo menino", e eu a responder sempre: "Bom dia, senhora. Então o gatito por onde anda?", digo pra disfarçar porque fico constrangido com elogios de estranhos, chego mesmo a não gostar e em muitos casos fico ofendido por saber que a pessoa não tem fundamento para ter aquela opinião, mas no caso dessas senhoras é capaz que me leiam nos olhos essa beleza nova que há em mim e que nem eu mesmo compreendo bem... daí não fico ofendido, mas não deixo de ficar surpreso com a perspicácia delas. Afinal devem ter aprendido com seus gatos ou vice-versa.
Todos aqui tem gatos... digo os residentes de facto, não os estudantes. Vivem os senhores idosos, casais ou irmãos solteiros, com seus gatos pelas pernas a pedir uma festinha a viver suas vidas simples à sombra da aparente ausência de casais novos e de crianças na vizinhança. Os pobres dos gatos devem fazer as vezes da pequenada no que toca às brincadeiras e à alegria.
Nunca vi uma só criança a correr pelas ladeiras da Alta ou a brincar por aqui. Hoje de manhã, entretanto, vi um infantário e fiquei bastante admirado, afinal existem crianças! Mas vivem bem escondidinhas, ninguém as vê. Passam despercebidas como eu achei que passava por entre a gente toda até ser descoberto pelas senhoras da rua da Matemática.
Qualquer coisa se passa na Alta de Coimbra.
Hoje já sei que há crianças e que há esperanças e que em meio a tanta poesia, Deus do céu... não pode haver medos e deve haver alguma coragem, pois o que somos e sentimos verdadeiramente comunica-se mesmo quando queremos estar calados.

quinta-feira, outubro 16, 2008

Galiza do meu coração

Estive na Galiza por alguns dias na semana passada e tive o prazer de conhecer Vigo e Santiago de Compostela. Que belo o país é aquele que, ao norte de Valença, parece entretanto ainda ser Portugal na língua, no trato e na beleza da gente.
Em Vigo cheguei já curioso de conhecer a baia e reimaginar as batalhas com os corsários que volta e meia tentavam saquear a cidade! Um cheirinho de mar para todo lado, o porto, a Praça da Pedra, a Rua do Príncipe, os Jardins de Portugal e o Parque Castro com sua vista estonteante para a baia... momentos docinhos e bons.
Levou-me o acaso até Santiago de Compostela, eu que era para ter ficado mais ao sul mas que sem querer quando dei por mim estava lá.
Na praça do Obradoiro conversei com os peregrinos que percorreram o Caminho de Santiago, a antiga rota de peregrinação da Idade Média cujo destino era aquela mágica cidade e sua catedral.
Gente com o coração pleno de esperança e fé, a contar suas estórias fantásticas, das curas que receberam, das dívidas que conseguiram pagar, dos amores que encontraram... E estavam todas lá para agradecer! Nada mais bonito que ser grato pelo bem que nos fazem... e assim, fiquei amigo dos peregrinos instantaneamente! Eu que tinha peregrinado da estação de comboio até a praça, não tendo feito assim grande esforço, mas que participei daquela beleza por também ter comigo esse sentimento de gratidão. Que Deus ilumine aquela boa gente.
Os galegos em si também, como dizer isso senão directamente, são pessoas doces e divertidas! Como foi boa a estada na residência universitária e os concertos no fim de semana, toda aquela boa gente, tão bem disposta a esvaziar seus copos da Estrella Galicia!
De volta a Coimbra, as lembranças da Galiza não me deixam um minuto sequer...
Maravilhoso acaso, desses que fazem a vida bela, deu-me a chance de conhecer a fabulosa Catedral, praças, ruas, largos, parques e jardins de Santiago... Em Vigo o doce encontro com o mar do norte e a vista da baía e do porto... uma terra feita de sonho, onde tudo guarda uma ordem perfeita e tudo tem bom aspecto, de uma doçura e brilho que engrandesse a Galiza e que fez-me imensa impressão e deixou no coração a vontade de um dia lá voltar.

quinta-feira, outubro 09, 2008

Pela grandeza de Portugal

As salas de aula da Faculdade de Direito de Coimbra são dignas de serem frequentadas por príncipes. A decoração manuelina de forte traço ainda barroco dão ao lugar um ar de opulência que é impossível negar. Os edifícios do complexo que se tem após a passagem pela Porta Férrea são em si a assumpção material dessa grandeza: generosidade nos espaços, sobriedade nas formas, silêncio austero a imperar pelos lados todos e no pátio o busto de um benfeitor. A faculdade de direito incorpora sua autoridade sem nenhum pudor: faz e acontece, manda e pode.

Já há muitos séculos a Faculdade de Direito de Coimbra vem servindo a Portugal e ao mundo através de sua excelência de ensino, congregação da elite intelectual portuguesa e distinta produção científica que muitos agradecimentos deve a paz social e Justiça portuguesas, européias e ocidentais.

Eu, que frequento há pouco tempo esse ambiente, mas partilho do pensamento que cá impera há muitos anos, tenho aprendido muito e ficado sempre surpreendido com essa grandeza. São inspiradoras e plenas de certeza na missão fundamental do Direito enquanto instrumento da Justiça, as aulas do Doutor Gomes Canotilho. Este senhor que é um dos maiores vultos do Constitucionalismo mundial mas que trata seus alunos com uma humildade e gentilza que por vezes falta aos mestrandos da faculdade... Com mais propósito, mesmo porque é da minha área de especialização, são as aulas de Direito das Sociedades do Doutor Coutinho de Abreu, plenas de uma inteligência e racioncínios afiados, um enfoque prático e desafios jurídicos que todo o tempo colocam-nos numa posição delicada, mas sempre voltada a provocar uma resposta relevante, um pensamento de valor, alguma produção que vá dar a volta nas trafulices amplas e necessárias que o legislador nos deixa para fazer aplicar, próprias da amplitude do Direito Privado. Isso para citar apenas dois docentes de um universo privilegiado em termos de recursos humanos.

Talvez por essa opulência toda, vinda do passado para dar num presente de prestígio e excelência, exista no ar um certo “não saber o que fazer ou como fazer” e um desconforto pelas mundanças que o futuro vem impondo, a dizer: o processo de Bolonha e o sistemático corte das verbas públicas para manutenção da Faculdade de Direito.

Trata-se, primeiramente, de uma insanidade mal planejada e mal feita e, no segundo caso, de uma imbecilidade que não merece mais aprofundamento que sua própria constatação.

O processo de Bolonha alinha-se com as demais políticas de sistematização comum que vem tomando corpo na União Européia. Pensou-se, muito impulsivamente talvez, que calharia bem dar à Europa toda um mesmo sistema universitário voltado marcadamente para a produção de mercado e que proporcionasse aos discentes uma oportunidade de experimentar activamente o ambiente do mercado de trabalho. Fica, desde já, a academia subordinada às necessidades do mercado de consumo, ela que nunca teve de abaixar a cabeça a ninguém, vê-se dobrada frente a essas incongruências.

Seguindo esta linha, quis-se trucidar a licenciatura e o mestrado, fazendo de ambos "ensino profissionalizante". Licenciatura voltada para produção de mercado e mestrado profissionalizante: mas daí pergunta-se: qual o propósito dos cursos de especialização latu-sensu?

Não houve debates com a comunidade universitária (que era quem afinal cabia mesmo opinar da relevância disso tudo), não houve período de adaptação e nem tampouco planejamento para implantação. Foi imposto, tal qual quer e faz um ditador, sem se importar com consquências.

O resultado recente dessas políticas tem devastado a Universidade de Coimbra. Não apenas na Facultade de Direito, como também na Faculdade de Medicina e muitas outras faculdades e departamentos. Impera o “não saber para onde ir”, uma confusão que aborrece e prejudica os alunos e professores: horários que não se definem, entumpimento do curso de mestrado, erros que não tem fim por parte dos serviços administrativos das faculdades...

Lado outro, como se não bastassem as irresponsáveis políticas comunitárias adoptadas sem a devida reflexão quanto à utilidade e necessidade, também temos os sistemáticos cortes orçamentários para a manutenção das universidades públicas.

Essa questão realmente não faz nenhum sentido. Afinal pretende-se cortar recursos às instituições responsáveis pela geração da mais importante mais valia nacional: os seus recursos humanos. São as pessoas que vão querer trabalhar por Portugal, fazê-lo maior e melhor, mais próspero e grandioso. São portanto as universidades portuguesas o lugar onde essas pessoas vão se formar enquanto profissionais de suas áreas e vão se animar a se empenhar em fazer cá suas vidas. Essa política orçamentária, entretanto, parece apontar para outra idéia: paga-se caro pelo ensino superior e em troca recebe-se o mínimo possível.

Enquanto até os anos de 1970 viu-se uma emigração para outros países da Europa e para o Brasil, feita mesmo pelas pessoas das aldeias e com pouca ou nenhuma instrução intelectual, hoje sofre o país outra onda de emigração: a da sua população educada. Vão-se todos procurar em França, Inglaterra, Alemanha ou Suíça os empregos que cá não encontram... Mas não precisava ser assim.

Mais que investimentos, para a grandeza de Portugal depende uma inabalável fé no seu destino manifesto, na sua força enquanto nação, na coragem de acreditar no país começando por primeiro acreditar em si mesmo!

Talvez seja preciso vermos um pouco os exemplos que nos dão o pessoal que está à frende da Faculdade de Direito: mesmo com todas as adversidades possíveis e imagináveis, mesmo rodeados de más perspectivas e de impiedosos lobos a salivar, não seriam nunca capazes de capitular às dificuldades: sabem que a verdadeira grandeza não sede, não perece e não diminue, mas resiste, regenera e renasce por ser quem é.