domingo, dezembro 28, 2008

O verão do ano que vem

Mallu e Marcelo

Um ano que se vai é como um trabalho que se termina: seu começo, seu desenvolver e o seu concluir parecem unidos sob o mesmo véu que, uma vez levantado no dia 31 de Dezembro, deixa à mostra o que significou a vida naquele espaço de tempo: os projectos, os sonhos e perspectivas, as incertezas que agora se confirmaram para o bem e para o mal.
Dentre outras coisas, vou me lembrar sempre de 2008 pelo lançamento do primeiro disco solo de Marcelo Camelo, dos Los Hermanos. O "Sou" é um bocado inclassificável, mas há ali bossa nova, pop rock, marchinha de carnaval e o gênero "um banquinho e um violão" de MPB.
Numa das faixas do disco, logo ouvi uma vozinha feminina que me chamou muito a atenção: era bem afinada, corajosa (lembra até a Amália na coragem de imposição da voz) e infinitamente doce. O nome da moça é Mallu Magalhães e embora eu nunca tivesse antes ouvido falar dela, rapidamente passou a fazer parte das colectâneas que ando a escutar e em muito contribui para a alegria deste rapaz.
O convite do Marcelo para que a Mallu participasse do seu disco reverteu, como foi o meu caso, no encontro de quem gosta dos Los Hermanos com essa moça, mas mais que isso, penso eu, resultou, um pouco mais à frente, no romance dela com o barbudo.
O detalhe que os poderia afastar é que a moça tem 16 anos completados há pouco e o senhor Camelo já caminha para os seus 31. No coração, no entanto, são muito próximos... como ambos compõe o que cantam, é possível ter uma idéia de como pensam e as coisas convertem para os mesmos lados, assim como se converteram seus abraços.
Duvido muito que o Marcelo esperasse por algo assim. Grande romântico que é, o Camelo é dos que já viveram essas cenas amorosas mais intensamente e assim costumam vestir luvas antes de tocar alguém. A Mallu, entretanto, é a própria simplicidade, senso de atitute e beleza, é a musa do poeta, pequena e incorrompida, e por isso mesmo há ali aquela reciprocidade que faz as coisas darem certo, pois como bem dizia o nosso Vinicius de Moraes, nós não fazemos amigos [ou amores], mas sim reconhecemo-los.
2008 para mim foi isso: o acaso inesperado, a beleza da vida a se desenhar com o passar dos dias, a fortuna que é reservada aos que procuram ventura, mais que aventura e confiam que estarão preparados para o que quer que venha.
Nessa perspectiva e por estar contraído de frio, (pois escrevo de frente para a janela aberta do quarto, a tirar proveito da linda vista), sobe pelas entranhas o desejo do verão do ano que vem, numa sanha tão doida que só pode ser explicada pelo conforto de vestir roupas mais leves, de ver mais cores, de estar mais à vontade pelas ruas, entre outras múltiplas e quentes vantagens.
O inverno tem seu charme (menor que o do outono, de certeza), mas nos priva de muita coisa, diria até que é uma estação menos sociável, não favorece muito os convívios, senão indirectamente (é a época que se encontram nos supermercados as cervejas pretas ou stouts, que embora não sejam como as britânicas já são melhores que o resto).
A esse desejo dos dias quentes, soma-se saber o quão ensolarada anda a linda América do Sul, seus vales e montanhas, rios e praias, suas cidades e aldeias, inundadas de sol, calor e boas promessas: o sul americano é um optimista por natureza e para esse espírito contribui muito a fartura de beleza e calor que o circunda por toda a vida. Ademais, diga-se que os últimos três verões desse que vos escreve foram tipicamente ingleses: nebulosos, cheios de chuva e malogrados dias de sol.
Há uma fome de calor, de sorriso, de bem-estar, de respirar fundo, há mais que tudo a esperança na renovação de tudo de belo que envolve a vida, os amigos, os lugares, a fé, o ideal, as lutas.
Lembro-me ainda vivamente do soturno Finsbury Park no inverno, as caveiras saltadas para junto do pêlo dos esquilos, as folhas apodrecidas na calçada, assim como dos fogos junto ao rio Tâmisa na noite de fim de ano, quando aquele milhão e tal de pessoas, originárias de todos os cantos do mundo, uniram-se num (mais ébrio do que fraterno) abraço à espera do que viria em seguida ao espetáculo pirotécnico. Nada mais substituiu as luzes do que o fumo. De tudo, resta no coração mais o caminho do que o destino.
O fumo a encobrir o horizonte do futuro parece o mesmo que aquele feito do queimar de roupas do falecido: de onde se acaba uma tarefa já adiante toma forma uma outra que, ano a ano, aprendi a chamar de "o verão do ano que vem".

sábado, dezembro 20, 2008

A esperança do Natal

Da varanda do Instituto Justiça e Paz, acompanhado da chícara de café e imerso num grande silêncio, vejo as luzes ao longo do rio que corre lá em baixo e o frenesi de esperanças da época do natal.
Muita gente viaja. A maioria para ir ter com os entes queridos, outros para algum sítio exótico, para fazer um passeio, para ignorar o feitio familiar do natal. É possível que esse seja o sentido mais apropriado para se perceber essa altura do ano, aquele que se refere à família.
Evidentemente, foi no dia 25 de Dezembro que Jesus nasceu e isso é o que é celebrado, natal é um adjectivo para nascimento. Tivemos nesse dia a chegada do Salvador.
A alegoria do nascimento numa manjedoura, da grande solidão de Maria e de José sem saberem como aquilo iria correr e, ponto alto, a circunstância do menino ter nascido saudável e bem constituído, dá-nos a perfeita idéia do que é chamado a Sagrada Família.
Embora o homem e a mulher quando se unem, seja lá através de que cerimônia for, formem uma família, a mesma só é concretizada mais amplamente quando dos frutos dessa união, ou seja, os filhos. No dia 25 de Dezembro do ano 1 Jesus veio enlaçar aquele amor comum de Maria e José, embora não sendo propriamente filho desse último, o que não importa nada no fim das contas.
Nesses termos, o dia 25 de Dezembro é o dia da família, o dia do amor familiar, o dia em que as pessoas devem lembrar-se de onde vieram, de quem os amparou na débil idade de criança e os deu valores e formação, outros devem lembrar-se alegremente da responsabilidade de prover um lar com os mesmos valores e constituído nos mesmos princípios.
É tempo de festejar uma das mais santas instituições da nossa civilização e que, embora venha há muito sofrendo os duros golpes do individualismo exacerbado, ainda existe e, em muitos casos, vigorosa e lindamente.
Por conta do amor das famílias do mundo é que devemos ter esperanças. Nada é capaz de nos humanizar mais, de nos tornar mais próximos da caridade e do espírito de dever do que a perfeita compreensão da importância da família e do seu significado: eis a grande prenda que se pode dar e receber no Natal e durante todo o ano.
Dentro dessa percepção das coisas é que desejo aos meus amigos e familiares um Bom Natal e ano novo com muita saúde e alegrias.
Bebam e celebrem por mim.

sexta-feira, dezembro 05, 2008

Gepeto: faz para mim essa mulher

Eis a frase escrita no paredão em frente à entrada do jardim botânico e já a envelhecer junto de todas as outras coisas que sofrem com o tempo: "Gepeto: faz para mim essa mulher".
Quem a escreveu não assinou e é melhor que seja assim, esse desejo que não se comunica a ninguém e que quando é feito, é feito no segredo do anonimato.
Quando o Gepeto fez o Pinóquio foi porque queria ter um filho. O velho marceneiro via os bambini a correr felizes pelas ruas e a ele a solidão de uma casa vazia. Depois de se esmerar e terminar o mais bonito de todos os bonecos de madeira já feitos, chorou frente a sua obra ao sentir no fundo da alma a sua miséria, e deu-lhe o nome de Pinóquio, lamentando-se que não fosse que um inanimado objecto.
No decorrer daquela noite que se seguiu, entretanto, coisas se passaram. Uma fada madrinha apareceu, a Fada Azul, e sensibilizada com as lágrimas do velhote, resolveu dar vida ao boneco. Com um toque da varinha mágica, Pinóquio veio à vida, falador e deslumbrado com tudo. A fada explicou-lhe que ele era filho de um homem muito bom chamado Gepeto e que deveria obedecer-lhe e ser um bom menino, do que o boneco concordou entusiasticamente, prometendo ainda que não iria nunca mentir, sob pena de ter o nariz espichado cada vez que o fizesse.
Na manhã seguinte Gepeto foi à oficina logo cedo e, para sua surpresa, Pinóquio estava vivo, a dar saltinhos animados e muito bem disposto. Uma grande alegria invadiu o coração do velho senhor, como a chegada de uma primavera por muito esperada, a vingar um desolador inverno que lhe deixara vincos no belo coração, mas que não o massacrara a ponto de virar-lhe para a maldade. Alegrou-se tão sinceramente como uma criança experimenta a alegria, sem dela suspeitar nenhuma ponta de futura mágoa. Pinóquio adorou seu paizinho, sempre lembrando de sua promessa à Fada Azul.
Logo surgiu na alma do boneco vivo, entretanto, um grande desejo de ser um menino de verdade - não mais andar descalço como se de sapatos estivesse, não mais olhos pintados crispados, mas sim carne macia e pele morna, cabelos ao vento e uma linguinha para sentir o sabor das coisas do mundo. Sim, o mundo. Pinóquio ia desenvolvendo uma gigantesca curiosidade sobre as coisas do mundo, a primeira fonte de seu triste fado. O velhote, entretanto, não tinha fantasias tolas a lhe tirar o foco da situação das coisas: estava feliz em não ser mais só e se o Pinóquio era só um boneco de madeira, pronto, tal importava pouco ou nada... o importante é que tinha saúde!
Vê-se que mais que vida ao boneco de madeira, a fada madrinha deu-lhe uma alma humana.
"Gepeto: faz para mim essa mulher", não é exactamente uma encomenda de uma mulher toda gira e bem disposta... (embora não haja nada de errado nisso). É, antes e com muito mais razão, o desejo de ter ao lado a que nos perceba completamente, a que mereça aquele amor mítico a que os poetas louvam como incondicional, coroado na amizade, ratificado pela intensidade recíproca, o único que enobrece a condição humana e da a ela sua verdadeira e mais bela razão de ser e existir.
Será que esse profundo nível de entrega é mesmo possível quando o ouro de tolo que nos é apresentado como valor maior (o fugaz, genérico e obtuso termo "felicidade" pode designar esse prémio) manda não dar muita atenção ao que lhe compromete?
Não consigo conceber nada a não ser essa profunda e incondicional fé no sentimento pela pessoa que se quer para estar conosco como digna de ser chamada "amor". Todo o resto são expressões menores ou simulacros dele, tentativas de corações perseverantes que vão por vezes perecer, ou um desporto mórbido praticado por tolos que gostam de mentir para os outros e para si mesmos.
Nesse nosso mundo de tão pouca fé, entretanto, ainda existem bons Gepetos a acreditar no amor verdadeiro. Umas inventivas e generosas pessoas que querem ir além de si mesmas e que deixam o mundo tão melhor do que era antes delas existirem.
Quanto aos mentirosos, embora não tenham o nariz na cara crescido para desmascarar seus falsos, têm na alma alguma coisa diminuída... Encarrega-se o tempo e as próprias circunstâncias da vida de dar-lhes a volta, dando-lhes miséria pela miséria que aos que neles confiaram deram, privando-lhes da grande alegria que é a participação da poesia na coragem no amor, relegando-os a uma vida sem nortes maiores que os pequenos fins egoísticos e plena de uma sólida e definitiva solidão.
Por isso, meus bons leitores, cuidadinho com isso de gostar de alguém: muito zelo, muita paixão e muita, mas mesmo muita coragem. Nada pelo que se vão arriscar na vida vale tanto.