terça-feira, outubro 26, 2010

Hey, you!


Ando um bocado farto dos formatos repetidos, daí penso que é melhor achar que são reinvenções originais e inocentes do que foi feito antes e, por alguma sorte incrível, repetiram-se em condições semelhantes sem ser iguais no todo, já que guardariam algum frescor novo, algum brilho de descobrir por si.

Já há muito tempo ouvi dizer que a praticidade garante-nos paz de espírito, mas em verdade, os práticos são chatos e vão dar sempre ao mesmo: os resultados. Mas isso importa pouco e quem o sabe não tem paciência para explicar aos chatos.

Pensemos, no entanto, num caminho fácil: resultar é alcançar o que se procura, daí fica menos objetivo dizer-se que um resultado é um sucesso específico, já que até no fracasso pode se alcançar um resultado. Ora bem, isso até faz sentido, mas não acho que um bom tecnocrata ficaria feliz com essa perspectiva. Vamos a mais.

Doutra feita, vamos às nossas certezas e ao método socrático (relativo ao filósofo grego, não ao aldrabão de carreira). O que é bom e o que é mau? O que é certo e o que é errado? Aonde se quer chegar? Por que se vai até lá? Acho que cada um responderia de uma maneira diferente a cada uma dessas perguntas e é por isso que os resultados são conformes a nós mesmos e não a nenhum padrão pré-defenido que vá fazer feliz ao estúpido da esquina que vende um creme milagroso a ajudar o êxito das performances.

Nesse mundo que se vai perdendo à massificação do comportamento e da arte, há muita beleza, há sim que eu sei. Lá ainda se encontram os nossos poetas mortos, a pintura viva sob uma tela morta, o teatro grego dos dramas e das comédias da natureza humana e nossa verdadeira grandeza também lá está, homenageada por toda arte. Mas onde estamos nós? Ah, sim, pois é, já quase me esquecia. Estamos a perseguir objetivos...

E por viver assim perdidos, vamos um dia morrer desencontrados de nós mesmos e dos outros e sem nenhuma fatalidade, ser esquecidos.

Mas não é preciso que seja assim. É capaz que a liberdade no coração e no pensamento possa conduzir a uma boa vontade maior do mundo. E assim ele poderia nos oferecer aquilo que a cultura de massa nos incita a arrancar dele.

terça-feira, outubro 12, 2010

Viva o Rei!

...........................Estátua de Dom Pedro IV no Porto

A forma republicana não é ruim, na sua essência, nem os princípios republicanos são ruins. Mas quando falamos dos Estados nacionais, ou seja, dos países que reúnem um só povo, com uma identidade étnica, religiosa e linguística, não acredito que a república seja uma forma de estado melhor que a monarquia.

Antes de mais, porque a monarquia não é oposto da república e dos seus princípios. Na monarquia constitucional o soberano não é monarca, mas sim o povo, a quem o Rei representa. Com mais legitimidade que qualquer presidente, o Rei deve defender os valores nacionais, a sua identidade, o seu destino manifesto. Assim, a monarquia não é anti-republicana, mas sim mais republicana do que a república, uma vez que também abraça o respeito pelos ideais de igualdade entre os homens e da boa gerência dos dinheiros públicos, com a vantagem de não trazer em si a pressa das realizações com fins popularistas ou a endêmica corrupção da república.

Em Portugal e no Brasil instalaram-se repúblicas tenebrosas, assentadas na força bruta e na ignorância do povo, assassinaram um rei e expulsaram um outro que tinha servido o país por 50 anos para que morresse quase abandonado num hotel de Paris.

Nos dois lados do atlântico, a república serviu aos grupos sociais emergentes para apossarem-se do poder do Estado sem ter que dar satisfações ao fiscal real que não permitiria os seus abusos e desmandos. Foi assim que o século XX será sempre lembrado pelas estúpidas ditaduras que forçaram Portugal e o Brasil aos grilhões da obscuridade e da censura.

A forma republicana foi, portanto, um meio eficaz para iludir os espíritos que pediam mudanças mas sem, de facto, promovê-las. No Brasil tivemos o caso exemplar de Rui Barbosa, que chegou a discursar a favor da república, mas que depois de implantada à força e sem participação popular, viu que nada mudaria, pois os problemas do país não estavam no seu monarca, mas sim em questões estruturais que teriam de ser enfrentadas com trabalho e não com um covarde golpe de Estado.

Há poucos dias vimos o deprimente espetáculo que foram as festividades pelos 100 anos da república em Portugal. Mas festejar o que? As ditaduras que vieram a substituir a democracia dos tempos dos reis? A falta de liberdade de expressão que foi implantada para calar os que contestavam os desmandos? A corrupação que premiava os filhos dos chefes dos partidos e os amigos dos poderosos do aparelho estatal? Afinal, a república vem custar ao povo muito mais, incalculavemente mais do que a monarquia, com o ônus acrescido da sua ilegitimidade.

Todo o quadro fica ainda mais triste de se admirar quando recordamos que Portugal é o mais antigo Estado nacional do mundo, fundado sob a coroa de Dom Afonso Henriques, que conquistou essas terras a lutar cara a cara com os mouros invasores.

Assim como Barbosa, um dos mais destacados intelectuais brasileiros de sempre, se retratou e passou a defender a monarquia pelo resto da sua vida, também é hora desta multidão de indiferentes acordar para a realidade e banir de vez essa escumalha republicana cujo único e perene ideal é espoliar o dinheiro dos impostos ao seu próprio bem e dos seus comparsas e parentes.

Abaixo a república!

Viva o Rei!

sexta-feira, agosto 13, 2010

O poeta e eu


No fundo de mim mesmo vive o poeta, e vivi eu até há poucos dias sem o saber ou suspeitar a medida desta realidade.
Embebido no sonho, lá dentro do mundo fantástico que os sentimentos e a razão constroem para nos fazer quem somos, estive com o poeta maior para lhe criticar a arte, na infinita coragem de instrumentalizar a vida para dar passagem à poesia: o oposto do que toda a gente faz. E nesse aproximar da destruição, se calhar, é que existia a sua magnânima grandeza.
Convidou-me depois para almoçar em sua casa, e na intimidade era afinal tímido e precisava de de muito gin (por acaso não me lembro de ver nenhum whiskey) para sorrir e brincar. Eu era ali um estranho e nem compreendi bem por que me haveria de ter feito o convite, mas depois, a pouco e pouco, foi bem vista a razão: mostrava-me ele, o poeta, o caminho meu que já foi o dele e eu então percebi o porquê das decisões e num rompante imenso de lirismo, vi os rostos de toda a gente que por pouco que fosse já me tocara a alma.
O dia amanhecido foi uma identificação das novas certezas, mas da maneira doce que a falta de obrigações ou imposições conhece.
Vi com mais vigor os traços do meu avô materno nos meus próprios, no meu cabelo e no meu olhar e senti fundo as tradições daquela raça que em mim vingou mais que nos outros e que faz lembrar tempos que já vão tão longe e quando era preciso muita coragem, muita força e uma resistência brutal para que a vida não fosse um exercício de submissão que levava à morte.
Já então nenhuma das minhas decisões parecia mais despropositada e nem havia saudades, nem raivas e nem remorços de nada e nem de ninguém. Apenas uma lembrança de mim mesmo sempre mais clara e que eu não posso, mesmo agora, deixar de estranhar de todo.
Seja lá como for, a simplicidade e a timidez do poeta mostraram-me um caminho que sempre tive comigo, mas que nunca tinha tido a audácia de fazer abrir-se diante de mim, mas que está aberto para a frente, para o futuro.
A bênção, Vinicius.

quinta-feira, junho 17, 2010

Olhos nos olhos

Não diria que Deus é vingativo, como muita gente gosta de dizer. Diria que as coisas que fazemos voltam para nós mesmos, as boas e as más. Antes de acreditar que a infinita bondade e o infinito amor que é Deus são responsáveis por essas maçadas da vida, antes vale ver o caminho por onde se anda, especialmente aqueles sítios onde ao invés do sacrifício para o bem comum, foi visado só um interesse pessoal e egoístico, onde ao invés de esperança e fé, deu-se lugar ao oportunismo e a leviandade, onde a humilhação e a opressão impunham perseverança, deu-se lugar a uma desistência fraca e uma retirada em precipitação.

É um longo caminho por onde passamos, a nossa vida. Vejo-o nos gatos de rua que moram aqui em frente de casa. Se de manhã matam-se a miar pelo pequeno almoço trazido pela dona Fernanda, ao meio da tarde, quando vem o sol quente, desaparecem para algum refúgio fresco, suspeito eu, longe dessas paragens. Mas depois que o sol esmorece, voltam mansinhos a ocupar as suas posições de costume. Fazem da vida essa rotina de estar juntos, nem sempre a lamber-se, mas certamente sempre a contar uns com os outros. Um é chefe e dá as ordens. Os outros obedecem ou então levam na cabeça, que é para aprender de uma vez.

Na sua charmosa bestialidade, os gatos em muito mostram o nosso comportamento (com vantagens notáveis, é verdade: a liberdade, a graça, o desprendimento, a sutileza, etc.). De certo que ignoram de todo a existência de Deus e no alto da sua consciência animal, o certo e o errado levam ao limite do convívio social e da sobrevivência na sua sociedade patriarcal. Todos se submetem as ordens do macho dominante e cada um tem uma função nessa sociedade, porque sabem que juntos tem chances melhores e porque são animais sociáveis, também é verdade.

Ser "esperto como os gatos" talvez também passe por aí. Saber que os verdadeiros vencedores são todos "team players", ou seja, não há êxito verdadeiro quando se mira só o próprio umbigo: vão faltar apoios, vão faltar motivos, vão faltar alegrias.

Sintomático de que o homem (e também a mulher, por que não?!) deve voltar-se para fora de si mesmo é esse magnífico evento: o mundial de futebol, ou a Copa do Mundo. Assim como os gatos que protegem-se uns aos outros, uns de alerta enquanto os outros dormem, também a equipa que vai vencer esse torneio contará com jogadores que salvaguardam as costas dos outros. O gato que conquista um belo petisco não pode tê-lo só para si: sabe que a boa nutrição do grupo é que vai lhe garantir boas performances amanhã. Também o avançado que não passa a bola para o companheiro melhor posicionado para marcar vai ter menos hipóteses de ver sua equipa sair vitoriosa.

Assim, o que se passa com os gatos, o que se passa com os futebolistas, passa-se com toda a gente, em todo o lado, da mesma forma. Põe a mente e o coração para fora de ti mesmo e vais ver Deus na plenitude. Não o Deus vingativo e ditador que os pagãos e ateus gostam de pintar, mas o Deus que é amor, caridade e verdade.

Mas se esse discurso filosófico-religioso, com alegorias a gatos e à Copa do Mundo, não te convence, segue o teu caminho reto dentro de ti mesmo, mas saiba que ele conduz a um destino torto.

sexta-feira, maio 28, 2010

Primavera do adeus


Já agora essas árvores cheias de folhas novamente, anunciam o que até aqui se escondia por detrás da primavera bem-vinda... o seu verdadeiro e cruel cariz de nunca mais em Coimbra não pode ser suspeitado antes da Queima das Fitas e da alegria pela volta do tempo de calor depois de tanto frio, mas ele sempre aparece, surpreendendo a todos em uma curva do caminho com um sorriso entredentes a dizer essa triste palavra que é "adeus".

Lembro-me bem das árvores assim, bonitas e tão vivas a encher o corpo da larga avenida Sá da Bandeira, quando conversava despreocupado na esplanada do bar do TAGV com o Celso, completamente inocente de que aquele estupor de vida era também a época do ano em que essas despedidas aconteciam e que depois, no grande frio que há de segui-la, são tão sentidas.

Facto é que já começou a temporada das despedidas. Já pelo meio do próximo mês volta ao Brasil um bom amigo, com quem convivo deste o meu primeiro mês cá nesta terra, e outros devem segui-lo mais à frente, restando sempre menos e agora percebe-se bem isso de não receber de braços tão abertos os que chegam - há no ar essa perspectiva de despedida repentida e o melhor é vê-los passar e sorrir e deixar como está.
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Uma nova (velha) vida espera por eles. Talvez o trabalho, talvez o retorno à universidade de origem, de todo jeito não será mais aqui. Esses que retornaram costumam sempre se lembrar com saudades de Coimbra e da "boa malta" daqui. Bem, eu sou um bocado saudosista para servir de parâmetro, mas é capaz que a recíproca seja verdadeira, ao menos em alguma medida.

Eu não sei, meus amigos, a verdade é que não tenho todas as respostas e nem sei se gostaria de tê-las. Mas duas coisinhas a respeito do assunto eu sei bem e vale deixar aqui para vocês: 1.ª só vá a um aeroporto se tiver de apanhar um avião, não acompanhe ninguém até o aeroporto, despeça-se noutro sítio (ou aprenderá a odiar os aeroportos de uma maneira irracional, embora não injustificada); 2.ª a primavera dos outros povos do mundo pode ser feliz, mas em Coimbra tem mais encanto, se calhar, pelo seu relativo desencanto inesperado de todos os anos.

Mais vale ir à rua e beber uns copos às "almas" dos que estão de partida e desejar-lhes o melhor, se é que isso é possível de desejar a um amigo que se vai.

quinta-feira, maio 20, 2010

Pedra bruta e envergonhada


Como um tesouro, de variedade e conteúdo, esconde-o a todo custo dos outros. Mas por instantes, quando vem aquele meigo e sorrateiro sol matutino, vê-se no jogo de luzes um sorriso e o explendor da beleza. Eis o segredo que traz em si e de que mal suspeita.

A toda gente, ao menos à gente com pudor, faz, por vezes, má figura, no entanto. Não é feio, mas anda por essas ruas no cumprimento de um percurso já gasto, pelas muitas gerações de estudantes antes dele, num triste desfile de fragilidades e maus hábitos...
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Grita e canta pela madrugada quando sobe do Largo da Sé Velha, já bêbado e desorientado, junto dos seus colegas, talvez amigos. Cantam a academia e cantam às gajas que passam... Mas por vezes, quando surge no pensamento um nome de mulher, aquela feição doce, surge-lhe também a lembrança do toque da pele macia dos bracos, e chora, como se o choro guardasse mesmo arrependimento ou servisse para expiar aquele sentimento que não podia de todo definir, ou não queria, mas que sabia bem que não gostava de sentir. E era aí que até as velhas da Alta guardavam os baldes d'água que já estavam prontos para lhe dar um banho de cala-a-boca...

Certos dias do ano, trajado e solene, fazia figura de galo pimpão com os colegas. Rufião de meia-tigela, deixava suas boquinhas às empregadas de mesa e pagava um carioca de 0,35€ com uma nota de 5€ dobrada de comprido entre o indicador e o dedo médio, com um sorriso difícil de descrever mas que passava longe, bem longe de ser inocente. Desfilava uma dignidade que não tinha e aproveitava a pose para pedir dinheiro emprestado e vender porcarias aos turistas.

Após uns 3 finos para refrescar (ou aquecer?) começava a contar suas histórias. Uma caixa de pandora de onde nunca se pudia prever o que iria sair! E os colegas que acompanhavam suas tramóias desde o primeiro ano bem sabiam que era tudo uma grande treta, mas ouviam na mesma, já que o distinto narrador confundia-se e inventava sempre coisas novas. Sabe-se lá como, no entanto, sempre se safava com uma ideia que fazia a malta rir e dar-lhe um tapinha nas costas.

Os profs. não eram tão seus amigos. Abusava da sua paciência, escrevia disparates, ia a orais depois de longas borgas... Até onde sei, já podia ter terminado o curso há pelo menos um semestre, mas não é caso para previsões... Deixem os livros descansadinhos - já se ouviu da sua boca roxa de vinho.

Os pais amam-no, docemente. Lembram-se do menino robusto e intrépido que na sua aldeia era conhecido por imitar lobos à noite, uma mania dele que os vizinhos nunca puderam esquecer e que em cada volta à casa, mesmo hoje, é relembrada com gozo - afinal, alguma desforra.

E é assim que corre a vida a esse rapaz que para mim pouco mais é do que um anónimo, mas que traz em si o segredo e a beleza inarrebatáveis da vida. Se em meio à sua grande confusão e estranheza às formas que lhe pedem a mão encontrasse a porta do mistério, talvez pudesse abri-la e dar numa sala onde a lição valesse, mais ainda que as outras, a sua máxima dedicação: encontraria dentro de si mesmo um sentido que, curiosamente, dá para fora... E, de repente, como uma brutal rajada de vento que muda o rumo de toda uma vida, os seus olhos perderiam o medo e a tristeza, a insegurança e o vazio, e mirar-se-iam na sua verdadeira grandeza.

sexta-feira, abril 16, 2010

À boa ventura

Vinicius de Moraes

Há pouco tempo foi o dia dos meus anos, que transcorreu em paz e em boa companhia. Com muito esforço e muito andar (a fim de reunir ingredientes e utensilhos) foi possível preparar o bolo de coco que em duas das minhas festas de aniversário de menino foi servido aos que tiveram a sorte de lá comparecer e me deixar umas boas prendinhas.

A receita, desaparecida com a confeiteira que tinha elaborado a iguaria de então, foi reconstruída com a memória dos meus cinco anos, a falhar um pequeno detalhe com relação à calda da ameixa (que faz da sobremesa um bolo molhado), mas fez-se festa na mesma pelos meus anos completados. Mas eu sempre fico feliz nessa data pela razão inversa: sempre acredito que vai haver ainda muitos e muitos anos a completar.

Quando se faz aniversário, acho eu, deve-se voltar o pensamento para o futuro, e não para o passado. Os futuros aniversários, os futuros presentes, as futuras surpresas, o futuro que guarda a vida, onde cada dia é diferente e embuído de propósito. Por isso é muito triste que uma pessoa complete anos e não tenha um bolo especial para repartir com os seus... Todo aniversariante tem direito a um bolo à medida do seu sonho.

Lembro-me vivamente (tanto quanto da minha festa infantil com bolo de coco) de estar em casa dos avós no dia dos anos do meu avô materno. Sujeito sério e discreto, é claro que nunca ligou para essas tolices, mas eu decidi que ele devia ter um bolo e fiz lá os possíveis para que quando chegasse a casa abrisse um sorriso de aniversariamente como se deve. E assim foi.

Também cruza o pensamento aquele lindo, doce verso que Vinicius escreveu para sua irmã Lygia nos dia dos anos dela, quando os dois eram ainda meninos, quando a poesia cumpria a função de um presente que o pouco dinheiro não permitia dar:

Com o aumento dessa nova estrela
Para a constelação de tua vida.

Um brinde, meus caros! E com vinho verde, que sabe a futuro. Aos anos a vir, de boa ventura, saúde e confiança nas nossas convicções, e também uma fatia de bolo de coco, que é para não deixar esquecer o sabor da alegria de descobrir o futuro.

terça-feira, março 09, 2010

Os meus tios que se foram

Contam-se poucos meses do passamento do meu tio-avô Domingos Ferreira Rios, homem da indústria, proprietário rural e apreciador da cultura cigana.
Acompanhei eu, e acompanhamos todos nós lá de casa, com pesar mas também com uma solidariedade de amigo o seu momento de descanso, após seus seguidos anos a lutar contra problemas de saúde e visível abatimento com que encarava o porvir.
Morreu na velhice, embora tenha tido a inusitada experiência de ser pai já velho, ele se foi tranquilo quanto ao futuro do seu pequeno Rafael. E tranquilos restamos nós, na fé de que a sua alma encontrou o bom caminho para Deus.
Esse pouco tempo que se conta da morte do do meu tio-avô veio a se encurtar de repente com a tragédia que se abateu sobre nós no fim de semana.
Era tarde de domingo quando, numa curva do caminho (esse tortuoso e surpeendente caminho que é a nossa vida) o meu tio Maximiano despistou-se para encontrar a morte às vésperas do seu 60º. aniversário.
Poderia aqui fazer relembrar inúmeros eventos da minha infância e juventude ligados ao meu tio Max. Poderia encher os vossos corações com esse luto que eu sinto e que em alguma medida tem também a serenidade dele. Mas vou dizer o pouco que significa muito.
Foi um homem bom. Nunca obrou o mal, nunca manipulou e nunca utilizou-se da sua posição para seu benefício próprio. Errou, sim, errou, como todos os homens todos os dias erram, mas fê-lo com o coração comprometido com a certeza de que era o melhor.
Foi amoroso com os seus. Sempre preocupado com a sua família, com os seus irmãos, com os seus pais. Um marido que se dizia sortudo, um pai sempre adorado, um avô apaixonado pelas suas meninas.
Foi um bom tio para mim. Honrou o nosso nome no desempenho das altas funções públicas que durante grande parte da sua vida desempenhou. Deixou-me o exemplo do amor pela coisa pública e da caridade para com os menos favorecidos da nossa terra - uma preocupação que quotidianamente ocupa os meus pensamentos.
Não era um homem velho. Era um homem maduro que se preparava para a velhice. Deixou a nossa família novamente órfã de patriarca 23 anos após a morte do meu avô paterno, sempre presente nas suas palavras e no seu coração.
Um coração integralmente livre, que nasceu livre como o vento e que por toda a vida ditou o caminho trilhado na convicção dos melhores valores que também eu recebi e tenho comigo.
Muitos de vocês que lêem essas linhas nunca estiveram com esse típico e bom "miano", mas acreditem que teria sido um gosto. Nós todos bem o sabemos.
Foi para as mãos de Deus e é preciso ter obediência para aceitar a Sua vontade, na confiança da vida eterna e da ressureição da carne.
Pelo descanso das almas dos meus bons tios, homens de bem, orgulho da nossa raça, eu vos peço uma oração sincera.

quinta-feira, fevereiro 11, 2010

Para o Fernando Carvalho


O tão curto convívio que eu tive com o Fernando Carvalho não é proporcional à minha admiração por ele, ainda hoje.

"O que tem que ser, tem que ser e o que tem que ser tem uma força imensa", eis as palavras dele que hoje eu compreendo melhor, bem melhor... Ou então naquela brincadeira privada ao ver meu ar triste na partida, tão bem sabia ele o que eu sentia, que quis brincar: "A Saudade está aqui!".

Por vezes penso na brutalidade de ter sido expluso da terra dele, ainda adolescente, e vir morar na terra dos pais e dos avós, mas que era até então estranha, penso nas suas inúmeras memórias de Moçambique, no seu sotaque moçambicano, aquele português africano cantado e com as vogais altas e alongadas que eu, pessoalmente e com todo o respeito, acho muito engraçado.

Penso por vezes na coragem de desposar uma moça da sua terra, é capaz que por busca e encontro das suas origens, mas tenho convicção, própria e pelos da casa dele, que o fez de todo coração, e esses longos anos têm provado a certeza da sua escolha, mais que a escolha da sua certeza.

Penso nos apertos daquela juventude adulta, penso na linda filhinha que Deus lhe deu tão cedo na vida, penso nas preocupações, penso, sobretudo, no grande e imenso coração desse bravo homem.

Ainda novo tomou a decisão de emigrar para a Suíça, mas o fez sozinho. Em Portugal ficou a mulher e a sua filha ainda pequena. E é aí que eu fico a tentar ver onde ia o seu pensamento naqueles primeiros anos, que julgo eu devem ter sido mais difíceis, quer pela adaptação ao país estranho e à língua estranha, quer pelas próprias misérias que envolvem o se encaixar numa sociedade estrangeira. Mas seguiu em frente, só na Suíça, mas não só no seu sentimento.

Mais tarde teve mais uma filha, uma alegria e também uma companhia para a mulher e a filha mais velha, mas também mais uma responsabilidade, certamente. Concebida nesse vai-e-vem Suíça-Portugal, Portugal-Suíça...

Dia a dia, mês a mês, ano a ano, uma vida inteira! Quem mais é capaz de sacrificar tanto de si mesmo, de dar da própria carne o comer dos outros que ama, de instrumentalizar-se completamente pela felicidade de outros que nem o convívio pode ter!

São todas ideias demasiado odiosas para um individualista, mas aqui tratamos de uma unidade colectiva que atende pelo nome de família, é bem assim. E por isso mesmo cabe aquele precioso ditado que diz que "quem corre por gosto não cansa".

Mais do que dramatização cruel que poderia ver no Fernando Carvalho um escravo que só umas poucas semanas por ano tem o direito de gozar da felicidade que no resto do ano é privado, como no exercício masoquista que apenas serve para que fique a saber melhor aquilo que não pode ter, trata-se, no entanto, de realizar-se como homem, de fazer-se vivo, de completar-se inteiramente, pois nada há de mais maravilhoso que viver o amor.

E por essa grande e nobilíssima virtude, pelo seu grande desprendimento e fidelidade ao ideal, mas sobretudo por esse imensurável amor, esse amor vencedor e glorioso, eu consigo compreender bem que o Fernando Carvalho é muito feliz e que deveriam haver muitos mais homens como ele, ao invés dessa multidão de infelizes egoístas a bater as cabeças nos postes das ruas.

terça-feira, fevereiro 02, 2010

Vai bugiar, meu menino

Queria que as palavras tivessem sempre o peso certo da expressão interior. Que não se desperdiçasse adjetivos, que não se guardasse uma homenagem justa, que não se calasse a verdade pelo medo, que silenciasse o abuso que vem à fora para nada, a não ser para chatear... Mas talvez essa equação exata não fosse a melhor.
As palavras estão à disposição de todos, os loucos e os sábios. E assim temos de ver nos entrar pelos ouvidos coisas escabrosas, ou ficar à expectativa de um conforto que não é dado.
Acho bem que é nesse espaço entre o excesso e a falta que se encontra o mistério de viver em sociedade.
Criaturas curiosas e bugiadoras que somos, no interior mais secreto, esse ficar sem saber aguça, esse saber o que não interessa até distrái.
Como um longo e doce passeio pela margem do rio, onde as suas serenas águas passam indiferentes à cidade e aos carros, fico à espera de alguma mensagem, de saber como foi e o que esperam do que vai vir na sua viagem até a foz da Figueira, viagem que é tão boa, bem eu sei.
Mas o rio nada diz que ouvidos como os meus possam ouvir. Vão dizer: é a água a passar, tolo! Não... enganam-se muito os que assim pensam. Há ali pormenores, há ali cores, há ali gente e há ali, portanto, história. O rio sabe, melhor que ninguém, como as coisas são. Está ali a passar a séculos imemoriais e mansamente espera e segue, sem nada dizer do que sabe.
Por vezes confunde-me a sua perene inconstância... é sempre novo a cada novo momento, mas no caminho que segue, na margem que toca, nas gentes que banha e de quem arrasta o pensamento, é sempre o mesmo rio.
Mas na generalidade, os mistérios não assumem essa forma fluvial, antes, estão nas pessoas. Muitas poderiam até ver no rio, antes desse mistério que tudo sabe e nada revela, um óbvio que são obrigadas a tolerar, como os portugueses fazem todos os dias em relação ao seu mentiroso Primeiro Ministro. As pessoas preferem outras pessoas, eis uma verdade imutável.
Mas qual o mistério que há em nós? O que guardamos que nos torna interessantes aos outros? E mais, talvez até mais importante, qual o nosso óbvio repetido e aceito que aborrece, que se intromete pelos olhos e ouvidos dos outros e nos faz o cansativo lugar comum?
Se é o rio testemunha silenciosa, sabe bem que a convicção e a fé, em Deus ou mesmo em um ideal, conduzem as vidas das pessoas que realmente importam, como o fluxo do rio conduz os barcos que na superfície se arriscam.
Nada mais somos do que o exercício das nossas bugiações. A externação do que pensamos e sentimos. Com essa forma de influenciar os outros e se deixar influenciar por eles, fazemos o mundo em que vivemos.
Ao contrário do rio, que tudo sabe, mas nada diz, nós, que temos a pretensão de que sabemos, ao menos podemos falar, comunicar, fazer perceber, a dizer, maravilhar ou aborrecer.
E em alguma medida, essa é a vida que se tem para viver.

quinta-feira, janeiro 21, 2010

Os 20 valores de Manuel de Andrade


Nem só de tijolos e livros se faz uma faculdade de direito. Bem o sabe quem estuda ou já estudou em Coimbra.

Cá onde os corredores falam mesmo se vazios, não na voz dos fantasmas a assombrar, mas na história impossível de não notar, há uma reputação a pesar nos ombros desses pobres caloiros que entram para o 1.º ano: honrar essas tradições. Fardo por vezes demasiado pesado, especialmente para os que minguam em talento, possível razão, talvez caiba especular, da grande evasão que acontece: dos 400 caloiros que se matriculam todos os anos, menos de 100 terminam a licenciatura e dois terços ou metade disso seguem para o mestrado e muito menos para o doutoramento.

Essa grande evasão é fundada, dizem alguns, no rigor do curso, onde a obtenção da quantidade mínima de valores (10) para aprovação é em si uma batalha dura, seja qual for a cadeira. Os que terminam o curso com média de 14 valores, mínima para seguir para o mestrado, são uma minoria avalassadora, prémio, não de génios iluminados, mas dos que trabalharam imensamente, com uma carga de organização e de leituras diárias que assustariam qualquer estudante de direito do mundo.

Uma porta, no entanto, resta aberta à beleza: mais que os maquinadores, que reproduzem o conhecimento sem sobre ele refletir, a faculdade de direito deita rosas no caminho dos que se expõe a estarem errados, mas que tentam levar os caminhos do conhecimento jurídico mais à frente, desenvolvendo novas teorias, novas tecnologias capazes gerar paz e justiça social.

É assim que mais de 50 anos após sua morte, Manuel de Andrade, natural de Estarreja, ainda influencia o pensamento dos que por esses corredores andam e nem só.

No convívio social, era um homem de trato simples e muito calmo, dizem os que com ele conviveram, não era dado à discussão leviana... conversava à dois, conciliava, aconselhava, não impunha.

Como professor, acompanhava com atenção o evoluir dos alunos, pois leccionava cadeiras em diferentes anos, provendo-lhes com suas "lições", sempre receoso de publicar seus estudos. Suas ideias, claras e atentas à letra da lei, sempre em busca de uma sua materialização com a participação de um intérprete que lhe confira o positivismo que interessa, penetraram profunda e perenemente no pensamento dos seus alunos, e alguns desses se tornariam mestres dos nossos hodiernos mestres, numa influência espraiada da postura de um professor de direito de Coimbra que ainda hoje se vê plena e consistente.

Talvez por isso tenha levado 12 anos, depois de sua licenciatura, para tirar o doutoramento. Fê-lo, entretanto, com um brilhantismo que já não se pode aspirar igual. Obteve aprovação da tese com 20 valores, a única nota máxima atribuída pela faculdade de direito no século XX. Distinção conferida, ao que parece, por mérito e com justiça.

Feito hoje nome de um dos prémios outorgados anualmente pela faculdade (ao aluno com maior média final de licenciatura), ainda ressoa aos (a dizer, quase todos) que nunca conheceram-no essas façanhas e maneiras. Mais que tudo, surpreende por ter se consagrado na humildade de não querer superar, suplantar, destruir ou implantar. Ensinou o direito e o fez honestamente, sem vaidades maiores e, por isso mesmo, a sua memória ainda muito nos ensina.