terça-feira, novembro 25, 2014

O canto do cisne

Chovia muito, fazia algum frio, não muito. Era ainda o início do outono em Coimbra e os humores de futricas e doutores encontravam-se divididos entre a perspectiva do aperto das contas e a perspectiva dos exames. Havia mesmo muita tristeza nos olhos das pessoas nas paregens de autocarro - o tempo a escorrer conforme a chuva que caia sem descanso e o transporte que já não chega a horas.
A perspectiva do tempo ganhou uma dimensão completamente nova para mim quando se olha de frente para o que se quer fazer e, noutro lado, os recursos que tempos para a empreitada.
Quando eu era ainda miúdo fui a Ouro Preto com uns bons amigos da altura. O nosso propósito era participar de um encontro, mas rapidamente pudemos ver que havia muito mais ali do que aquilo. Uma cidade antiga, com um céu que não nos compreendia, nas palavras do poeta.
Formávamos já há algum tempo um grupo destemido de rapazitos em busca de ser vistos como homens. Por vezes íamos às festas universitárias e queríamos nos passar por "doutores", alguns mais atirados a pingar amor para todo o lado.
Em Ouro Preto tudo isso assumiu uma feição mais íntima, uma lua imensa iluminou as pedras antigas e no dia seguinte já não havia rapazitos, mas homens. Como o mito do lobisomem, o transcurso de uma noite com lua cheia serviu para mudar, mas no nosso caso a transformação foi no coração e no pensamento.
Estávamos todos a conversar animados após o jantar e havia já quem propusesse grandes teses sobre a igualdade e outros sobre a tolerância e o amor. Eu da minha parte acompanhava o brilho dos olhos. De alguma maneira sentia-me estranhamente em casa. Aquele ambiente, aquela gente, aqueles cheiros, tudo parecia algo próprio de mim mesmo.
Depois do café, fomos todos para a Praça Tiradentes para ver o movimento, à mineira e à antiga. Não havia lá muita gente para além dos estudantes e dos turistas. Havia duas raparigas alemães que não percebiam o que era o barroco e um dos meus amigos - por sinal, ainda hoje voluntarioso e falador, quis ser o porta-voz das tradições. Mais hora, menos hora, fomos todos ficando amigos.
Senti-me estranhamente dono da minha vida. Sentia o frio vento da noite ouropretana a bater-me no rosto e a deixar um pouco de mim mesmo naquele vento que passava: podia ser tudo que quisesse na vida.
Hoje recordo que ainda há poucos meses regressei a Ouro Preto e novamente senti-me em casa. Já não era o rapazito ansioso para ser homem, já agora um homem a fazer-se à vida. O antigo sonho de ir para engenharia de minas ficou em Ouro Preto, guardião das minhas memórias de adolescente e das minhas ilusões de rapaz.
Há algo que não se pode trocar, nem comprar e nem vender? Ouro Preto disse-me que sim, há o tempo.
Tu não me escapas, vida minha. Tenho ainda a juventude de quem se pode lançar com toda força e é o que hei de fazer. Os horizontes estreitam-se, mas nunca se hão de estreitar para que possa fazer a coisa certa e ser justo com os outros.
Valham-me as tristes e chuvosas tardes de Outono da minha velha Coimbra, pensativa e generosa à espera de que o enigma do tempo que eu um dia quebrei em Outro Preto seja também quebrado por mais gente e de que os dias sejam usados para maior proveito do que realmente vale a pena: amar, sonhar e estar com quem se gosta.