sexta-feira, janeiro 05, 2018

Ó capitão! Meu capitão!




Ó Capitão! Meu Capitão! Finda é a temível jornada,
Vencida cada tormenta, a busca foi laureada.
O porto é ali, os sinos ouvi, exulta o povo inteiro,
Com o olhar na quilha estanque do vaso ousado e austero.
 

Mas ó coração, coração!
O sangue mancha o navio,
No convés, meu Capitão
Vai caído, morto e frio.

Ó Capitão! Meu Capitão! Ergue-te ao dobre dos sinos;
Por ti se agita o pendão e os clarins tocam teus hinos.
Por ti buquês, guirlandas... Multidões as praias lotam,
Teu nome é o que elas clamam; para ti os olhos voltam,
 

Capitão, querido pai,
Dormes no braço macio...
É meu sonho que ao convés
Vais caído, morto e frio.

Ah! Meu Capitão não fala, foi do lábio o sopro expulso,
Meu calor meu pai não sente, já não tem vontade ou pulso.
Da nau ancorada e ilesa, a jornada é concluída.
E lá vem ela em triunfo da viagem antes temida.
 

Povo, exulta! Sino, dobra!
Mas meu passo é tão sombrio...
No convés meu Capitão
Vai caído, morto e frio.


Walt Whitman, in: "Recordações do Presidente Lincoln”, tradução de Luciano Meira

Aquele grande homem, no seu ocaso, fragilizado e diminuído pelo combate impossível que travou, vai finalmente descansar. Olhos marejados, suspiros profundos, gente cabisbaixa e nas mãos as contas do rosário, apertadas uma a uma entre o polegar e o indicador, como que para não deixar escapar a vida, em vão... Na imagem final que vai deixar aos que estiveram presentes, fica essa réstia pálida em representação da grandeza daquelas longas décadas em que caminhou pela terra, firmou o passo e deu o exemplo.
Levantava cedo, beijava a mulher, saia para trabalhar. Não vivia só para si, também gostava de ajudar, tentava colaborar, tinha as melhores intenções. Também errava, como todos que se propõem a fazer alguma coisa, mas não se enganava, sabia muito bem para onde é que estava a ir, e o que queria da vida. Com ímpeto suave e persistência implacável, avançou pela vida como um imparável colosso que tudo vence e a todos protege.
Deu amor, fez filhos, deixou amigos e lembranças guardadas na sala dos tesouros do espírito.
Tantas vezes vasculho a memória à procura daqueles momentos que já se foram. Reproduzo, como se fosse num filme, cada gesto, cada sorriso, lembro-me das palavras, e em silêncio balbucio, como se ainda fosse a criança que tentava alcançar o seu queixo com meus dedinhos pequenos...
Tão grande herança, tão grande herança esse homem deixou. Quanto amor derramado por aquelas mãos que incessantemente construíram um mundo próprio, com ideias próprias, e sonhos próprios, onde nós e tantos outros que partilharam do seu convívio fomos convidados a morar. Cada vez que é preciso tomar uma decisão, a moral própria convoca a moral do morto: "O que ele faria?"
As heranças não se contam só pelos alqueires de terra, ou pelas casas, ou dinheiro aplicado… Todas coisas pequeninas em vista do grande porvir. A herança que contará então é a da memória. Na pujança e na disciplina para o trabalho, na retidão da palavra dada, na coragem de correr o risco, na frieza para aplicar a justiça, lá está o homem morto, afinal vivo.
Se a cena final, em que o corpo sem vida deitado num caixão cheio de flores, provocou choro e luto, não deve agora deixar de ser recordada como um convite para honrar aquela vida determinada, com mais vidas determinadas.
Pois o dia passa e vem a noite. Agora o dia é nosso. Podemos sair por aí e ver mundo. Podemos dar beijos apaixonados e escrever poemas. Podemos lançar olhares e dar gargalhadas... E tudo que o morto quer é que nós o façamos. Ele completou o seu ciclo, a nós cabe fazer o nosso, com coragem para viver e cultivar na memória aquela vida que já não há, mas ainda há... em nós.
Nada é mais bonito que viver no pensamento de quem nos ama. Imagina que depois de dezenas de anos da tua morte, teus filhos e netos buscarão na lembrança a tua presença. Dali, como um quadro pintado num tempo esquecido, mas que ainda emociona, tu também emocionarás...
Penso que assim é porque o amor não morre. Ele faz a grande e perigosa jornada, cumpre o objetivo, traz para casa o prémio, e quando dividido, multiplica a vida.