No dia 18 de Março de 1924, na fazenda Santa Cruz, Sinhá deu à luz ao seu oitavo filho. O menino levou o nome do avô paterno, mas nos sobrenomes Miano resolveu repetir a combinação que recebeu a tia Manzica, pois com Gomes de Paiva já havia o seu pai e o seu irmão. Assim, o menino que viria a ser o meu avô foi batizado Antônio Gomes Martins.
Acho que esta combinação com os sobrenomes do pai e da mãe foi muito feliz, em que pese eu ter ficado sem o Paiva. Isso porque vejo nele os traços da família de um e outro lado, em que pode unir o muito do que era bom, e evitar o algum que era mau.
Antes de fazer a reconstituição da genealogia do meu avô, louvando os nossos antepassados, ou mesmo contar histórias da sua infância, vou falar do Toninho Miano que eu conheci, muito pequeno ainda, e do que me foi dado a conhecer por toda a gente que conviveu mais com ele.
Meu avô morreu muito cedo. Tinha apenas 62 anos. Pior, morreu de repente, sem que fosse esperado, e em uma terra que, embora não fosse estrangeira, não era mineira. Acho que muitos de nós na família nunca aceitamos a morte dele. E foi (e é) assim não porque nos falte fé em Deus, ou confiança na Sua divina composição dos assuntos do mundo. Antes, a saudade que permanece é muito fruto de corações eternamente cativados pela sua indizível bondade e carisma.
Dotado de uma invulgar prudência, aliada a um caráter brando e extrovertido, mas muito firme no sentido do que era certo, fez uma vida de trabalho e de amor com raríssimo sucesso.
Digo mesmo, sem qualquer sombra de exagero, que meu avô foi o homem mais bem sucedido que alguma vez conheci. Isso porque ele venceu em todos os campos relevantes da vida. Foi capaz de prover aos seus e encaminhar muito bem todos os filhos, esteve presente para os seus irmãos e para os seus pais, ajudou mesmo aqueles que mal conhecia, por vezes oferendo a quem lhe tinha mostrado ingratidão uma redentora misericórdia.
Na origem de tanto êxito, ouso dizer, estava uma fé inquebrantável em Nosso Senhor Jesus Cristo. Quando esteve em vias de embarcar para a Guerra, a vovó Agusta lhe dirigiu uma carta em que rogava para que Nossa Senhora continuasse a protegê-lo. E quando, já mais tarde na vida, o seu jipe virou de ponta cabeça em uma ponte precária na estrada de Santa Bárbara, ele chamou pela intervenção de Santa Rita e teve a vida poupada.
Não só nesses momentos críticos, mas sobretudo nas longas tribulações que viveu ao lado da minha avó, seu grande amor, Deus orientou sempre a suas ações. E é justamente por isso que o Toninho sentia uma necessidade tão grande em ser caridoso: o amor de Deus deve ser emulado no amor que temos pelo próximo. Assim como sempre viu fazer a sua mãe Sinhá, Toninho fazia os possíveis para ajudar quem precisava.
Entre as várias histórias que demonstram esse comprometimento com a bondade, sem necessidade de fazer alarde, está uma história que chegou por uma pessoa anônima para mim, e por isso mesmo carrega muito da verdade. Contou-me essa senhora, hoje com mais de 50 anos de idade, que menina ainda, com a idade de 10 anos, trabalhava colhendo café para o meu avô. Com os bracinhos pequenos, não conseguia ir aos ramos mais altos do pé de café, e nem tinha disposição física para fazer a jornada de trabalho com os adultos, daí o valor da sua diária era de metade da de um adulto. No entanto, Toninho sabia que ela tinha uma mãe doente em casa e mais dois irmãozinhos menores, por isso um dia lhe fez uma oferta: "A partir de agora vou lhe pagar o mesmo que pago a um adulto, mas não pode contar para ninguém".
Ainda consigo ouvir a sua risada. Mesmo tendo se passado tantos anos do seu desaparecimento e sendo eu tão pequeno quando ele se foi. Na verdade, a morte pode nos privar da presença física, mas não é capaz de tirar de nós a presença do exemplo.
Muitas vezes na minha vida, ressentido por alguma dificuldade, ou chateado por não ter recebido o mesmo tratamento que dediquei aos outros, não me veio como um raio caído do céu o semblante sério do meu avô recordando a obrigação de ter gratidão pelo que me foi concedido? Quantas vezes as histórias de rebeldia do meu pai com ele, em que rapou o cabelo depois do meu avô ter dito que não tinha cortado o suficiente, ou sair de casa a bater com a porta quando o meu avô lhe negava um dinheirinho para sair à noite não serviram para me ensinar prudência e comedimento?
A sanha de enriquecer que nos corre nas veias desde os Alves Pereira, no Toninho teve um propósito muito elevado, também graças à rara inteligência da Ziza, sua amada mulher. Minha avó tinha o tino para os negócios dos Bicalho, muito astutos e pacientes. Esse planejamento, somado à inteligência e à energia que o Toninho recebeu do vovô Miano, fez com que a sua tropa de burros de carga a serviço do Juquinha do Vale se transformassem em muitas terras, muito café, muitas casas e lojas.
O exemplo de vida santa de Sinhá sempre pesou para que as atitudes com os outros (e com ele mesmo) fossem as mais corretas. Daí o dinheiro nunca foi idolatrado. O propósito da sua vida frugal e muito poupada (não posso aqui negar que o Toninho não gostava de gastar dinheiro!) era ajuntar o suficiente para nada faltasse aos seus amados filhinhos e netos.
Assim também aprendi com ele: com correção nos negócios, ir na direção certa, mesmo que não fosse tão rápido quanto gostaria. Até hoje, tem dado muito certo para mim!
É importante lembrar desse seu lado porque embora Toninho fosse muito alegre e brincalhão com os netinhos, também era disciplinador e gostava de dar tarefas para todos, pois não gostava de ver ninguém desocupado.
Eis mais uma lição que procuro aplicar à minha vida: aproveitar ao máximo o tempo e envolver as pessoas em atividades em que possam também tirar proveito. Essa é aliás uma forma muito simples para se fazer amizades boas e ajudar as pessoas, embora haja os que acham que estamos apenas a lhes dar serviço!
Nestes 100 anos do nascimento do Toninho, termino destacando uma das suas feições mais bonitas: o seu imenso amor pela minha avó. Quantas vezes vi nos olhos dela e no seu sorriso comedido a lembrança do meu avô como uma saudade cheia de dor, pelo vazio monumental que alguém tão grande como ele deixa, mas também cheia de orgulho pela sua herança de amor, força e misericórdia.
Um amor que mesmo lá no São Carlos, sem luz e água corrente, ajudaram-se um ao outro a cuidar dos filhinhos que chegavam, principalmente naquele início de vida juntos, em que entre o nascimento do tio Max e o tio Domingos tinha decorrido pouco mais de um ano!
Minha linda avô levou sempre consigo a memória do meu avô. A sua própria nobreza de alma sempre serviu para elevá-lo ainda mais aos nossos olhos.
Hoje no céu, abraçados e a sorrir, esse lindo casal olha por nós, celebrando os 100 anos de nascimento do Toninho, que deixou o mundo tão melhor do que encontrou, e será sempre merecedor das nossas mais profundas saudades.