Tenho me dedicado há alguns anos à pesquisa dos meus antepassados, em muito devido à influência de um querido primo que anteriormente se dedicara à reunir muitas memórias familiares em um livro fotocopiado chamado mesmo "Memórias", meu querido primo e irmão do meu coração, Paulo Afonso.
O grito de alerta de Paulo Afonso sobre a perda irreparável da memória dos antigos despertou em mim a necessidade de lhes apurar em verdade quem eram, de onde tinham vindo e o que fizeram nas suas vidas.
Antes de ler o "Memórias", sabia muito pouco, devo admitir.
Sabia que éramos bons mineiros, zelosos nas tradições comuns das famílias mineiras. Sabia também que éramos descendentes dos portugueses que foram explorar as minas descobertas no fim do século XVII e que com o fim do ciclo do ouro (que durou um século largo para edificar o caráter mineiro com engenho, empenhamento, discrição e sofrimento) foram ocupar a zona de mata entre a região das minas e o Rio de Janeiro.
Eu confirmei a história aprendida da história e ainda descobri uma outra que não me havia sido contada corretamente. Talvez para preservar as crianças da crueldade das guerras, talvez porque o programa curricular de história do Brasil não tinha espaço que bastasse para entrar em pormenores da formação de Minas Gerais, só agora há poucos anos pude aferir da gravidade da guerra dos Emboabas.
Eu venho de uma antiga família de bandeirantes paulistas, encabeçada por Fernão Dias Paes, mas que também é composta por outros grandes nomes de relevo. Famílias de quatrocentos anos, como diz Tião Carreiro e Pardinho na moda "O mineiro e o italiano", do que deduzo que o juiz que foi ali ludibriado por um mineiro, era um correto e íntegro primo meu, também ele descendente das primeiras famílias de São Vicente.
O conflito dos emboabas foi uma cruenta guerra pela exploração das minas. De um lado, os orgulhosos paulistas, descobridores do "el dorado" do império português. De outro, os brasileiros de outras regiões, nomeadamente, cariocas, baianos, pernambucanos e mesmo reinóis (portugueses nascidos no Reino) que queriam também aceder às incomensuráveis riquezas das minas de ouro.
Uma guerra entre irmãos, por dinheiro. Algo triste e cru, que custou não só o sangue mas uma porção larga da dignidade de nossa raça.
Se Deus nos deu o Brasil para catequizar e salvar da danação eterna, incutindo-lhe a fé católica, não deu semelhante procuração para que nos trucidássemos por ouro.
Os paulistas, mesmo de crista levantada, perderam a disputa. Diz a história que na sua retirada para São Paulo, pelo caminho velho, ainda foram atraiçoados por um carioca indolente, líder emboaba, que lhes prometera salvo conduto se depusessem as armas aquando já de uma tentativa de retirada, quando os surpreenderam em uma encosta. Concordaram candidamente os paulistas para que, ao adormecer naquela noite, fossem acordados com as cruentas lâminas emboabas nos seus pescoços.
Por muito orgulho e confiante na nobreza das minhas doces Minas Gerais, não podemos ver a vida em rosa de uma história feita também com dor, sofrimento e traição. Que Deus tenha piedade das almas dos nossos antepassados que tomaram parte nesses atos tristes e deploráveis.
Quando se ia acabando o ouro, a coroa portuguesa mantinha-se sedenta dos impostos, e fez impor uma derrama, na forma de uma quota mínima de arrobas de ouro que devia ser paga, independentemente da produção aurífera.
Este cálculo imprudente e pouco empático, foi o terreno fértil em que as ideias revolucionárias que já andavam assanhadas por aí se serviram para florescer. Não tardou, revolucionários começaram a se levantar propondo a maluquice da independência das Minas (e não propriamente do Brasil).
Maluquice porque não se separa o que na origem e no espírito é um só. Um divórcio fundado no ódio é uma separação de corpos que irá servir apenas para apequenar os espíritos. Mais tarde, essa teoria provou-se com a definitiva separação entre Portugal e o Brasil.
Ao que nos interessa, meu primo Cláudio Manoel da Costa, um magistrado com ideias fantasiosas e bons dons poéticos, alinhou-se nessa conspiração. Delatados, esses inconfidentes (traidores, é mesmo isso o que significa o seu título) foram degredados todos, exceto por Tiradentes (o suposto líder, mas que era apenas o doidinho iludido que achava que não seria levado à forca) e meu primo Cláudio, que tirou a própria vida no vão das escadas da Casa dos Contos, em Vila Rica.
Uma outra prima, essa paulista, Domitila, entretanto iria mais tarde seduzir o príncipe regente, e depois imperador do Brasil, nas suas tramas de deslumbramento. Tudo para ser rejeitada por ele e procurar redenção na caridade, o que não é de todo mau!
Desde essas tentativas de revolução e a fatídica separação de Portugal, minha raça só perseverou mais duas gerações na região das Minas. Em 1795 nasceu o meu pentavô José de Paiva Jorge, último português, e em 1828, meu tetravô Gomes, o primeiro brasileiro. E fomo-nos embora das minas porque ouro mesmo, já não havia.
Essa linha varonil que uso de referência apenas, sem em nada diminuir a grandeza das nobilíssimas mulheres mineiras de quem tenho a honra de descender também, mostra muito do nosso percurso: uma luta pela sobrevivência e pelo sentido de uma vida que, se tinha em Deus o seu signo maior, também não podia ignorar a necessidade de sobreviver.
A minha família reproduz em muito a história de Minas Gerais, o que muito me orgulha.
Devemos ir-nos embora de Minas e achar que é o mundo o nosso refúgio, e não um seu canto qualquer?
Eu digo que afirmar isso é muito duvidoso.
Há encantos próprios das terras dos nossos pais e avós que comunicam ao nosso coração sentimentos insuspeitados.
Quando vim estudar para Portugal, fui repentinamente arrebatado por um mar de identificações que não estava à espera. Durante muitos anos, paguei as dívidas de ausência no altar da devoção aos antigos portugueses que nos fizeram. Sem desmerecer as nossas outras legítimas e nobres constituições, (lembro-me sempre de Vinicius de Morais nas "redondilhas para Tati" dizendo a ela que era "forte como Peri!"), os nossos avós portugueses foram uma gente espetacular, quer pela sua devoção a Deus, Senhor nosso, quer pelas inúmeras e difíceis provações que tiveram que vencer, não há conclusão verdadeira a não ser que Minas foi feita por Portugal e para ser Portugal.
Passados todos estes anos aqui no "Reino", entretanto, colore-me as retinas o contorno verde pálido das minhas montanhas americanas, como um horizonte que melhor emoldura o meu coração.
E por isso eu vos afirmo: não se foge à raça, meus amigos. Nós não devemos jamais fingir ser o que não somos, nem acreditar em histórias fantasiosas que agradam a outros, mas negam as nossas origens.
A verdade é sempre simples e a sua evidência desde os factos comprovados impõe-nos a honestidade de a acolher entre as nossas convicções.
Um grande viva ao nosso Portugal, de ontem e de hoje. Um viva ainda maior às nossas Minas, de luta, de inexplicável encantamento e de indizível amor.