Chegam os dias mais longos, chega ao espírito o cheio do vento e o gozo do toque da maciez da pele.
Lindo tempo de venturas é este de Abril e Maio e um pouco de Junho.
Não fosse tanta chuva e tanto vento, tanta precipitação e tanto engano, seria sempre o tempo mais bonito do ano.
No parque municipal já há passarinhos a voar desorientados, cheios de preocupação com os ninhos e com os alimentos, a cantar muito animadinhos e cheios de vida, exatamente como em um antigo poema meu sobre a sua pureza a que hoje recordo como se o tivesse escrito ontem.
Falava então daquele sossego do ninho em que o filhote é acolhido, de todo o esforço dos pais, de todo o empenho, daquela circunstancia especial em que as condições são favoráveis ao prolongar da vida em outro novo ser.
E nesse sonho bonito que o instinto natural põe o seu determinismo nos progenitores para ajudarem as crias, não há mal nenhum em ver nisso amor. Também o nosso amor é determinado pelos nossos mais básicos instintos que são condicionados pela nossa personalidade e educação em partes proporcionais.
Entretanto, algo se intromete nesse meio. Um indesejado miudinho, cujo tamanho não lhe permite investigar o ninho que foi sabiamente construído no alto da árvore. Utiliza-se de uma fisga para lá chegar e no seu ímpeto de curiosidade e indiferença típicos de quem nunca experimentou sentir dor, tenta trazer o ninho ao chão sem se arriscar muito, evitando assim o risco de despencar do alto da árvore ou de, nessa escalada, ser atacado pelos guardiões do ninho.
Do chão, aponta a arma e dispara tantas vezes quanto a falta de precisão pedir. Lá no alto, um fim do mundo abate-se sobre os habitantes da casa pequenina, com a morte certa que se aproxima para as crias.
Tudo a custa de uma curiosidade vã de um miúdo.
Muitas outras crias, no entanto, irão vingar e estarão prontas para ir aos jardins cantar e dar continuidade ao puro e nobre destino dos passarinhos.
Eu por cá recordo a lembrança do poema, da minha recusa infantil em participar dessas caçadas tolas e covardes, da alegria de criar poesia a partir de uma situação algo trágica, mas que serviu para trazer de volta ao mundo a maneira de ver dos meus olhos.
Surpreendentemente, já naquele poema havia os componentes todos da cena poética da vida que teimam sempre em se repetir. Havia os passarinhos na sua constituição familiar como a pureza, as crias como a esperança no futuro, o miúdo como os terceiros que mesmo contra a nossa vontade interferem nas nossas vidas e a sua ação destrutiva como a estupidez que por vezes conduz-nos a caminhos ruinosos. Nem sempre os desfechos da vida são assim tão maus, é preciso que se diga, o conteúdo surpreendente da vida, no entanto, mantém-se.
Cada primavera serve para lembrar que a nossa sensação de ter o controle sobre as nossas vidas por vezes não passa mesmo disso, uma sensação. Todavia, onde termina uma vida não termina a vida. Tudo segue, por vezes com indiferença, às glórias e tragédias que marcam as nossas existências privadas.
Serve para lembrar-nos dessa verdade a bonita primavera que já por aqui passou muitos milhares de milhões de vezes e ainda vai retornar quando formos apenas lembrança, se tanto.