segunda-feira, março 03, 2014

Um mineiro chamado Raul Agostinho


Tinha então 19 ou 20 anos e encontrava-se já casado e dominado pelo sonho de fazer fortuna. No seu sangue, corria plena a ancestral ambição mineira de enriquecer e regressar ao Reino. O meu avô já nem sabia disso - tantas gerações passadas, já Portugal fora em muito esquecido da memória coletiva: mortos os parentes, passado o tempo, não havia mais para onde voltar - todavia, lá estava o sonho, intacto e dominador, a mandar ir à frente. E ele foi.

Ao casar, recebeu do pai uma carrinha e vivia em uma casa arrendada. Fazia então os seus fretes para ganhar uns trocos e, sempre muito conversador e conhecedor das gentes da terra, ficava atento às oportunidades de negócio.

Numa destas conversas, ficou a saber que havia um senhor de idade, dono de umas boas terras lá próximas das dele que queria vendê-las. Já estava velho e sem saúde para cuidar daquilo, queria mesmo era ir para o Rio de Janeiro ter com os filhos que lá já viviam e assim terminar em paz os seus dias.

Terra por terra, havia muitas à venda, mas aquelas terras eram especiais. Os entendidos diziam haver lá abundância de mica para tirar da terra. A mica - termo de origem latina que significa "brilhante" - é um mineral com divisal basal altamente perfeita, muito útil para a fabricação de condensadores e isolantes elétricos devido às suas propriedades naturais.

O velho disso tinha alguma ideia, mas não tinha certezas - e nem energias para explorar aquilo. O avô fez-lhe uma oferta boa, mas o velho disse que tinha que subir um pouco. Tendo em conta a boa oportunidade - que não era certa! - o avô vendeu a carrinha e apanhou dinheiro emprestado com toda gente que conhecia, inclusive no nome do pai.

Compradas as terras, para lá se mudou com a sua jovem esposa. Foram viver na pequena choupana onde tinha vivido o velho, sem luz, sem água, mas com muito amor, da parte dos dois, e vontade de enriquecer, sobretudo da parte do meu avô.

Sendo filho de boas famílias da terra, os trabalhos brutos e físicos não eram propriamente trabalhos que faria. Mas nunca teve medo de trabalhar, e o sonho ardia demasiado intensamente para se dizer que não ao que quer que fosse: faria o que fosse preciso.

Passavam-se os dias, o avô saia cedo, antes do sol, para ir abrir a sua mina. Trabalhava duro, com a pá e a picareta, em busca do seu tesouro. A avó ia pelas 10:30hs levar o café e também lhe dava algum afago - o trabalho nas minas não era fácil.

De volta à casa ao fim do dia, muitos calos nas mãos, a pele coberta de terra, as unhas sujas, e mica nenhuma. Já começavam a apertar os credores. O pai que lhe chamava a atenção por ter colocado o nome dele na praça à custa de sonhos tolos, a mulher também não andava feliz com aquela vida cheia de privações: era a pressão a subir-lhe pelos calcanhares, mas o avô não a deixava assentar.

Mais tarde na vida, pude ver com os meus próprios olhos a fibra e a fortaleza que habitam o avô. Diante da morte brutal de um dos filhos, guardou o semblante sempre sereno, pronto a confortar. Não vergou nem um centímetro, e não por orgulho tolo, mas porque sabia que tinha de ser o esteio da família, a coluna mestra daquela casa emocionalmente destroçada, que ele não deixaria vir abaixo. Pouco sabia então que aquela hombridade vinha de muito antes.

Aos credores: já vão ser pagos; ao pai: tem paciência que o teu nome tem boa reputação; à mulher: ao menos temos a fé no Senhor e um ao outro. E trabalhava: dia a dia, a parar aos domingos, cravava na terra a sua picareta, tirava as sacas de terra da mina, sempre com um mesmo pensamento de vitória.

Ao fim de um longo dia, já com os músculos dos braços a tremer (acumulava-se-lhe o ácido lático nos músculos fatigados), ficou na mina já depois de escurecer. Tinha em si um impulso de continuar. Em casa a mulher a rezar: o que se passa com o Raul que nunca mais chega?

Batia a picareta contra o fundo da mina, alguma sobra de mica já a tinha visto, mas onde está o generoso veio que andava já há meses a procura? A dúvida alimentava o corpo cansado, batia, batia, batia a picareta contra a terra. Atrás de si, um lampião mal iluminava aquele mundo subterrâneo.

Afinal, a picareta encontrou resistência e avançou quase nada. Há aqui rocha, pensou. Retirou a terra com as mãos, sentiu a rocha, era lisa, como lisas são as partes de mica, finíssimas películas sobrepostas - o seu coração saltou, mas ainda não via. Deitou água para cima daquilo, limpou com as mãos e chegou o lampião junto ao fundo da mina e o que viu ele disse-me uma vez com os seus bonitos olhos verdes a brilhar: "vi o meu reflexo e sorri como um louco!".

O avô tinha encontrado o maior veio de mica até então conhecido. Basta dizer que pagou as dívidas todas na semana seguinte a descobrir o veio e ainda comprou camiões para carregar aquela mica toda - despachada para o Rio de Janeiro e depois para o estrangeiro.

Enriqueceram muito. Teve uma vida boa, comprou terras, cultivou café, criou gado, depois, mais tarde na vida, perdeu dinheiro nos seus negócios de compra e venda de terras, ao ponto de ter de ir viver para as terras herdadas pela mulher, o único bem que havia sobrado. Ainda naquele momento mais baixo, que eu rapazito pude ver, manteve sempre mesma integridade e consistência: voltava a trabalhar duro com o mesmo sonho de enriquecer, não esmorecera em nada.

Raul, este nome que para mim diz serenidade, calma ao falar, pensar rápido e à frente dos outros, esta designação que é tão próxima do meu espírito e da minha forma de ver o mundo, sob o signo da justiça e com força e pujança para o trabalho, esta fortaleza da família, esta beleza indizível na forma de amar sem declarações que eu tanto aprecio e que tão bem sabe - por ser verdadeira.

Este nosso Raul Agostinho (o Agostinho é herança do pai, que era António Agostinho; o avô chama-se Raul António), completou agora há duas semanas 80 anos. Os meus parabéns, avô. Deste-me com a tua vida o que ninguém mais me poderia dar. Herança minha de que tenho imenso orgulho.