Antes não ligava muito às mortes dos meus parentes. Rezava e ficava triste, mas não pensava muito, não entrava nos meandros do tempo que tinha passado. Todavia, algo neste concluir do livro da vida acaba por fazer sentido para a minha vida, sobretudo quando quem se vai fá-lo ainda na juventude.
O Fabrício, o meu primo de 2.º grau que faleceu no sábado, tinha apenas 37 anos de vida.
Dele, falam-me as lembranças de infância quando o meu primo mais velho capitaneava as brincadeiras na quinta do bisavô. O rio que contornava aquela península da manhã da vida era a fronteira e o destino preferido das pescarias e brincadeiras. As longas tardes a caçar nas altas mangeiras à beira do rio as mais doces mangas da vida - pequenas e cheinhas, como cá em Portugal se diz que tem de ser as sardinhas e as raparigas.
Ele avançou para dentro da vida adulta antes que eu. Começou já com o divórcio dos pais e a partir daí, uma adolescência de rebeldia e insubordinação. Afrontado pela vida, restou-lhe também afrontar de volta. Virou homem assim de uma maneira algo estúpida, com os sentimentos contorcidos num mar de confusões e alguma tristeza escondida.
A força e a juventude encontraram boa expressão naquele rapaz bonito e sorridente. Gostava da bola, como todo rapaz da sua idade, e era afixionado pelo Flamengo - predileção que não é a minha, mas que tem alguma popularidade na família da minha mãe - e pelas raparigas bonitas, com as quais teve sempre muita popularidade.
Nem força, nem juventude e nem beleza foram capazes de confortar aquele coração solitário e aquela mente perturbada pelas tristezas com que fora obrigado a crescer.
No ímpeto da rebeldia, foi fácil às más companhias encontrarem nele alguém que lhes desse ouvidos e ele próprio, se calhar, passou a ser chamado pelos outros de "má companhia". Todavia, nunca fez mal à ninguém deliberadamente, senão a si mesmo.
A indisciplina, a rebeldia e a falta de orientação lançaram-no para uma vida de mediocridade em que, por pura sorte, acabou por esbarrar na futura esposa, talvez a pessoa que mais tenha verdadeiramente acreditado nele. Deu-lhe uma filha linda e viveram juntos até que ela também já não conseguia aguentar mais os abusos daquela alma atormentada.
Depois desta separação, perambulou pelo mundo mais uns poucos anos, provavelmente ainda mais triste, até encontrar a doença e a morte numa cama de hospital.
Lembro-me vivamente da última vez que o vi. Graças às cunhas da mãe, estava na altura a trabalhar na câmara da nossa terra, fora designado para um dos espaços públicos de recreação, numa função subalterna. Via-se tão envelhecido e tão triste, que custou-me muito sorrir-lhe e ir apertar-lhe a mão. Não estava desgostoso de cumprimentá-lo, mas sim triste de vê-lo naquele estado, era umas sobras do homem rijo e bem feito que um dia fora. Parecia, desde então, acabado para a vida. Mesmo naquele dia pensei com todo o coração o que poderia fazer por ele, o que estava ao meu alcance... mas a viver aqui tão longe e a cuidar também eu das minhas coisas, não pudia fazer muito a não ser dar-lhe ali uma palavra de amizade e o meu sorriso com carinho. Assim fiz ao meu primo, despedi-me daquela vez sem pensar que poderia ser a última, mas foi mesmo.
Uma vida interrompida guarda sempre o mistério da questão: e se tivesse sido diferente? E se quando pequeno não tivesse sofrido com os pais que teve? E se tivesse tido melhor orientação na adolescência? E se tivessem lhe aconselhado emigrar e deixar aquelas coisas da terra que o chateavam para trás? Ora, ele próprio também escolheu os seus caminhos, isto é válido para todos nós, chama-se livre arbítrio, todavia, muitos outros também ajudaram a empurrar-lhe para a avenida dos dias contados.
Tenho rezado pela alma deste meu primo. Desejo que possa descansar em paz e que a sua filhinha cresça para uma vida feliz que o pai, mesmo a amando muito e de coração, nunca poderá ver.