segunda-feira, abril 18, 2005

A história dos nossos males

Mais de uma vez procurou-se achar motivo no que leva um homem sensato ao crime. Divagou-se sobre os desejos reprimidos, sobre a grande força do inacessível a atraí-lo ao ambiente do submundo, onde vivem os tipos que se ocupam das práticas maldosas, intuiu-se que sua vida seria monótona e um crime perturbaria seu tédio e poliria seu orgulho, como os engraxates de profissão nas estações polem os sapatos. Mas o fato é que nada disso é fato.
Fato é que nenhum homem é igual ao outro, assim, levantar hipóteses sobre as razões que levam homens de bem ao crime é como procurar semelhança entre iguais, ou seja, não levam muito longe e não são conclusivas de nada porque cada qual tem particularidades que sobrepõe a aparência de uma classificação.
As particularidades são mesmo essenciais à personalidade e, essa sim, é decisiva para o cometimento dos crimes e não a classe social ou a intuição sobre o tédio dos intelectuais abastados.
Mata-se por ódio ou outra paixão num momento de fúria, mata-se por medo quando num assalto o ladrão vê-se ameaçado, por profissão, como os militares numa guerra ou os carrascos dos países onde se aplica a pena de morte, os outros crimes seguem os mesmos pressupostos com algumas variações de acordo com a ilicitude. Rouba-se por ganância, vingança, necessidade... seduz-se por solidão, vergonha da solidão! Por razões que impúdicas. Injuria-se por orgulho ferido, calunia-se por gana de vencer uma disputa... não há crimes sem que hajam sentimentos, e também os homens de bem criminosos cometem os seus com o coração cheio de sentimento, sempre maus, é verdade, mas cheio de sentimento.
O crime suja suas mãos, entretanto, e de mãos sujas dividem-se os homens de bem. Alguns deles sentem a culpa por ter feito o mal, outros vangloriam-se intimamente e festejam com a cara fechada, estes últimos dissimuladores fantásticos, afinal as artes dramáticas perdem sempre grandes talentos!
O remorso pelo crime é o primeiro e mais forte traço de moral cristã, nele está presente a compaixão e ao mesmo tempo a vergonha. Agora temos um homem que consumou uma paixão ou outro sentimento menos forte para consumar um crime e, depois de cometido, arrependeu-se de algum modo, vive portanto um conflito, um sofrimento que a pena do Estado só aumenta. Provavelmente esse remorso será suficente para desencorajar outro crime, mas pode ser também que o tempo o apague, como tenazmente faz com tantos sentimentos brutos: amolece-os e depois os deixa ao vento para desaparecer como se não tivessem nunca havido! Divagações, meus caros, tudo o que quis evitar!
Fato é que há aqueles, portanto, que ao menos secretamente fazem festa de seus crimes! Orgulham-se da ousadia, congratulam-se intimamente pelo sucesso de seu propósito, enchem-se de uma alegria negra ao ver humilhada a vítima e de todo drama que provocam não sobra nenhum remorso! Esses, amigos meus, são muitos e são os mais crueis dos criminosos.
Pois digo, afinal, que essa multidão de dissimulados criminosos, com sua intacta e fresca máscara de homens de bem, homens que apartam as mãos uns dos outros! Esses sim escrevem a grande história dos nossos males. Digo isso porque tenho a duvidosa virtude de reconhecer-lhes pelo sorriso e a grande angústia de não poder desmascará-los! Digo isso porque dos abismos do céu despeja-se sobre a terra um rio caudaloso e contínuo composto pelos gritos de suas vítimas e o relatório de seus crimes encheriam mais que todas as bibliotecas do mundo, mesmo que versassem sobre apenas um dia de sua asquerosa labuta.
Entretanto eles continuam andando entre nós. Não, queridos amigos, eles não tem gorros pretos, roupas puídas, barba por fazer e fala rouca, nem tampouco frequentam o centro da cidade de madrugada ou abordam as mocinhas em esquinas escuras. Eles andam em carros que custam mais caro que a casa da maioria de vocês! Vestem ternos finos, almoçam nos restaurantes mais concorridos, bebem do melhor vinho e tem a cortesia das arrumadeiras de quarto e dos gerentes de hotel!
Esses homens elegantes é que cravam os punhais nos corações, arrebentam os vidros dos carros, gritam, ameaçam e castigam o mundo. É dessa gente má que temos de nos livrar.