sábado, novembro 24, 2007

Piccadilly Circus e eu

Embora ainda houvesse gente na rua, embora os painéis continuassem a brilhar as animações dos produtos mais bacanas, embora tudo parecesse apontar para uma madrugada usual, Piccadilly Circus, já a mais de um ano o lar das minhas noites insones, mostrou-me num relance de pensamento onde Eros foi mandar sua flecha.
Ar frio que conheço e que tempera, o calor do rosto de expressão impassível: quanto frescor para se respirar! Fomos juntos, a fria brisa e eu, a vagar mais anônimos ao caminho do ponto de autocarro. No caminho, um rapaz despojado sentava-se numa cadeira de escritório enquanto três garotas italianas, todas flagrantemente bêbadas, falavam dos flertes da noite e brincavam animadamente umas com as outras. Havia junto de mim também um grupo de adolescentes de comportamento anti-social a fazer mais barulho que o necessário e trabalhadores com suas mochilas, encostados junto à fachada da Patisserie da Regent Street. Nenhum deles percebeu o meu estado.
Chego a casa e o céu do noroeste de Londres, sempre a lembrar o de Juiz de Fora, alaranjou delicadamente e este extremo amor que me comanda fez-se matéria sobre o meu corpo e tive a imediata certeza que qualquer um que me visse notaria esse sentimento nos meus olhos confiantes.
Num instante, toda mágoa e todo sofrimento se disolveram com os beijos que ganhei no meu sonho e foi sorrindo que a linda face da minha namorada aproximou-se para dar mimos.
O sonho a comandar a vida, a vida a seguir sua obediente condição de percurso e essas avenidas preparadas a se encher da expectativa dos dias do fim do ano quando ficará a ilha sem mim por uns dias a fim de que possa visitar o país que Fernando Pessoa chamou de "o rosto que contempla".
Outra coisa não poderia vir ao pensamento quando a vista do quarto evocava essa coragem, essa certeza, essa maneira de encantar o mundo que a princesa me ensinou sem perceber: contemplar a grandeza da liberdade e ver para além das casas vitorianas e dos pinheiros quietos, o horizonte distante que quer-se tanto: "Com razão, sem razão/como é preciso/que andes por onde estás".
Assim, procurei a cama meio tonto desta plenitude de vida, dediquei o último pensamento a ela e adormeci.