terça-feira, maio 17, 2016

O jardineiro dos sonhos

Há quase dez anos eu disse adeus a tudo e a todos para vir viver o sonho. "Não chorem por mim, não façam da minha ausência uma ponderação para a tristeza", pedi-lhes em vão.
Recebia-me a capital do Reino Unido naqueles meados de Agosto de 2006 com a costumeira chuva de verão inglesa.
É crucial relembrar um episódio daqueles primeiros dias. Trata-se da circunstância em que estupidamente perdi o meu guarda-chuvas Ferreti, um exemplar objeto de uso da fidalguia de Belo Horizonte. Num desses dias de chuva, após entrar num autocarro inglês de dois pisos, vermelho, como é óbvio, resolvi pousar o gancho do guarda-chuvas na barra de apoio em frente ao meu assento. Ao chegar ao ponto de desembarque, pelo susto da novidade de tudo, não deu outra: esqueci da vida e lá deixei o Ferreti: fui-me embora fazer-me inglês.
Em que pese esse simbólico abandono de Minas, no entanto, a Inglaterra tratou a minha inocência com candura e paciência. Fui muito bem recebido. Os ingleses gostam de trabalho e comprometimento, e nos estudos que me propus a fazer, e também nos meus part-times, da mesma forma, tentei ser sempre diligente, e assim também já não era um estrangeiro a mais, mas alguém que comandava algum respeito e, ao ser dada a liberdade, alguma confiança. Com a ajuda de Deus, eu alcancei todos os objetivos que ambicionara ao chegar à Inglaterra, mas não venci em tudo.
Há quase dez anos, quando troquei completamente de vida para ir experimentar algo novo, eu pensava só em cumprir o sonho. Que bom é ter coragem de se viver o próprio sonho! Olho para trás e vejo o quanto já fiz na minha vida e consigo encher toda a caverna do peito de orgulho. Sem sobrar espaço para arrependimento nenhum, eu, e apenas eu, para além do nosso Senhor, no entanto, sei o que custou. Eu também perdi.
Penitenciei-me imensas vezes, e ainda hoje o faço, por todo o sofrimento que causei a vós, família e amigos brasileiros, e a tantos outros que, sem eu próprio devotar grande amizade, sempre tiveram por mim grande carinho e consideração, e amargaram também um pouco a minha ausência.
Aos amigos que ficaram, à minha linda família, digo-vos com grande susto: custa voltar e vê-los sempre mais velhos! É como se os nossos entes mais chegados envelhecessem de repente 10 anos, é brutal para a impressão visual desacostumada. Mas deixando de lado as brincadeiras, amo-vos, minha gente linda. Sóis o que de melhor a vida me deu até 10 anos atrás e isso não é pouco, é mesmo a maior parte da minha vida!
Eu não morri, no entanto. Vivo aqui no nosso Portugal dos antepassados, como eu insisto em chamá-lo, a fazer o meu percurso de uma maneira nova, uma vida nova. Não é uma vida em substituição à vida antiga, como se desta eu quisera livrar-me. Não pensai assim, pois não é verdade... É uma vida nova que responde a um chamado profundo que sempre houve dentro de mim, que pedia para avançar para mais além. Eu precisava de descobrir um mundo maior do que aquele que vós me havéis dado e do qual eu sou muito grato.
Agora eu sou capaz de olhar para trás e reconher que precisava de conhecer um mundo novo, um lugar em que os limites da minha própria origem fossem levantados, e onde eu pudesse ver o que valia para além do que já sabia, para além do que estava já à minha espera.
Eu paguei o preço: não pensem que o orgulho significa alegria. O orgulho é justamente a satisfação de ter vencido o sofrimento, a incerteza, a saudade e a angústia por acreditar em algo maior e mais valoroso que tudo isso. Foi o que eu sempre tentei fazer: pôr as situações contingentes em perspectiva e não permitir que alterassem as minhas convicções íntimas sobre mim mesmo e o meu destino. O pesar pelos retrocessos nunca foi maior que a vontade de superar essas dificuldades. A Inglaterra soube reconhecer esta atitute e cá no nosso lindo Portugal também a mesma postura tem sido, vez após vez, ano após ano, saudada com respeito e elevada pelos meus pares, pelos meus amigos, e até pelos meus conhecidos.
Não quero despedidas, porque até onde me disseram, a ponte do retorno não cai de velha ao se completar dez anos de exílio. Quero, isso sim, que os que ficaram para trás tragam-me na lembrança com o mesmo carinho que tenho por eles, e que eu possa estar presente na vida deles de formas diferentes enquanto a presença física não é possível.
O meu testemunho, talvez convenha esclarecer, não é um grito à emigração. O nosso país basta e provém a todos e mesmo aos estrangeiros, todos sabemos bem. Não foi por ser preciso que eu parti... No entanto, o meu apelo poderia ser o de ter coragem para viver em liberdade. O que mais quero, ó meus queridos amigos, é que vivéis as vossas vidas sem medo, e não deixéis para o amanhã indefinido a crucial importância de viver o sonho e trazê-lo, às custas que forem, ao sangue que se pedir de vós, à realidade.
O meu mantra nesses dez anos não foi o impetuoso "não te permitas fracassar", mas sim o prudente "não deixa que cresçam ervas daninhas no campo dos teus sonhos".
E por isso mesmo, caros amigos leitores, que ao cabo de quase dez anos, e se calhar para todo o resto da vida, assumi mais essa profissão de fé: ser um jardineiro de sonhos. Sóis todos bem vindos a juntarem-se à minha guilda.