sábado, junho 17, 2023

O Velho Gomes: um herói esquecido

Rosário da Limeira - a terra em que o Velho Gomes viveu e morreu

As nossas majestosas e imponentes montanhas, só as vemos inteiras se muito ao longe. Ao pé delas, não vemos nada para além do colosso que elas são. Dão-nos simultaneamente um sentido de grandeza e de pequenez. Este sentimento é o da mineiridade, no meu modo de ver, segundo a minha experiência de vida e a da minha família, tanto próxima, quando antepassada.
O belo mar de montanhas que se advinha como um impossível sonho de vislumbre, foi um horizonte aberto para o meu 4.º avô na linha varonil, Gomes José de Paiva. 
Ele viu para além do muro de dificuldades da vida uma determinação de justiça. O seu mérito não está só no que a tradição familiar nos legou na honrosa descrição de seu filho, meu trisavô, Antônio Gomes de Paiva (um "homem justo, correto e que não gostava de falsidades", como dizia a tia Lila), mas principalmente por um ato altruísta que o faz levantar do esquecimento para ser recordado como herói.
Muito pouco sabia sobre o Velho Gomes (como passo a tratá-lo a partir de agora, para facilitar) até poucos anos atrás. A informação fundamental era basicamente o seu nome completo: Gomes José de Paiva.
Esse registo foi colocado em dúvida algumas vezes, tendo havido muita gente que acreditava que a ordem dos nomes havia sido trocada, ou seja, ele se chamaria na verdade "José Gomes de Paiva". Mas isso não é verdade.
Há três anos o Velho Gomes começou a se revelar desde a pesquisa no registro civil e nos tribunais, tendo surgido discreto e firme em direção a uma memória digna de ser recordada.
Quando finalmente reabriu o cartório de Rosário da Limeira, fui confirmar afinal quando havia nascido o meu bisavô Maximiano Gomes de Paiva. 
No registro de nascimento do menino Maximiano, do dia 23 de Abril de 1893, consta como avós paternos: Gomes José de Paiva, falecido, e Umbelina Rosa de Jesus, lavradora, moradora de Rosário da Limeira.
Por ali retirei duas informações: a mais importante era a confirmação do nome do 4.º avô: era mesmo Gomes José de Paiva! Depois, fiquei a saber que naquele ano de 1893 ele já havia desaparecido. O vovô Miano nunca conheceu o seu avô paterno!
Depois de muito andar a espirrar por conta do pó naqueles livros de registro antigos, há muito sem serem abertos, lá encontrei um registro de nascimento de 1889: Gomes José Monteiro. Aquele primeiro nome me chamou a atenção, já que "Gomes" como nome próprio não é muito comum!
Ao ler o registro, descobri que o bebê Gomes era neto do Velho Gomes! O trisavô Antônio Gomes de Paiva (a partir daqui, chamo-o de vovô Antônio Gomes) tinha uma irmã: Hipólita Umbelina de Paiva.
A 28 de Setembro de 1889, quando nasceu o bebê Gomes, o seu avô Gomes ainda era vivo, sendo referido como lavrador e residente em Rosário da Limeira.
Depois ainda encontrei um registro de nascimento de um irmão mais velho do vovô Miano que infelizmente faleceu ainda bebê: José Gomes de Paiva. No registro de 29 de Outubro de 1891, o Velho Gomes já surgia como falecido.
Basicamente, até há poucos meses atrás, era isso que se sabia do Velho Gomes: o seu nome, que tinha sido lavrador, e que falecera entre 1889 e 1891. Quanto aos pais, a naturalidade, ou o que teria feito da sua vida... nada disso se sabia.
No entanto, como hoje o Tribunal de Justiça de Minas Gerais faculta um serviço de digitalização de processos históricos, e na lista desses processos em Muriaé surgiam alguns com o nome de Gomes José de Paiva, resolvi pedir a sua digitalização.
Foi a partir daí que mais informações apareceram: em um processo da divisão de terras da fazenda dos Monteiros, já de 1910, aparecia o Velho Gomes como um dos herdeiros de Domingos Francisco Monteiro, seu sogro. Dali colhi a informação de que tinha terras na Fazenda Boa Vista, entre Rosário da Limeira e Guiricema.
Foi ainda possível localizar o testamento do seu sogro, datado de 1846. No documento, em que a avó Umbelina era ainda solteira (tinha 15 anos), o Velho Gomes assina como testemunha, mostrando a sua proximidade com a família de sua futura esposa, embora ainda muito jovem, com apenas 17 anos.
Esses poucos documentos foram apenas uma faísca da grande luz que ainda viria surgir sobre a vida do meu antepassado! A grande notícia ainda estava por vir.
Havia um processo criminal de tentativa de assassinato em que o Velho Gomes surgia como testemunha. Sabia também de antemão que a vítima, Amália Maria da Conceição, era sobrinha dele. Ali já surgia uma indicação inédita: uma parente do Velho Gomes que remetia para gerações anteriores.
Quando finalmente chegou o processo (por alguma razão estava repartido em diferentes arquivos, tendo surgido aos poucos), uma história incrível veio à tona.
O jovem casal Inocêncio e Amália não se dava muito bem. 
Ela era muito provavelmente de São Caetano do Xopotó, (hoje, Cipotânea), Piranga. Filha de uma irmã do Velho Gomes que se chamava Ana Maria da Conceição, segundo sugere o processo. Para além disso, diferentes relatos mostram Amália como uma mulher um bocado avoada, teimosa e dada a mexericos e a convívios com mulheres de má fama. Dito por outras palavras: não era santa!
Já Inocêncio era de São Paulo do Muriaé. Tendo ficado órfão de pai muito novo, a mãe o colocou como aprendiz de seleiro. Depois abandonou o seu mestre e andou um bocado sem rumo na vida, errando pela província até regressar à sua terra. Foi daí que a família lhe arranjou o casamento com Amália.
Casaram-se quando Inocêncio tinha 22 anos de idade e Amália apenas 20 anos, fixando residência em Rosário da Limeira. Foi um casamento infeliz pelo conflito de mentalidades: um rapaz revoltado, de temperamento difícil, juntado com uma moça tola e teimosa... os dois muito jovens e sem saber lidar com as suas próprias limitações: tudo apontava para um desastre.
No dia de São João de 1879, havia um casamento para o qual Inocêncio e Amália haviam sido convidados. Segundo ele, Amália recusou o convite, tendo ficado em casa de um casal amigo, e ele foi ao casamento sozinho. Já ela diz que no dia dessa festa de casamento, ao engomar o paletó de Inocêncio, colocou-o por baixo de outro paletó. Ao apanhar o paletó de cima, Inocêncio deixou cair ao chão o que tinha sido engomado, sujando-o um pouco. E foi aí (supostamente) que as desavenças escalaram. Inocêncio irritou-se e saiu de casa sozinho, ameaçando-a ao dizer que Amália lhe iria pagar por aquilo quando ele voltasse.
Ao regressar da festa no dia seguinte, Inocêncio não encontra Amália em casa e sai à sua procura. Descobre que ela já não estava na casa do casal amigo, que informou que ela fugira. 
Com receio de que o marido lhe fizesse mal, Amália refugia-se na casa de Pedro Thereza e, depois, de João Luciano, homens de bem de Rosário da Limeira. No entanto, receosos da vingança de Inocêncio, foram ter com o Velho Gomes a pedir que ele acolhesse a sobrinha, o que o meu antepassado assentiu prontamente.
O último refúgio de Amália foi a fazenda de propriedade do seu tio Gomes. Na fazenda do Pombal, o Velho Gomes vivia com a sua esposa Umbelina e três de seus filhos: Antônio Gomes de Paiva (o vovô António Gomes), de 18 anos de idade, a tia Hipólita Umbelina de Paiva, de 15 anos de idade, e o tio João Gomes de Paiva, de apenas 12 anos. 
Curiosamente, é o tio João (uma criança) que sorteia o juri popular que julgou o desgraçado do Inocêncio! 
A tia Hipólita provavelmente também vivia com eles, pois era ao menos três anos mais nova que o vovô António Gomes. Ela, no entanto, não é referida no processo.
Descobri por documentos no cartório de Rosário da Limeira, confrontando com outras informações, que Gomes e Umbelina tiveram ao menos ainda mais uma filha: Rita Umbelina de Paiva. Ela, no entanto, era provavelmente 3 ou 4 anos mais velha que o vovô António Gomes, sendo já casada ao tempo dos eventos aqui narrados, em que deveria ter de 20 a 22 anos de idade. Já agora, outra curiosidade: foi através do casamento da tia Rita com Germano Alves Pereira que, mais à frente, o vovô Antônio Gomes irá conhecer e se casar com a vovó Augusta, sobrinha de Germano!
Acredito que Gomes e Umbelina possam ter tido mais filhos, mais velhos que a tia Rita. Isso porque quando ela nasceu em 1856, os seus pais tinham já 27 e 25 anos de idade, sendo muitíssimo provável que se casaram bastante mais cedo.
Pela composição do nome dos filhos (em que as filhas receberam o nome próprio da mãe como nome do meio, e os filhos o nome próprio do pai a seguir ao seu primeiro nome: um método típico daquele tempo e sem variação neste caso), também se descobre que "Gomes" nunca foi um sobrenome na nossa família, mas sempre uma homenagem ao Velho Gomes, mesmo que impercebida desde há pelo menos 100 anos!
Era essa portanto a casa do Velho Gomes na fazenda do Pombal, em Rosário da Limeira, em 1879: Gomes, Umbelina, Antônio, Hipólita e João.

Cachoeira do Pombal, em Rosário da Limeira, na região da Fazenda do Pombal


No dia 8 de Julho, Inocêncio finalmente encontra Amália na Fazenda do Pombal. Ao chegar à sede, dá com o Velho Gomes a ferrar um animal no terreiro, e de forma amistosa e tranquila, ajuda-o a fazer o serviço. Depois disso, pergunta sobre Amália e ao ser informado que ela está dentro da casa, pede ao Velho Gomes para levá-lo ao encontro dela.
Ao entrar na sala da casa, estava Amália noutra repartição, mas já em prantos, acompanhada da avó Umbelina e da moça Edviges, uma vizinha que frequentava a casa. Ao ser chamada pelo Velho Gomes, Amália surge na sala já alterada.
Inocêncio então manda que ela se sente. A esposa resiste de início, mas depois acaba por sentar-se. Daí começa uma sucessão de acusações: diz para que ela apanhe nas coisas comuns da casa deles que entretanto desapareceram e as devolva. Depois de ouvir de Amália que já as tinha distribuído a amigas, diz que ela o havia desgraçado. Amália responde que ele é que a desgraçou... No ponto alto dessa miséria, Inocêncio saca de uma garrucha de dois canos que diz haver comprado para a matar, e que só não o faria ali por respeito à casa. 
No entanto, Amália continua a acusá-lo, e ele arma o cão da garrucha, no que grita a avó Umbelina: "O que é isso, senhor Inocêncio? Em minha casa?" E saiu o tiro que atingiu Amália abaixo do seio esquerdo. O covarde mirou mesmo no coração da mulher!
Neste momento, em risco de sua própria vida, o Velho Gomes lança-se para cima de Inocêncio e consegue expulsá-lo da casa e tomar a garrucha, que tinha o segundo cão já armado. Entretanto, as mulheres levam Amália para dentro da casa, a presumir que ela já estava morta.
Do terreiro da casa, Inocêncio ainda bradou para lhe entregarem a Amália em até 24 horas, e que se não o fizessem, ninguém naquela casa poderia se queixar do mal que lhes viesse a acontecer.
Em meio à confusão, algumas horas depois, chega o cunhado de Gomes, Antônio Francisco Monteiro, que era subdelegado do Distrito de Rosário da Limeira, e faz a prisão de Inocêncio.
Por intervenção divina, as balas de chumbo penetraram o corpo de Amália e saíram do outro lado, tendo ela sobrevivido ao evento lamentável.
Já Inocêncio, amargou uma condenação de 20 anos nas "galés" (como ainda se chamava a prisão) e multa. 
Alguns anos depois, na cadeia de Ouro Preto, onde cumpria a sua pena, enviou um sofrível poema para um jornal, que o achou merecedor de publicação. Nos versos da sua infelicidade, culpa a Amália, aos tribunais, à fortuna... só não assume as próprias culpas! Na mesquinhez daquela alma, não havia limites para a humilhação.

Poema do desgraçado do Inocêncio publicado pelo jornal "Província de Minas", em 1885

O triste evento entre Inocêncio e Amália, no entanto, tem hoje um efeito redentor: foi graças aos seus registros que a memória do Velho Gomes pode ser aqui reabilitada!
No processo ainda foi possível colher mais algumas informações muito preciosas sobre o meu antepassado: era alfabetizado (ao menos sabia assinar o nome, tendo uma bonita assinatura), a sua idade e a sua naturalidade. Em 1880 ele contava com 50 anos de idade, portanto, era nascido em 1829 ou 1830. Na sua qualificação consta ainda a sua naturalidade: o distrito de Piranga, município de Mariana.
Essa última informação é muito importante, pois ela posiciona o Velho Gomes no movimento de povoação da Zona da Mata Mineira: com o declínio da mineração desde o início do século XIX, as famílias marianenses migraram para ocupar a nova fronteira de Minas Gerais. A avó Umbelina também era de Piranga, daí presume-se que vieram para Rosário da Limeira já casados.
De tudo o que foi possível apurar, a verdade é que o Velho Gomes foi um homem simples, mas digno. Um lavrador que ousou desbravar um mundo novo, esforçando-se para construir um legado para a sua família. Mais importante: quando foi preciso intervir para proteger uma pessoa indefesa de uma agressão injusta, não pensou na sua própria vida, mas em fazer o que era certo,  segundo a sua fé e os seus valores.
"Para ser grande, sê inteiro", escreveu Fernando Pessoa. O Velho Gomes teve grandeza o suficiente para ver o mar de montanhas, elevado pela sua integridade. 
A sua nobreza transparece na forma como seus filhos batizaram a própria prole: todos os muitos filhos do vovô Antônio Gomes e do tio João receberam "Gomes" como sobrenome (todos nascidos depois do desaparecimento do avô, com exceção do tio Augusto, nascido em 1889), e o único filho da tia Hipólita foi batizado mesmo de Gomes. Tais gestos só se justificam pelo amor, pela gratidão e pela saudade.
Gomes José de Paiva: um herói esquecido da nossa família nas gerações mais recentes, mas favoravelmente recuperado aqui desde documentos poeirentos e luminosos.
Paz à sua alma.

Assinatura de Gomes José de Paiva no testamento do seu sogro Domingos Francisco Monteiro