sexta-feira, outubro 25, 2019

Encontra-me num sonho

 Maxfield Parrish (1870-1966) - Morning

Começo já com uma advertência, que é para poupar o seu tempo e depois não levar com críticas injustas: o que se segue é um lamento de um poema perdido. Caso não se interesse por poesia, ou o belo seja uma apreensão muito distante ou talvez até mesmo desnecessária para si, não há mal nenhum. Está um dia lindo e há muito que fazer na vida. Imagine que vive no norte da Europa e vá cuidar das coisas práticas.
Muito bem, ficamos nós, apenas.
Há uns tempos largos foi-me dedicado um poema muito singular. Um dos seus versos, que dava o tom daquela poesia tão bem conseguida, fazia um pedido que abria a imaginação a possibilidades imensas: "Encontra-me num sonho."
Todo o poema era sobre viver a ilusão. Repara, viver, e não propriamente divagar na ilusão. Não quero ser injusto e reproduzir erradamente a estrutura, que recordo como leve... desprendida de modelos, mas muito natural e doce... No entanto, posso dizer que afrontava um pouco a indecisão e o medo.
Sem deles fazer pouco, propriamente, ainda assim exigia que se mostrasse as cores verdadeiras. A vida o exige, não há tempo para esperar ou ver como vai calhar. Era um canto à liberdade e à coragem que me entrou pelo peito adentro como as setas que espetaram em São Sebastião. Mas a minha morte foi a de uma vida menor, sem encanto e sem virtude. Nasceu daqueles versos uma convicção nova no sentido dos sentimentos elevados, que efetivamente passavam a justificar tudo. Lá está, foi mesmo o caso de viver a ilusão.
A loucura, no entanto, não dominava em absoluto o poema. Como toda grande peça do género, era equilibrado, mas imparável na sua marcha em direção à ideia poética.
A próxima estrofe docemente recordava os afetos. Como as promessas das delícias do paraíso, havia ali "burburinhos de água clara" e "mil estrelas nos sorrisos que me davas", para honrar o "Na esperança de teus olhos". Estavam ali a voz baixa a meio da noite a confidenciar as inseguranças, mas sem medo nenhum, e uns olhares de admiração que brilhavam intensamente de um para o outro. Tudo estava ao alcance.
Por fim, uma reflexão a piscar o olho ao fatalismo. Sem dramas sentimentais inúteis, sacrificava de bom grado no altar excelso da verdade as pretensões de receber honras ou atingir estatutos: todo o ciclo da vida estava bem justificado pelo amor. Mas atenção, não qualquer amor. Um amor maior que tudo, que está à frente dos outros e mesmo por isso não está condicionado por nada: ele é. Assim a vida encontrava a morte com um sorriso... íamos afinal para as mãos de Deus, propriamente em união com o divino.
Veio-me num sonho (acredita se quiseres, leitor... já chegaste até aqui, portanto...). O verso a repetir-se, repetir-se, sempre como um mantra hindu que me induziu a um transe ainda agora a fazer-se sentir. 
Decidi ir à sua procura. Entretanto, essa fantástica composição de poesia, fotografia poética de um dos pontos mais bonitos da nossa vida, esfumaçou-se, por assim dizer, quando o provedor dos serviços de correio eletrónico resolveu que os arquivos antigos eram para apagar... "O senhor já não os acedia há mais de dez anos." 
E por que não havia copiado o bendito poema para o computador? Por que não o havia impresso, emoldurado, ou mesmo decorado? Ora, isso é fácil de responder... Mas não me demoro onde a imaginação pode fazer melhor trabalho que eu.