quarta-feira, dezembro 28, 2005

Um sorriso amigo

De longe, do outro lado da rua, vi uma moça a sorrir para mim e assim, como que intrigado com aquilo sorri de volta esperando perceber o que se tratava e reconheci imediatamente que tratava-se de uma amiga querido, que já há algum tempo não via.
Ela seguiu seu percurso, também eu segui o meu, mas acho que ambos, após aqueles acenos, seguimos diferentes.
Como as marcas dos pés pelo caminho maleável, também caminhou por cima de mim aquela presença, de corpo pesado, de simbologia rica e marcados traços inesquecíveis, traços de quem sabe amar à absurda potência de não mais medir, de quem soube arranhar e depois encobrir delicados palmos de coração puro.
Conseguiu finalmente sair da casa dos pais, sonho antigo que já nutria, para hoje ir viver em Ouro Preto, onde estuda história, querendo, entretanto, ser psicóloga, paradoxos sem nexo, tão típicos que quase dão tédio, não fosse a constante do seu encanto mágico e o despudor da sua coragem, generosa areia de colorir nas cenas bem compostas em que despreza os que se aproximam demais.
Imagino a composição delicada da sua presença em Ouro Preto, sua vida em Mariana... seu respeito pelo órgão que a matriz guarda, preciosidade da primeira cidade de Minas, assim como seu bem estar na praça próxima ao bispado, suas reflexões a caminho e junto da igreja do Rosário, tão simples e tão feia... Em Vila Rica imagino-a a se misturar com a beleza da cidade, com a desenvolutra das ruas, a certeza dos cheiros, a boa ostentação de não ser rei mas ainda ter toda a majestade. Eu, que tantas vezes contei pra ela da mística dessa cidade, fico agora imaginando-a nos caminhos que emoldurarm meus sonhos mais felizes.
Meu encontro, a fazer mais fundo esse e tantos desencontros, foi da mais genuina nostalgia que se pode imaginar. Foi bom ver marte a olho nu no horto florestal e conversar sobre julgar os outros. Curtia imenso as formas da sua mão, aturava seus discos baratos tentando doutriná-la a ser menos agressiva, andávamos então compassados, como um buquê bem costurado, fazia boa figura ver-nos juntos.
Na rua, assim separados, pessoas já tão diferentes, talvez teria sido melhor chorar, pois não havia mais graça em nós, havia esta forma de aparência, que traz consigo um memória, este algo que com mais certeza pode-se considerar o que fui e o que minha amiga foi.
Imaginando o contrangimento que seria chorar em público, ela, muito coerentemente, preferiu sorrir, forçando talvez alegria, e eu, bem mais de surpresa do que pela reação adequada, sorri de volta, mais comedido.

sábado, dezembro 24, 2005

Em transe

Contaram-me hoje de manhã o caso e assim, só hoje, por honestidade e dever cívico, comunico em crônica a incrível aventura que me foi relatada.
Disseram-me que dois homens entraram bastante determinados e com um talão de dívidas numa velha casa com fachada do início do século passado, paredes caiadas já de um tom mais acinzentado, cheiro usual de lugar habitado por dezenas de anos seguidos. Procuravam por uma moradora famosa do prédio chamada Eleonora Ricarda. De sua fama, sabe-se que conhece feitiços e domina o míster de fazê-los e disfazê-los através de invervenções bizarras. Para uns, motivo de riso, para outros uma mulher estranhamente convicta de seu trabalho e cuja fama era devida de fato.
Sentaram e esperaram. O mais novo era gerente, tinha 32 anos e era tão magro que a cara suada e puxada para junto dos ossos fazia lembrar o famoso poeta mineiro já na velhice, Carlos Drummond. O outro era mais alto e mais velho, tinha porte de urso e uma calvice declarada mas ainda não vencedora: apenas a frente estava pelada, fazendo-o parecer ter uma grande testa: era o dono da empresa e quem enfim, devia mesmo ter o pescoço junto à faca dos agiotas.
Após vinte minutos, já habituados ao cheiro de insenso e à constante brisa fria que vinha de um pátio interior, surgiu uma mulher madura e com olhar de víbora a mirá-los com a mão na cintura: "Sim, senhores, desejam algo?", ao que coube ao empresário responder "Tenho dívidas e não tenho como pagar, preciso de uma solução". Talvez fosse melhor ter tentado renegociar as dívidas, talvez fosse melhor ter conversado pessoalmente com cada credor, ou ainda ter tentado substituir todas por uma dívida única junto a algum banco, entretanto, pensava o homem grande, era melhor procurar um fim definitivo para seus credores.
A mulher escutou o relato sobre os problemas econômicos, dos juros injustos, das ofensas pessoais. Foi ouvindo e concordando com a cabeça, mas sem evitar que as pontas da boca ensaiassem um sorriso de deboche, nada que os aflitos senhores percebessem.
Fê-los entrar na sua sala de esforços sobrenaturais. Sentaram-se ambos num grande sofá de veludo vermelho, de um tom próximo à cor do vinho.
Caberiam confortavelmente sentados 5 distintos senhores naquele sofá, mas aqueles seus então ocupantes não notaram seu tamanho avantajado, os seus olhares eram da decoração algo exageradamente mística e exotérica, algo estranha aos místeres burgueses. No fim conformaram-se e voltaram a atenção à voz que lhes dirigia Eleonora Ricarda: concluiram que quem procura uma ocultista tem mesmo de se deparar com coisas que se ocultam!
A senhora pediu-lhes que fechassem os olhos e deu-lhes um forte incenso para que cheirassem. Deveriam tomar uma profunda aspiração da fumaça, vezes seguidas e assim, no fim do processo, estavam inebriados, a revirar os olhos e a sorrir compulsivamente, a ser exageradamente francos, muito menos do que gostariam.
Contaram seus pecados, vergonhas, detalharam planos maus de exploração e depravação sexual, debocharam de alguns devotados amigos e reconheceram suas dívidas como justas. Ainda em transe ela perguntou se se arrependiam de alguma coisa, mas eles pareciam felizes em contar aquelas coisas, como se a ausência dos freios sociais lhes possibilitassem a relalização do antigo sonho de se gabar do mau que fizeram.
Quando dispertaram do sonho, Eleonora disse-lhes que na manhã seguinte não teriam mais que se preocupar com dívidas, que estaria tudo resolvido em relação àqueles credores.
Na manhã seguinte ambos os distintos senhores amanheceram mortos: o coração de ambos estourou de madrugada.

terça-feira, dezembro 20, 2005

Símbolos do natal

A praça da liberdade já está bonitamente adornada para o Natal! Cuidou com capricho o governo estadual e a companhia de luz de Minas Gerais de fazer da alameda que corta a praça, ligando em linha reta o fim da rua João Pinheiro e as portas do Palácio da Liberdade, o passeio do amor, visto que há corações luminosos em fila. O restante da praça também está decorada, mas com luzinhas normais, sem atropelos maiores, numa harmonia que é bonita, porque nesses dias de chuva sua luz reflete no parelepídedo molhado, deixando tudo pleno do espírito de esperança que o nascimento do Salvador faz renovar.
Talvez tenha ficado parecido com bandeirolas de festas juninas... enfim, originalidade é, antes de tudo, não ter vergonha de ser como se é, e somos mineiros.
Também na praça Sete de Setembro e na rua Rio de Janeiro há decoração, esta providenciada pelo Município. Muito feinha, infelizmente. Junto à mendicância local e a pressa dos transeuntes, somado a isso, o aspecto de decadência do centro da cidade faz parecer que o adorno é um deboche.
A poucas quadras de distância um lugar do outro: um majestoso e romântico o outro de mal gosto, debochado, ambos remetem a um novo natal e a mais um natal.
Enquanto novo e cheio de esperança, o natal aproxima-se em espectativas boas de seu significado, boa nova, enfim. Já como mais um natal, estima-se o pesar consumista da data, com significados superficiais, marcado por comemorações do comércio que pela data esperava salivando, marcado ainda pelas campanhas filantrópica circunstânciais que nada resolvem em definitivo, assim, é mais um natal.
Lamentem ou não, o povo não pratica religião com tanta devoção como já se fez um dia. Claro que há igrejas cheias e somos em maioria absoluta cristãos, mas aquela devoção natural, aquela fé cheia de amor, isso não vejo, principalmente não vejo a identificação desse amor à Deus e o natal, justamente expressão da verdadeira fé.
Hodiernamente, a cultura de consumo elenca como valores as piadas rápidas e divertidas, mesmo que imorais, e a ostentação. Deus não gera lucros senão para essas pseudo religiões que promovem a chamada "extorsão da fé" com suas absurdas cobranças de dízimos, protegidas pela proteção constitucional à liberdade de culto, mas esses abusos logo serão cerceados. Com exceção, portanto, dos "extorquidores da fé" e talvez das livrarias religiosas, Deus não dá muito lucro. Mitos vindos da religião, entretanto.
Assim se dá com a Páscoa em alguma escala, mas sobretudo com o Natal. Enraizadas no gosto popular justamente pela fé que simbolizam no Novo Testamento, qual seja, a da paixão do Salvador e de seu nascimento, respectivamente, essas datas lembram apenas palidamente esses momentos, sobretudo quando das reportagens sobre presépios feitos de algum material curioso ou da encenação da crucificação por algum filipino radical.
Vivemos o tempo de ser filho do amor e da ira, com a decadência dos seculares conceitos morais para emersão uma ética sem balizas visíveis em que os pobres, também acometidos no íntimo pelo falta de prática da religião, enxergam mais claramente sua situação de submissão e exclusão, talvez aqui a única conseqüência boa do "mais um natal", mas ainda assim é ruim, pois se por um lado não são apaixonados por Deus, por outro são apaixonados por consumir, como toda gente, e daí sua falta de fé só serve para romper as amarras que a piedade coloca à violência.
Gosto dos corações luminosos na praça da Liberdade, não é decoração de centro comercial, é símbolo do amor, mas nem todos vêem assim. Talvez se houvesse lojas na praça parecesse menos estranho a esses mais radicais consumistas de natal.
Nesse novo natal, que todos renovem seus votos de amor ao próximo, de mitigação do egoísmo, de devoção à verdade, ao perdão e à humildade: foi a isso que veio o menino que nasceu no dia 25 e é isso que se deve celebrar.

terça-feira, dezembro 06, 2005

Nostalgia e remelas

Não quero cantar a minha cidade, quero deixá-la em paz. O cimento frio e duro de suas casas, o desenho de suas calçadas portuguesas, o frescor indescritível dos meus sorrisos à avenida Rio Branco... tudo isso continua existindo, mesmo quanto ao frescor dos sorrisos, pois é certo que outros estudantes me sucederam nesse deslumbramento.
Nas fotografias dos meus amigos a moldura dos momentos é essa cidade distante que parece hoje significar ser também uma amiga, já que foi o gigantesco picadeiro desses graciosos números e, certamente porque foi um querido espetáculo viver entre os juizforanos e ser um deles, mas já vinha me esquecendo de grandes virtudes dos daquela cidade, como a hospitalidade e a tradição.
Apanhou-me pela orelha o avô de um colega de estágio que é juizforano e com quem conversei bastante nesse fim de semana durante um almoço em sua casa.
Como eu, foi aluno na Academia de Comércio e em seu escritório de advocacia ninguém menos que meu querido professor de Direito Civil, magistrado aposentado e hoje advogado, Israel Carone, foi seu estagiário!
A essas impressões meu pensamento considerava pesadamente sobre as ausências e da boa nostalgia de recordar invadiu um sentimento de perda que procurei disfarçar com sorrisos numa crescente sensação de sufoco. Salvou-me o tique do velho advogado, ao rir e levantar alto as duas sobrancelhas, algo que eu achei bastante engraçado, num impulso de estupidez, mas enfim serviu para distrair-me.
Conduzi a conversa para o futebol, falamos do Tupi Futebol Clube, tentei ir à literatura, falamos de Murilo Mendes e Pedro Nava, fugi correndo pedir abrigo à contra-cultura e falamos do apresentador Márcio Garcia e sua boate na Cidade Alta juizforana... Quase aceitei o roteiro, conformando-me a ver surgir rotas de lugares, caminhos marginais, a cidade do alto da Garganta do Dilermando a pedir de mim um simples mergulho nas suas entranhas e o eco do "eu não posso te amar" sobrou em mágoa e olheiras, no desespero de paixão assassinada que me deixou com um remorso imenso, tanto que olhei para fora, em direção à linda varanda, como quem ansiasse por ver nesse mesmo horizonte uma forca preparada para dar fim às humilhações. Não havia forca, tratei de perceber isso. Havia um lindo horizonte.
Percebi que causei algum espanto na gentil senhora, avó de meu amigo, quando esvaziei em menos de um minuto a tacinha de sorvete: aquela sobremesa separava-me da porta. Correr, correr para fora, era tudo que ordenavam meus pensamentos, mas há que se ter etiqueta à mesa. Pela precipitação ao tomar o sorvete, preferi aceitar outra taça a ter que explicar porque devorei com tanto desespero a primeira: sem dúvida era porque estava divino.
Aproveitei os instantes finais, o delicioso café passado na hora, para esquecer de boa vontade dessa ânsia em não perder, em acumular lembranças desmedidamente. Embora custem caro as mudanças e não haja na vida nada mais desconfortável, também não há nada que seja mais constante.
Em casa meditei profundamente sobre aquela querida cidade em que vivi. Lembrei-me de cada rua, praça, avenida, lembrei-me das casas onde vivi, dos familiares que deixei e das casas dos meus amigos, lembrei-me vivamente do meu colégio e da minha universidade, e depois de recordar-me vivamente dos sorrisos, percebi que era tolice lamentar que não os tinha, já que os tenho no coração e qualquer tristeza ou nostalgia os desmereceria.
À melancolia cheia de paixão da saudade, perpassam mais e mais os ventos de manhãs novas em ruas e pessoas que para mim são novas, nessa sempre nova capital mineira.

segunda-feira, novembro 28, 2005

O mundo todo é hostil

Pátria do mundo, eis a melhor definição do Brasil. Aqui há gente de todo lado, claro, mais brancos e pretos que de outra etnias, mas também acha-se amarelos, principalmente a vender pastéis e nas lavanderias e, claro, vendendo contrabando!
Os séculos de opressão contra o Brasil foram suficientes para, nesse tempo em que não existe sonho socialista possível a fazer frente ao sistema de exploração do homem pelo homem, insentivar um revanchismo tolo e cruel em muitos aspectos. Vivemos um tempo em que a fraternidade não é possível, não a pura fraternidade, de querer bem aos outros por convicção. É preciso querer bem ao próximo por obrigação.
Deste modo, o Estado brasileiro, como tantos outros, cria e implanta programas, leis, regras de comportamento dos funcionários e repartições públicas para implantar a fraternidade. Como eu disse antes, é uma política compensatória de fraternidade. Compensa-se aos negros por terem sido escravos, compensa-se as mulheres por terem sido subjugadas, compensa-se os paralíticos e outros deficientes por razões óbvias, compensa-se os velhos e crianças, por não terem forças suficientes para enfim deixarem de ser compensados!
Outra grande falácia do estado é o serviço de correios e telégrafos: no horário de almoço deviam estar com todos os guichês a atender, mas não é isso o que acontece, como ocorreu comigo no horário de almoço.
Tinha 15 minutos para postar uma correspondência. Pois bem, parece tempo suficiente, mas não quando se quer um regime de fraternidade obrigatória! Explico-me: com grande gentileza e calma, perguntei à atendente se tinha que ir à fila para comprar um selo postal que custa R 0,55. Sua resposta foi : "Claro! A fila é igual para todos!" Sua rispidez me assustou, mas retomei meu lugar na fila agradecendo. 25 minutos depois fui atendido e chegou junto de mim uma senhora que quis comprar três selos do que a atendente prontamente interrompeu meu atendimento e vendeu-lhe os selos sem sequer pedir-me licença. Indaguei dessa sua atitude, mas ela não respondeu de imediato, disse antes que não iria postar a carta porque o código postal estava errado, mas que iria me vender o selo e colou-o no envelope antes que eu a pudesse impedir. No fim disse ainda que eu não lhe deveria chamar a atenção porque a mulher era idosa e eu não, daí sua preferência, eu esclareci que tinha feito uma pergunta apenas e lhe recordei que tinha dito que a fila era igual para todos.
Fato é que, parafraseando George Orwell, uns são mais iguais que os outros! E para promover essa igualdade não se organizam debates públicos, não se incentiva o desapego do individualismo (fatal para o sistema de exploração do homem pelo homem), não se investe nas escolas públicas, nem se incentiva o povo a amar sinceramente. Tenta-se a fraternidade pela força, como um paradoxo difícil de engolir, louco como nosso tempo, cambaleante como o melhor whisky.
Não digo que velhos não mereçam cuidados especiais, principalmente mensalidades menores dos planos de saúde! Mas não os dispensaria de atividades que são plenamente aptos a realizar. Da mesma forma, cotas para negros em universidades públicas e idade menor para aposentadoria das mulheres: benefícios que não se justificam gratuitamente.
É deprimente que o Estado se debruce nessas compensações, onerando financeira e psicologicamente a parcela produtiva da população, como se estivesse a pagar uma "dívida" e ainda mais deprimente é o fato desses "beneficiados" calarem-se sobre seu desmerecimento particular para recebê-las.
Se todos não fossem tão agressivos para implantar a fraternidade, sob o prisma de uma desforra ancestral nada mais nobre que as velhas opressões, talvez ela fosse mais possível e enfim surgisse por si mesma.

terça-feira, novembro 22, 2005

O Clube Atlético Mineiro

Gente a sorrir de felicidade e alívio. Não foi outra coisa que se viu no Mineirão no dia 20 de novembro. Enquanto os jogadores do Clube Atlético Mineiro esforçavam-se para garantir a vitória pelo placar mínimo, a imensa torcida suava junta, berrava e quase todos bastante bêbados, chingavam os adversários e o árbitro em gestos deselegantes para uma igreja ou um restaurante sociável, mas necessários a uma batalha verbal e apaixonada como a que se travou entre o Galo e o Coritiba: sem parar um instante de torcer e apoiar a equipe, sempre cantando o hino e com fé na vitória, a massa de atleticanos foi muito feliz nesse dia, de uma alegria pura e emocionante na sua sinceridade sem interesses. Uma das faixas foi emblemática desse sentimento, trazia o escudo do Atlético em forma de coração e em letras imensas dizia: "meu Galo, minha vida".
Lambão e generoso com os inimigos durante quase todo o campeonato brasileiro de 2005, o time do Galo encontra-se em estado de perigo, sob risco de ser rebaixado à segunda divisão do futebol do Brasil. Resultado alcançado por jogadores desmotivados, sem amor à camisa e mais que tudo por planejamento mal feito, o 1º campeão brasileiro agoniza tristemente.
No domingo, entretanto, houve algum alento: após duas boas vitórias longe de Belo Horizonte, contra o Paysandu e o Fluminense, foi a vez de vencer o Coritiba em casa para deixar a última posição do campeonato, mas ainda não a zona de rebaixamento, da qual tem que se livrar com uma combinação prodigiosa de resultados junto da série contínua de mais duas vitórias, contra o Clube de Regatas Vasco da Gama em Belo Horizonte e contra o Juventude em Caxias do Sul. Tarefa ingrata, a tomar-se pela fama de algoz que sempre faz valer o time da cruz de malta.
Isso tudo, entretanto, interessa muito mais aos matemáticos e dirigentes, além dos próprios jogadores, do que precisamente à torcida que encheu o estádio no domingo.
Entre os quase 40.000 torcedores, muitos havia que tinham tomado três ônibus, gastando mais de 2 horas para chegar, voltando para casa perto das 10 da noite, tendo que levantar às 4 e meia no outro dia para retomar a labuta. Mas naquelas horas de sacrifício que se seguiriam depois, quanta felicidade anestesiava ao relembrar o gol do Atlético e a certeza íntima e sagrada, inconfessável aos mais reservados, de que sua presença foi essencial à vitória, de que seu grito e seu sorriso alegraram os desmotivados, de que o Galo forte vingador que cantou tantas vezes junto da letra do hino, só existe enquanto time e torcida ungidos na fé neles mesmos e no futebol como desporto símbolo da virilidade, da amizade e da luta! Desta forma, os atleticanos fazem valer o seu ideal de vencer e de honrar o nome de Minas.

quarta-feira, novembro 16, 2005

Dezesseis de novembro

Uma candura e um apelo. Um sentir próprio das pessoas que amam sinceramente. Sente, sente a vida em todos os seus sentimentos, sente o amor que tem à sua volta e se regozija desta boa estabilidade de sentir.
Talvez deva lembrar suas feições de gentileza, cortesia e generosidade, cada uma de suas tão grandes e tão raras qualidades. Caberia ainda uma digressão exagerada sobre os seus diferentes sorrisos, cada qual com diferentes significados, e uma outra sobre seu cheiro, aquele que a brisa marinha influenciou, como um rochedo à beira mar que vai ficando liso com os séculos. Tudo isso não bastaria, pois é mais e maior que as metáforas, mesmo perfeitas e justas, sobre ela.
Surgem seus esforços de dedicação sempre precedidos de seu incomparável tato em não ferir. Constroem-se sua indizível pureza e seu pudor em ser de outra maneira, como dois componentes de uma só virtude. É ela mesma e isso dá muita alegria, pois de outro modo não seria tão doce, nem tão querida, nem tampouco o dia de hoje seria dezesseis de novembro.
É dia dos seus anos! Cometas a rasgar o céu desprevenido vêm dizer ao mundo que é para alegrar-se. Não é uma mártir dos pecados, mas redime o mundo de ser tão traiçoeiramente bobo e superficial.
Surpreendentemente habita os lugares improváveis. Por mais de uma vez já a surpreendi nos céus dos parques, nas esquinas tristes e distantes do centro da cidade, na saída do trabalho quando o tempo era bom e eu me senti enfim apto a apreciar o que quer que fosse. Lá estava essa moça, a sorrir diligentemente seu incomparável sorriso aos meus pensamentos, a trazer-me de volta das considerações mais absurdas sobre a condição humana, a resgatar-me sem saber de algum imaginário ou real degredo.
Além de mim, tantos outros se alegram. Seus pais, suas irmãs, seus colegas de trabalho, seus amigos, todos que a conhecem, hoje batem palmas! Alegram-se por tê-la por perto e por ela dividir com todos esses seus sorrisos e essas suas gentilezas, essa conversa cheia de interesses sinceros e preocupações justas, e sabem muito bem todos eles o quão especial ela é e como fica bonita quando um pouco preocupada!
Hoje queria beijá-la e dizer pessoalmente o quanto o futuro reproduzirá suas virtudes em felicidades e grande paz, que Deus há de garantir-lhe boa saúde, que todos os seus sempre se alegrarão mais e mais do seu convívio. Distante, todavia, reproduzo meus sentimentos nessa escrita e ambiciono coisas loucas!
Entre tudo, ambiciono um baile a mais para enfim conduzir seu corpo dançante entre as vias estelares de um salão sem estrelas (mas cheio de gente bêbada e ansiosa, mas enfim, há espaço para nós lá também!) E novamente poder fazê-la sorrir, talvez até gargalhar, construindo alguma alegria e tendo grande alegria, e então, como um mendigo satisfeito, não diria "Deus te abençoe", mas "que lindo sorriso!"

sexta-feira, novembro 04, 2005

Fingi na hora rir

Desaprendi a ler daquele nosso jeito antigo. Fui apanhado pelos cabelos por um índio escalpeador, cortou-me essa capacidade. Agora leio literalidades. Prefiro não tomar sustos. Aos poucos vou me tornando um ridículo burguês, talvez seja isso mesmo.
Vamos partir em breve para um destino simples? Talvez vendam passagens pra esse lugar, mas não me refiro a nenhum entorpecente ou veneno... sem mormidez hoje, sem dramas simples. Eu gosto é do gasto.
Duas paralíticas vieram me pedir dinheiro para seu orfanato, perguntei se aceitavam amor, elas se ofenderam, achavam que eu estava debochando com alguma insinuação, mas na verdade eu estava na dúvida se aceitavam amor, porque os cartões de crédito, de todos os tipos, aceitavam. Claro que não daria o meu amor a elas, não tenho para dar, perguntei por curiosidade econômico-sentimental.
Tenho curiosidade, eis o meu mal. Curto imenso os limites das curvas, quando o carro vai capotar? Haverá sobreviventes? Continuará o carro em condições de funcionar bem depois? É impossível saber... essas curvas variam muito! Viva a geografia das nossas estradas que oferecem sempre curvas imprevisíveis. Descubro o corpo de seu cobertor e dou risadas inconvenientes, mas nunca a ponto de constranger... disso não gosto. Basta de ser curioso.
Bom mesmo seria não imaginar o amanhã, viver na realidade dos bichos, bom mesmo seria não ter tanto ideal, bom mesmo seria não ser escravo da paixão de quem sabe um dia vir a ser... sei lá o quê! E ter! Ter muito dessas coisas inúteis. E ter um amor também! Claro, um bem importante.
Será que ambicionar o amor assim é ser materialista? Será que uma moral reconstruída de um cristianismo burguês pode me livrar de ser tão tristemente tolo na conduta social? Será que ela me entende mesmo tão bem a ponto de amar? Meu Deus, amar! Que verbo desconjurado do que devia mesmo ser!
Amo mesmo é o verbo contemplar. Contemplo. Dentro de mim calo tudo. Sim, não digo, não vou dizer, não digo mesmo. Curto é calar. Sorrir e calar. Embriagar em silêncio, ver triunfar uma inércia boa que é um ensaio tosco do que será a inércia do meu cadáver por bastante tempo a apodrecer sem reação, abaixo duma lápide com gentilezas dos meus entes queridos escritas, mas deixemos desses pensamentos mórbidos que não os quero hoje.
Hoje quero uma tarde quente e uma cerveja, quero falar com os meus amigos queridos, quero sorrir um tanto grande antes de desmaiar chorando! E vinho, meu Deus, muito vinho para todos! Seria bom ser daqueles vinhos caseiros que se toma no Paraná! Quero amanhecer sem que o dia amanheça comigo. E antes dessa quase manhã, na madrugadinha prestes a ceder, ter certezas de que vai amanhecer para mim, afinal.
Se as moças paralíticas aceitassem uma taça de vinho e soubessem dessas coisas, talvez não ficassem tão ofendidas. Embora eu saiba que seu sorriso me deixaria muito mais triste, é melhor construí-los que dividir minha miséria... Uma miséria que dividida, apenas cresce.

quinta-feira, outubro 27, 2005

Sonhos secretos das sombras

Antes de ler o livro de Autran Dourado chamado "Uma vida em segredo" entabulava pensamentos de que tratava-se de um livro que discutiria alguma sorte de introspecção, ou então, alguma vida secreta! Algo interessante de se considerar ou emocionante de se ler se fosse também inteligente.
Li rapidamente o livro, um bom romance na verdade, mas nada do que esperava, talvez porque não houvesse nada oculto nele, nada do que eu imaginava e aí está o ponto.
O bom nome de batismo do romance, entretanto, ainda retumba no pensamento às vezes, principalmente quando algo pouco habitual revela as personalidades, aí sim desabrocham as vidas secretas.
Como foi da vez em que visitando um advogado no domingo, descobri que sua grande paixão era a horta do quintal: lá cultivava cebolinha, alface, pimentão, tomates, couve entre outras hortaliças. Tudo muito bem cuidado. Perguntei, talvez para brincar, se não confiava nas alfaces que se vendem no supermerados ou feiras, pelos agrotóxicos que são usados, e ele disse que também ele usava alguns! Gostava da horta porque lembrava-lhe o pai lavrador e enfim por amor à terra.
Questiono-me se não é assim que vivem as nossas sombras, a sonhar que podemos fazer o que por uma razão ou outra estamos impedidos, no todo ou em parte, de fazer. Talvez a sombra desse advogado nas varas criminais não acompanhasse verdadeiramente a leitura atenta dos autos de algum processo, ou as vociferações de defesa em que se clamava a piedade pessoal do magistrado, sua consideração pelo gênero humano e por fim ao próprio Deus. Talvez essa sombra estive a sonhar em desprender-se daqueles gestos para, disfarçadamente, imitar na sua expressão na parede ou no canto do corredor, alguém com uma enxada, a limpar em volta das alfaces vermes ou outras pragas. Talvez as sombras estejam secretamente ansiando pela revelação de uma vida em segredo.
Fato não questionável, entretanto, é o de que esse advogado adora defender acusados de crimes e talvez essa custosa ocupação seja recompensada nas horas de relaxamento na horta. As sombras aguardam sem muita ansiedade.
Outra vida secreta é a dos adúlteros, essa danosa à sociedade, na medida em que a promessa de fidelidade é descumprida, mas foquemos nos sentimentos verdadeiros do adúltero: desejo por outra mulher, prazer de estar com ela ou a aventura de parecer que não tem responsabilidades. Tudo isso é sonhado pela sombra dele ao entrar no quarto de casa e dizer "boa noite" à esposa acordada à espera. Talvez se sua mulher conseguisse desviar os olhos de cólera da camisa amaçada para a sombra fosca na parede conseguisse perceber mais evidências do que suspeita como atividades extralaborativas do marido. Mas as sombras não são percebidas por sentimentos violentos, temos aí então outra característica delas: para lê-las é preciso não levar nada muito a sério, as vidas em segredo não gostam dessa seriedade dos donos de sombra!
Talvez se houvesse qualquer coisa de sombra na "uma vida em segredo" o romance poderia me ter impressionado mais. Nos segredos, nas sombras e nos sonhos, há coisas insuspeitas, surpreendentemente bem guardadas nessas palavras imaginadas, abstrações do mundo dos donos de sombra. Mas, talvez por essa mesma essência, dificilmente nossas sombras revelam-se ou revelam-nos, silenciosamente sonham por nós.

quinta-feira, outubro 20, 2005

A compaixão do canto lírico

A apresentação do grupo de canto lírico da Faculdade de Filosofia de Vitória será hoje à noite. Os participantes ensaiaram durante a semana toda, quem mora no centro da cidade, ao menos nas redondezas, pode atestar a regularidade dos ensaios!
Acho bom que as pessoas queiram aprender a cantar canto lírico. É bonito e além disso fazem bem a si mesmos, já que, conforme o ditado, "quem canta seus males espanta", e fazem bem aos outros, já que é agradável ouvir (desde que afinado e de boa qualidade a voz).
Lembro de um colega da faculdade que passou por algum trauma, algo como fim de namoro ou morte de parente querido, e trancou a faculdade, isolou-se em casa e não apreciava nem o sol da manhã. Pois matriculou-se na aula de canto lírico e advinhem: continuou triste, mas ao menos um triste que sabia cantar bem e alegrar os outros, o que o tornou menos triste no fim das contas.
Levou 2 anos, eu acho, mas voltou a faculdade e à vida normal de um rapaz de vinte e poucos anos, afinal, havia lirismo de novo.
Na sua volta é que ficamos amigos, conversávamos sobre tudo, inclusive canto lírico. O engraçado é que conversávamos sobre canto lírico indo para a faculdade e no meio do ônibus começava o jovem Kaiser a soltar seus agudos e graves, mas nunca sem antes fazer o aquecimento.
Os traumas desse meu amigo do canto lírico também eram interessantes, e eu, talvez por algum impulso mórbido, fazia com que ele explicasse tudo e ficava mesmo surpreso de como ele reagia contra as adversidades, como quando a namorada o deixou por outro e ele contava como que uma piada que a outra pessoa já conhece! Previamente sem esperar fazer rir, mas de bom humor e boa disposição.
Estranhamente eu achava normal um rapaz de 1,90 e bastante barbado gostar de canto lírico. Lembro quando fiquei sabendo e fui na sua primeira apresentação, uma ópera de autor brasileiro, já não me lembro quem, mas era algo moderno e ousado, saiu-se muito bem o meu amigo, arrancou suspiros das calouras e foi o orgulho da rapaziada da sua turma aquele dia.
Hoje, por conta de ficar sabendo dessa apresentação em Vitória, lembrei das suas histórias. A última que fiquei sabendo era muito boa: de como ele conhecera uma namorada. Estava o rapaz ao celular e numa linha cruzada conheceu a moça! Essa todos na faculdade duvidavam, e eu também duvidava, parecia só mais uma das estórias do Kaiser, mas depois conheci a menina, uma loira baixinha e com um sorriso lindo, doida por ele.
Afinal, o canto lírico faz bem à alma do mundo.

terça-feira, outubro 18, 2005

O mar avança contra o continente

No litoral sul do Espírito Santo o mar avança contra o continente: fortes marés, centímetro a centímetro, trazem o mar pra mais perto da terra. As ressacas mais fortes deixam à mostra as raízes dos coqueiros do calçadão, testemunhas fatais dessa "travessura" do mar.
Os meninos que brincam na praia não se importam muito, tudo continua bonito: brilha o sol, a água é quente e limpa, há ondinhas bacanas para brincar e ninguém parece estar sofrendo. Alguns lamentam, claro! Os donos de pousadas à beira mar desconversam: sempre foi assim.
Sempre foi natural ser diferente de antes, talvez nem sempre para as praias e suas faixas de areia, mas sempre para as pessoas.
As raízes dos coqueiros à mostra são mais que uma prova de que elas existem mesmo, de que o mar avança ou do que mais se quiser constatar desse exemplo. Assim parece-me o meu rosto de manhã às vezes, como aquelas raízes: sou diferente do que achava que era, embora fosse presumivel que um dia chegaria a esse estado. Sem complicar muito, ninguém é sempre o mesmo, não é? E conforme se conheça a si próprio, é possível prever onde os caminhos escolhidos hoje vão dar amanhã.
Com o mar avançando, fatalmente iria sobrar para as raízes dos coqueiros e se quisermos ser mais ousados, também vai sobrar para todas as avenidas junto a faixa de areia de agora até uns 50 anos! Claro, antes disso o poder público local deve providenciar um aterro, ou coisa que o valha para conter o atlântico sul.
Fatalmente os que conhecem os amigos de uma maneira, logo adiante espantam-se com as suas atitudes e surpreendem-se com suas posições, maneiras de falar, sua disposição de vida.
Era possível prever que de dentro do coração de lembranças e véus roxos a matiz temerária dos seus assassinatos, a curvatura dos sorrisos que viriam do absurdo que se tornaria a vida, tranformariam todas as certezas em bases para perguntas mais sofisticadas, suposições de suposições emoldurariam os dias seguintes, e um azeite prático substituiria o sangue quente que um dia pulsou por aqueles prados. Nem melhor, e nem pior, apenas diferente do que foi.
É preciso compreender que para deixar à mostra as raízes dos coqueiros primeiro o mar teve que chegar até lá e insistir em ser mar.

segunda-feira, outubro 17, 2005

Em meio papel

Os títulos de crédito, documentos que garantem direitos creditícios em relação a outrem (na promissória do sacado em relação ao sacador, por exemplo) estão desaparecendo em meio papel, tanto mais no príncipe dos títulos de crédito brasileiros, a duplicata mercantil.
Isso, não em virtude da falta de vigor do instituto, mas em virtude das novas tecnologias que balisam as relações mercantis: tudo é feito em meio magnético, desde a emissão ao protesto, não há necessidade de se colocar no papel esse importantíssimo título.
Nessa tendência, perece um dos requisitos dos títulos de crédito, que é a cartularidade, ou seja, o título material, sua constituição física, palpável.
Apesar de todas as facilidades, muitos ainda guardam ressalvas à descartularização, receosos de que possam ser cometidas fraudes e os mais tradicionalistas, embirram por tradição mesmo.
Talvez na mesma medida possamos tomar a comunicação por cartas e correio eletrônico, ou seja, quem mais escreve cartas estando disponível o meio eletrônico de comunicação?
Ontem, entretanto, recebi uma carta longa do meu querido amigo Roberto, que está morando em Curitiba.
É bem verdade que foi uma carta resposta a uma outra minha, mas enfim, era papel escrito e enviado pelo meu amigo, mais pessoal, trazia sua letra e sua assinatura, enfim, havia naquilo um tanto maior de humanidade, impossível de negar.
Em meio papel, escreveu sobre Curitiba com menos acidez, embora ainda ressabiado pela "soberba" dos curitibanos, a violência dos gatunos e ladrões viciados em drogas e a impertinência dos motociclistas. Toda metrópole guarda elementos maus, Curitiba não é diferente, mas acho que a soberba, os ladrões e motociclistas curitibanos sejam particularmente diferentes na medida de que Curitiba é uma cidade diferente das outras.
Foi esse caráter sui generis daquela capital que motivou a migração de Roberto, entre outras variantes. E corajoso e audacioso, partiu para lá, passando por adversidades e sofrimentos, mas já agora, depois de uns meses, já tem uma certa familiaridade por aquele estado dos pinhais.
Relatou num post scriptum notícias de Juiz de Fora, ao que me fez sorrir um pouco e deixou idéias fortes e senti mesmo sua presença.
Já havíamos trocado impressões por via eletrônica, mas as cartas guardam-se entre as coisas de maior valor, testemunhos de próprio punho de amizade e consideração.
Talvez chegue o dia em que os correios não vão mais aceitar cartas particulares, assim como no direito cambiário é provável que não se mitigue e morra a cartularidade. Mas pelo lado do direito seria questão de praticidade, ninguém se afeiçoa aos títulos de crédito, a não ser os agiotas afixionados, mas quanto às cartas... aboli-las seria mesmo pouco prático para matar as saudades.

segunda-feira, outubro 10, 2005

Sólida solidão

Dialética

É claro que a vida é boa
E a alegria, a única indizível emoção
É claro que te acho linda
Em ti bendigo o amor das coisas simples
É claro que te amo
E tenho tudo para ser feliz

Mas acontece que eu sou triste...


Montevidéu, 1960
in Para viver um grande amor (crônicas e poemas)
in Poesia completa e prosa: "Poesia varia"

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Esse sentimento, tão cruel e tão comum, habitualmente é tema evitado em todas as conversas: é anti-social falar de solidão, apesar dessa característica típica de ser sentida por todos, mesmo que eventualmente não. É estranho que esse aspecto deprimente só fica mesmo visível se quem é só tenta arranjar gente que lhe console por isso, para lamentar-se por não ter com quem partilhar seus pensamentos e idéias ou mesmo para contar uma piada. Mas também, no outro lado da moeda, há quem não se importa, por vezes gosta e até acha vantagem passar muito tempo sozinho: é bonito fazer tipo, mas às estátuas sobram as fezes dos pombos. A auto-piedade contra os lamentos de solidão também não é boa, o orgulho costuma reclamar dela, mas no fim das contas é triste sentir-se sozinho, não vamos apelar dessa verdade.
Para esclarecer tantos paradoxos, acho boa a noção do que significa solidão, o sentimento na sua inteireza: é o sentir-se sozinho, mesmo tendo companhia. Diria até que não ser entendido e não ter quem entenda é a grande solidão. Como se diz popularmente "sozinho na multidão". Apavora a impressão de que não há quem nos entenda, que ninguém se importa, que não há intimidade possível para falar os mais profundos assuntos.
Comunicar ao mundo que tão breve é a vida para esvair-se em comodismos, em ver a tarde ir embora, ou a matar-se num serviço técnico (embora útil à sociedade), pode não ser possível, as pessoas não entendem bem essa pressa. Tampouco tentar explicar o remorso por partir deixando atrás de si gente que ama sinceramente, ou ter que submeter-se às ordens de gente menos capaz, ou tentar amar e não conseguir: há uma absoluta solidão nesses picos de paixão, ninguém pode completamente livrar-nos de enfrentar conosco mesmo as reflexões dessas condições.
Há coisas que são mais anti-sociais que outras de serem admitidas. Como a dificuldade em ver o belo na vida ou reconhecer nela um sentido puro. É normal o sofrimento e a adversidade desbotarem juntos a beleza de tudo, deixando do que era tristes esqueletos, armações de ferros retorcidos do que foi o símbolo da beleza, do afeto, do motivo essencial: mais um símbolo de um deboche do que o que fora, do que um símbolo do que é belo e significativo, do que faz a vida significativa.
Há então essa grande angústia em comunicar que vive-se por teimosia, ou que vive-se porque abdicar da vida é anti-social demais: é o cúmulo da anti-socialidade! Mas há milhões e milhões (não vou me arriscar nos bilhões, mas é bom lembrar que são feitos de mil milhões cada) de pessoas que vivem por teimosia, a contemplar o horizonte de suas vidas numa esperança verdadeiramente santa de que virá algo bonito a fazer nascer seu sorriso, alguém que lhes reconheça a angústia e ao mesmo tempo seja capaz de calá-la, alguém para fazer-lhes, verdadeiramente, companhia e contar algumas piadas engraçadas.

quarta-feira, outubro 05, 2005

À espera da chegada

Voltei mais cedo do almoço ontem e perto do edifício onde fica o escritório notei a mesma moça dos dias anteriores, desta vez à janela de uma casa vizinha, com um lenço azul claro na mão e os cabelos lisos e pretos soltos.
Olhou para mim de um jeito muito aflito e desviou em seguida o olhar, não procurava pelo meu rosto e estava ansiosa para achar o que procurava.
Sem me dar conta do absurdo, parei e encarei sua expressão de estranhamento com um meio sorriso. Bastante mais à vontade do que poderia supor, perguntei se estava bem, ao que ela secamente disse que sim, sem agradecer por alguém se importar. Segui o trajeto ordinário, humildemente.
Hoje no mesmo lugar já não estava, como um sopro tinha ido. Estramente aquela aflição dela tinha se tornado parte do cenário da rua naquela hora, como se fosse impossível compreender a vida ali destituída daquela ansiedade apaixonada na espera de alguém que não vem...
Talvez alguém mais perspicaz que eu a tenha convencido a deixar daquilo e se acalmar, talvez tenham chamado a ambulância do hospício, talvez tenha morrido de agonia por esperar e talvez ainda, consideremos com fé, tenha chegado o rapaz, aí sim, fica bem a coisa toda.
Esperas me causam náuseas. Dificilmente esperei contente por alguma coisa, mesmo boa. Enquanto cresce o risco na medida em que se toma atitudes ativas ao invés das passivas, eu arrisquei a pele umas vezes, digamos, para saber o resultado que haveria de ser.
Há gente que cultua a prudência, entoa o ditado popular de que "o seguro morreu de velho", mas há também risco na espera. O risco das formas cadavéricas apossarem-se do rosto e dos músculos do corpo, transformando uma linda juventude numa velhice de lamento. Tudo bem, exagerei imensamente, mas a mim o radicalismo da imagem passa bem a noção de se por a esperar insanamente: fica-se à mercê de outras pessoas ou condições, à mercê de eventos que não são senão prováveis enquanto não verificáveis de fato.
Desejei do fundo do coração que o rapaz não tivesse chegado nunca, que a moça lhe tivesse odiado imensamente por isso e, mesmo a custa de descompor o cenário não bonito da hora do almoço na sua rua, ido procurar ler algum romance realista ou então tomar uma cerveja, afinal a verdade é uma só: faz calor na primavera e não se deve perder tempo com angústias secas na garganta.

domingo, outubro 02, 2005

Lança cheia de tripas

Li um poema que fazia uma metáfora com dar-se conta da paixão e ter na barriga uma lança que, ao atravessar o corpo, tinha do outro lado a ponta cheia de tripas. Que violência, pensei comigo. Interpretei como que a constatação da morte certa, saber-se atravessado pela lança e saber-se apaixonado era o mesmo que ver a realidade: não havia muito o que fazer.
É absurdo, quando se está apaixonado, pensar que o resto do mundo possa não estar, não viver sob aquele estado, porque não racionalizado em fato e conseqüências, é bastante bom haver alguém que redima de tudo e que simbolize as áureas esperanças. Gabolices para desprender sorrisos, beijos demorados, apertados abraços de despedida, como isso dói! O poema me explicou: é uma lança varada de tripas. Mas não se morre repentinamente, é um processo gradual.
O nome de mulher costuma viajar pelos pensamentos, e as sílabas cadenciadas tornam-se notas de todas as músicas e mesmo sendo constantemente repetidas, repetidas ao infinito, não há monotonia. Nessa harmonia, pensar em encontrá-la é todo o conforto e é provável que aquele agradável cheiro de ar úmido antes da chuva fique em volta. Mil idéias para fazê-la sorrir, e dois mil sorrisos seus contidos para não deixá-la tão confiante! O que é dado sem que se dê algo em troca, sabe-se bem, não tem valor!
Falar de amor sem tentar dar a ela a angústia das suas conclusões: há um céu aberto para os nossos olhares, um céu de parque a nos testemunhar. E assim, entre braços e abraços, entre beijos e planos impossíveis, entre súbitas afinidades tolas que ganham a dimensão do predestinado e do destino traçado por Deus onipotente, bem, justamente ali tem-se uma lança a varar o corpo, mas não se tem noção dela, isso acontece depois. Nem por isso condeno uma coisa ou outra... Para julgar e condenar temos juízes e solteironas desocupadas. Limito-me ao drama do momento: acho que não há maneira mais plena para se saber da própria morte.
Olhos vermelhos, chorando de felicidade numa madrugada em segredo, quantas vozes interiores não acusaram de ir por um caminho inevitável e insensato? Talvez a tristeza grande seja desacreditar a paixão ao passo que se sabe dominado dela, esse anti-Cristo do amor é mesmo mau e finca seus punhais sem dó, apunhalando pela frente, qual um amigo de verdade. Mas para ter a lança cheia das suas próprias tripas, é preciso ir além, é preciso ir além da dor, é preciso confessar os pensamentos e entre rangidas de dentes, punhos cerrados e beijos enlouquecidos no reencontro, brilhe firme a certeza de não haver morte melhor e que vida seguinte nenhuma valeria a negação daquilo.

Corações a sangrar

Vou poupá-los de nomes, já que a cena por si mesma causa náuseas suficientes. Para o sumário conhecimento da cena: uma tesoura de escritório enterrada dez centímetros no lado esquerdo do peito de uma moça de vinte e um anos. A pele bastante clara e o sangue combinados eram de uma mórbida beleza, agora lembrada não tão bela quanto a fez pelo choque de cores, situação e significados. Tudo lido depois num laudo policial sobre o crime: um faxineiro apaixonado, louco de desejo e com o sangue pleno de álcool. Um bilhete datilografado trazia um falso recado do namorado da moça e tinha as letras em negrito com os dizeres: "Meu anjo, Nessa noite tenho que voltar para casa mais cedo a fim de ter com a minha mãe que sofreu um acidente, nada sério, não se preocupe, mas por isso não vou poder te apanhar no escritório. Lamento. Deixo-te beijinhos imensos e muito carinho deste que te adora de paixão. Emílio." Pelo recado a moça, que chamamos aqui Marta, não foi à porta do prédio esperar pelo namorado que também não estranhou o fato dela lá não estar, costumava ir para casa mais cedo quando ia trabalhar fora. Insistiu para levá-la a faculdade o faxineiro que bisbilhotara o bilhete. Negado o convite. Refeito com juras de amor. Negadas igualmente. Uma vez mais refeito acompanhado de súplicas, gritos e caretas de desespero. Erguia-se frente a moça um rosto de pele seca e enrugada, mais de cinqüenta invernos ajudaram a curtir os vincos fundos e feios do seu rosto, aprofundados na insegurança, na lascívia solitária, na imundície da própria solidão. Talvez a gentileza dela seja amor, pensara mais de uma vez. Como era diferente o seu dia quando ela dizia "bom dia" sorrindo para ele! E que agradável era o seu perfume! Não sabia bem qual o nome, mas era doce como das putas que ele pagava tão mal para livrar-se um pouco da angústia dos domingos à tarde, era doce mas não era vulgar como as meretrizes, trazia um traço de infância, um berço familiar, uma gentileza e um afeto tão originais que os quis para si como nada antes e faria tudo, absoltamente tudo! Ninguém lhe subjugaria daquele vez, não o ameaçariam, nem confundiriam o seu nome nem chama-lo-iam "meu bom senhor" por não sabê-lo. Chamo-me, consideremos aqui, Miguel, disse de si para consigo ao sentar-se em frente a um computador com o plano já traçado. Depois de iludi-la com o bilhete, iria levá-la a faculdade, mas não! A lição daquela noite era sobre ele, de como ele era especial e querido, de como deviam mesmo estar juntos e se amar, pois sem ao menos ter tido antes a chance de ouvi-lo, era já o amava, já era gentil e atenciosa, que se diria depois daquela noite especial entre os dois! Não havia como falhar. Na ira de ser novamente rejeitado, na angústia que sentiu por isso e os resultados da repulsa por si mesmo, estava decidido a não recuar, apanhou uma tesoura, a mesma que usou para recortar o bilhete da inteira folha de ofício em que o imprimira, e levantou-a com a mão direita, acima da cabeça, dando ordem de ir, ao que a moça, talvez por pânico, talvez por indignação frente aquele absurdo, não teve outra reação que não a de lhe dar um belo tapa no rosto, deixando pequenos ferimentos causados pelas unhas, na véspera pintadas, pela última vez de rosa claro, cor favorita do namorado para elas. Tesoura no peito de Marta, olhos esbugalhados de Miguel, coração a sangrar, de ambos.

quarta-feira, setembro 28, 2005

Uma tarde de chuva

Quanta reflexão cabe na tristeza. Talvez só se pense refletindo quando se enfrenta um problema, ao menos no que tange à vida quotidiana, e assim são os momentos de tristeza que propiciam esse compor de circunstâncias, essa tentativa de entender as pessoas e o mundo.
É engraçado que apenas o clima possa também influir nessa circunstância de reflexão, mas aqui ligada exclusivamente às condições naturais, afinal, quanta reflexão cabe numa tarde de chuva fria e fina!
Talvez num remorso de não haver tanta luz, talvez no condicionamento de ligar o frio e a chuva à miséria e ao desespero, de qualquer forma nunca vi ninguém celebrar um dia de clima ruim como o que tivemos hoje na ilha de Vitória. E que não coloquem a culpa nas frentes frias que chegam ao continente! Também no interior do país houve tempo idêntico.
Pois uma larga faixa de terras ficou imersa no cinza da tarde. Dentro dos movimentos da cidade, foi agradável, no fim das contas, não sentir tanto calor! Mas pareceu ainda mais triste a maneira maquinal com que as pessoas trabalhavam, pareciam engrenagens mal humoradas, enquanto que nos dias de sol costumam brincar mais uns com os outros e sorrir. Afinal, não é fácil brincar tendo que se proteger da chuva constante. Tempo maldito, tira a alegria natural.
Essa tola circunstância natural me fez lembrar da tese de Rousseau sobre a diferença entre as línguas do norte e do sul da Europa. Segundo Rousseau, as línguas setentrionais eram mais ásperas e duras precisamente pelas condições de vida, mais difícies, uma subsistência feita a base de luta diária. No sul os idiomas eram mais doces, as pronúncias mais moles e agradáveis de se ouvir: a isso devia-se a maneira de sobreviver mais fácil, concluindo que em condições mais favoráveis o homem podia dedicar-se às artes e aos sentimentos, enquanto que no norte o clima mais frio obrigava a todos a manterem-se ocupados em sobreviver.
Nós aqui vivemos em abundância: nem mesmo os que não trabalham morrem de fome! Há mesmo duas estações: uma seca e outra chuvosa (com exceção do que se passa no sul do Brasil, onde há definição melhor das estações ordinárias), no clichê da carta de caminha: tudo que se planta nessa terra dá e uma infidade de outros argumentos só viriam a confirmar não a luta pela vida aqui, no sentido da luta para não morrer de fome e de frio, mas sim a celebração ininterrupta dos sentimentos e das artes. A luta para não morrer de fome não é mais que uma idéia fantasmagórica para incendiar as ambições e medos profissioais, embora de fato ocorra com os miseráveis, no que não vou adentrar, apesar de ter que considerar também que esses têm assistência do Estado e juntos compomos uma grande "nação do sul", na idéia de Rousseau.
Mesmo com todas as circunstâncias favoráveis, basta uma chuvinha fria para todos lembrarem-se ancestralmente que a infelicidade está à espreita, que nosso caminho é um caminho cheio de cadafalsos invisíveis, que a morte, o desespero e a angústia são estados naturais, como o prova a própria natureza!
Inconscientemente, entretanto, há uma noção clara de que amanhã irá amanhecer outro dia e nesse dia novo, apartado por algum mistério suprafísico do anterior, há grandes chances de haver uma manhã ensolarada, daí então um prenúncio de felicidade ligada ao tempo que faz será suficiente para despertar o bom humor de todos e então recomeçarão as piadas e o andar despreocupado por entre as gentes.

terça-feira, setembro 13, 2005

Moedas antigas

Sobre o coração uma porção de moedas antigas. Tiradas da lata guardada a anos em casa, lembrou-me aquela infância de aventuras e ócio, hoje bastante distante.
A coleção não é grande, mas tem uma peça importante: uma pataca de cobre datada de pouco depois da independência, de 1826, quando imperava Dom Pedro I. Conta também com moedas comemorativas raras, como do primeiro centenário da independência e algumas alusivas ao momento cultural e econômico ou homenageando vultos da história. Também há moedas estrangeiras de vários países, como Cuba, Áustria, Emirados Árabes, Inglaterra e Austrália.
Nunca quis me desfazer das moedinhas, mas nesse dia, olhando-as assim sobre mim, imaginei qual função poderiam ter que não a de esperar. Esperar por esperar é tão tolo quanto amar por amar, não se justifica, embora pareçam fazer sentido essas relações e daí fica difícil rompê-las, são essencialmente confortáveis.
Pensei em vendê-las, mas como a maior parte foi dada de presente, não tive coragem, não valeria a pena. Daí senti que a gratidão somou-se ao que havia de orgulho sentimental para que as mantivesse onde estavam, à espera não sei de quê.
Esperar afinal é o que fazem de melhor as coisas que já não sabemos para que servem mas que pelas mais variadas razões conservamos conosco: "pode ser que um dia seja necessária" já não se disse sobre uma pilha de revistas e jornais velhos?
Guardei as moedas, a nostalgia e a psicologia dos comportamentos humanos estavam à tona e fiquei um pouco mal humorado de ter de repensar em como as pessoas se comportam, em como são. Por que tantas voltas, tanta complicação? Se não fossem essas considerações o significado que têm, não custaria meter as moedas no lixo, como também as pilhas de lembranças, de rastros, de fotos, de sorrisos que já não são o que eram, não estão mais em circulação e não tem mais o valor que tiveram.
As moedas novas, todos os anos valem menos do que valiam antes, aliás todos os meses ou sempre que um preço é reajustado, nalguma medida, o dinheiro perde seu valor, e a moeda que o representa vai junto. Ainda assim valem mais que as antigas na caixa. Não poderia comprar um sorvete com uma pataca de cobre do século XIX.
A pataca serve para lembrar que ela existiu, não posso me desfazer dela porque de fato não tenho poder de dispor e tampouco vale algo além do valor histórico, por tudo isso, ó lógica infernal e sentimentos nostálgicos tolos, por isso conservo moedas antigas com tanto zelo, numa caixa de metal escondida no guarda-roupas de casa.

domingo, setembro 04, 2005

Do berço ao túmulo

Homem, bicho de pensamentos grandes e de emoções profundas! Já diziam as filósofas de plantão que classificam o amor como algo fora do plano das idéias e dentro do plano das coisas: vocês são todos uns mentirosos!
Que pena que me dá dessas mulheres! Quanta mentira contaram pra elas, a ponto de terem ficado traumatizadas e terem classificado tudo quanto é homem com mau e mentiroso! As que perdem são elas, pois tomam por mau um que eventualmente é bom, já que nem todos os homens são iguais, contrariando aí outra máxima feminina muito em voga desde sempre.
Há uma certa inflexão cheia de esperança de amor no ceticismo delas! Não que eu tenha alguma paciência para discutir e argumentar... gente radical fecha-se numa arrogância cristalizada... nada rompe facilmente e, digamos que para evitar a fadiga, não tenho ânimo de salvar-lhes de um destinho trágico, mas contemplo os seus grandes olhos de fatalismo com respeito.
Nesse tom tem se dado os meus embates sobre a nobreza masculina no campo dos sentimentos com a mãe de todas as céticas no assunto, a senhora Do Carmo, matrona e mal amada, que é minha vizinha e chega mesmo ao cúmulo, óbvio que para caçoar, de dizer aos homens a máxima dos que tem medo de tubarões: homem bom é homem morto! Cúmulo do ódio.
Já se vê, portanto, que não há sentimentos bons no ar...
Pois bem, vamos ao ponto: relatei aos amigos, reunidos no Bar do Figo, sobre a visita ao escritório da senhora Hildegart Goscht, vinda da zona rural de Domingos Martins reclamar de um instrumento de cessão de direitos patrimoniais que os irmãos homens enfiaram debaixo do nariz das irmãs para ficar com as terras da família e despojá-las desse direito, no mesmo instrumento constava a doação dos pais deles, por óbvio. Isso tudo os irmãos faziam felizes e de consciência limpa, já que na tradição dos pomeranos, povo alemão que vive próximo à fronteira sul com a Polônia e que mandou milhares de pares aqui para o Espírito Santo, só aos homens cabe herdar as terras, às mulheres cabe uma grande festa de casamento e nada mais!
Contado o caso, a Dona do Carmo exaltou-se absurdamente e em vários sentidos, que são uns covardes, machistas, aproveitadores... E a mim coube defender o gênero masculino, o que fiz mostrando, sem tolices, que a cultura se impõe à sociedade, não que a senhora Hildegart ficaria lesada, cuidaríamos de anular aquilo, mas os irmãos achavam que exerciam um direito!
E que assim como os irmãos Goscht cumpriam um ritual, também os homens em geral cumprem um ritual quando se envolvem com uma mulher: o ritual de buscar nelas algum amor, algum amparo para as dores que o mundo impinge, alguma esperança! Se por acaso a coisa descamba num final ruim, é porque o homem (ou a mulher no lado oposto) frustrou-se nessa busca e não teve generosidade de ser franco, de dizer "passe bem, não te amo", e esse não é o pior dos pecados.
O que não falta, de certo, são mulheres que não sabem se fazer amar, as que são tristemente enfadonhas, que dizem bobagens na proporção que respiram, que esnobam e fingem... felizmente há outro tipo que penso que predomina, para a felicidade geral da masculinidade: as bem amadas. Essas são, mais que tudo, amigas do homem, e se tem uma coisa que um homem de bom coração sabe ser é leal com os amigos de verdade, por isso ama com fé! Pois o amor pleno de amizade é o melhor de todos e o mais sincero também se for visto que amizade e amor diferem na intimidade e na exclusividade que há num e não há noutra.
Muitas são as mulheres que do berço ao túmulo insistem num amor diferente desse, e por isso, magoam muito quem as quer amar, de modo que se chamam "mal amadas", mas o amor mau foi fruto da sua falta de percepção de um amor mais verdadeiro, mais livre e que existe por si.
A dona do Carmo segue o seu percurso ao túmulo, mas a dona Hildegart não guarda nenhum remorso dos irmãos.

sábado, agosto 27, 2005

Um nome de mulher

Aconteceu de ir à Jardim Camburi, risonho bairro de Vitória, para comprar suprimentos de informática. Bairro grande e de ruas sempre em quadras, perdi-me diversas vezes, até que resolvi pegar um taxi e assim, no conforto do ar condicionado, cheguei num instante para fazer a compra.
A volta foi fácil, não fosse pelo fato de ter tido a bendita idéia de parar num bar em frente à praia para beber uma cerveja, afinal, na sexta-feira é preciso ir aos copos, como dizem os portugueses.
Veio um rapaz de uns 14 ou 15 anos com um avental preto que ia até aos pés e perguntou se queria jantar, disse que não, que me trouxesse uma cerveja. Tão logo a figura do rapaz foi embora, apareceu claramente na parede um nome de mulher pintado "Cristina".
Numa reação sem razão nenhuma, gritei perguntando se tinham conhaque, do que me olhou de soslaio um velho pescador que à porta discutia futebol. Olhou-me atentamente e sorriu voltando a cabeça de volta para quem conversava com ele.
Havia conhaque e bebi apenas duas doses naquela noite. Olhando fixamente para aquele nome, foi vindo mansa a lembrança da minha amiga, não que tivesse aquele nome, mas havia entre o que eu lia na parece e minha amiga uma intimidade perfeita. Tanto assim que o coração começou a bater seu nome e encheu-se com um sangue cheio de arreia e os risos das outras pessoas pareceram um grande deboche contra mim. Instalou-se a imagem do sorriso de amor dela, uma das poucas imagens do céu que meu ceticismo nunca ousou atingir contestando...
Num suspiro, afastei essa idéia tragando o fim da segunda dose, ao que, quando voltei a cabeça a horizontal, soverndo até última gota, apareceu sentado à minha frente um homem vestindo um paletó marrom e com grande barba preta. Devia ter algo como uns 50 anos e parecia irritado. "Olhe bem, rapaz, sei que é você quem está saindo com a minha mulher. Não se assuste, na verdade eu sempre soube. Estou aqui de boa vontade e sendo franco contigo, quero resolver tudo de uma maneira gentil." Pasmei por 10 segundos e resondi "Meu senhor, sou um forasteiro nessa cidade, mal conheço o percurso de casa para o trabalho, menos ainda ando a seduzir mulheres casadas" mas ele resistiu "Mas eu não vou fazer nada contra você, na verdade ela anda muito contente desde que te conheceu... " Ele estava decidido em me dar participação naquilo! Acabei me levantando e excedido na altura da voz disparei declamando:"Meu senhor, por acaso o senhor sabe lá o que é ter uma jabuticabeira no quintal? O senhor sabe lá o que é torcer pelo Botafogo? O senhor sabe lá o que é sofrer de saudades que não tem jeito? O senhor sabe lá o que é conhecer a si mesmo?" Daí vi que ele se deu conta que não era eu o amante e se arrependeu, alguns minutos depois foi a minha vez.
Antes de ir embora perguntei ao garção quem era Cristina, ao que o rapaz disse ser "a filha". Concluí que era a filha do dono do bar e para mim bastava.

quarta-feira, agosto 24, 2005

As noivas do parque Moscoso

Nas segundas-feiras as crianças não tem vez no parque Moscoso, espaço de recreação e belíssimo jardim, com chafarizes, concha acústica e roseiras bem cuidadas.
Tenho a grande impressão que a segunda-feira não é reservada, como dizem as autoridades, à "limpeza e manutenção", mas sim porque, tendo esse descanso das crianças, dos namorados e dos velhinhos com seus jornais, empregadas passeando com cães ou babás e bebezinhos... na segunda-feira as donas do parque são as noivas.
Acho que escolhem o parque Moscoso para tirar as fotos antes do casamento porque é em volta do parque que há a maior concentração de lojas de aluguel de roupa de casamento de toda grande Vitória. Pensando melhor, talvez uma coisa venha da outra... uma alimenta a outra, afinal, sendo o parque um lugar realmente muito bonito e com paisagens lindas, as noivinhas todas preferem esse sítio para as fotos e lá estando, vão ver as novidades nas lojinhas, que sabendo desse público, ploriferaram-se na região.
O que importa mesmo é que o espetáculo é bonito. Nós, que não somos noivas, ficamos do lado de fora do gradiado olhando a moça fazer poses e caras contentes para o fotógrafo que, recebendo pela profissão tantos sorrisos, por mais amargurado ou triste que fosse de nascença, parecia ser um sujeito formidável, muito alegre e muito paciente, já que a noivinha queria uma foto em cada canto bonito do lugar, uma perto do chafariz, outra numa fonte, outra com os lírios azuis no fundo, uma na concha acústica e uma no monumento a algum herói nacional.
Eu, que tinha comprado jornal e uns pães de mel para ler e comer lá antes de ir à Justiça Federal, tive que ficar apreciando pacientemente esse espetáculo que não suspeitava a causa até um guarda do parque negar-me acesso com aquela frase que sem dúvida dispertou o meu interesse: "desculpe doutor, hoje só as noivas".
Esse espetáculo que se dava fora do mundo das coisas, vez por outra também era interrompido por uma criança que querendo jogar bola na quadra de areia ou fazer um pique-esconde com os coleguinhas, mas tinha que dar meia-volta, às vezes praguejando contra a instituição do casamento e imaginei quase tão repentinamente quanto num susto que quando menino pensava exatamente assim como esses mais revoltados e que hoje já vejo tudo isso de uma forma natural.
Na verdade, sem as noivas do parque Moscoso não haveriam crianças, nem mais à frente namorados e no fim nem os velhinhos para preencher o parque nos outros dias da semana e muito menos advogados fatigados procurando refúgio.

terça-feira, agosto 16, 2005

Lêmures suicidas

Depois de um animado almoço familiar no domingo, talvez apenas faltoso na parte de um bom licor para preparar a sesta, resolvi descansar e depois ir andar de bicicleta no calçadão da praia de Camburi.
Trazida de Minas há duas semanas, a "magrela" ficou num canto do quarto à espera desse passeio, quase que me chantageando para conhecer as ruas de Vitória. Embora não seja uma bicicleta de competição, foi uma vencedora nas disputas de montanha e velocidade no circuito universitário de ciclismo. Seu segredo sempre foi uma boa calibragem, o que tanto impedia saltos e descontroles do guidão quanto era eficaz nas arrancadas e aderência. Em Vitória, entretanto, essa boa e gentil amiga não competirá, mas passeará.
Saí de casa às 16hs, com pouco tempo de luz e clima já esfriando, naquela hora do dia em que as cores são mesmo bastante bonitas e fica uma impressão de que o dia não vai terminar, afinal.
Por não conhecer bem a cidade resolvi pegar a avenida dos Navegantes e penei um pouco com o tráfego intenso, mas logo após a ponte de Camburi dei de frente ao início do calçadão e, de um jeito um pouco intromissivo que notei pelo olhar de um velhinho que terminava ali a caminhada, invadi o passeio contornando as pessoas.
Na verdade essas impressões de certo e errado são sempre relativas, andar naquele calçadão, por exemplo, não é errado, pois há placas que permitem, mas as pessoas não gostam de levantar a cabeça para ler placas ou sair da conformidade, daí, "matem o ciclista invasor!"
Após duzentos metros sendo perseguido por velhinhos bravos com essa ironia, encontrava-me no início da ciclovia e daí não tinha mais que me preocupar, a não ser com os vários carrinhos de bebê e crianças de 4 anos atravessando desesperadas a via para encontrar os pais, sem olhar para canto nenhum. Um menininho desses chamado Pedrito (sei porque a mãe o chamou assim com sotaque espanhol) olhou para mim quando estava a 30 metros dele e de repente se lançou na frente da bicicleta pulando com os braços e mãos abertos, pareceu mesmo aqueles lêmures planadores que se jogam do alto das árvores com os membros abertos e planam bastante antes de chegar no chão. O moleque não planou nada, veio direto contra mim e se não tivesse antevisto o movimento dele teríamos caído a bicicleta, o Pedrito e eu pelo calçadão, certamente despertando a ira da mamãe. Não se pode confiar nas crianças, elas não tem paixão nenhuma para mantê-las atadas ao mundo!
Nesse momento considerei voltar, já que essas cenas foram muito bizarras e certamente havia alguma coisa errada, mas como a ciclovia estava vazia, insisti e foram bons quilômetros pedalando sem as mãos e fazendo as curvas suaves apenas com o peso do corpo.
O porto de Tubarão no fundo, roubando eternamente a vista de horizonte de curvatura da terra que se tem na beira do mar, continuava queimando os coques para transformar o minério de ferro em aço, o que fazia com que o céu ficasse mais rosado na beira do mar indo ficar azul mais ao alto, com uma faixa branca separando as duas cores e pensei na hora na Bandeira do Espírito Santo.
Antes que os pensamentos me derrubassem, dei meia volta. Tentei voltar pelos bairros até chegar na Praia do Canto, sem sucesso retomei a Navegantes e cheguei em casa às 18hs15min, e depois de guardar a bicicleta senti um cheiro de saudade e paz. Mais um domingo pleno de fantasias.

sexta-feira, agosto 05, 2005

Preciosismo

Por que o nome de "Los Hermanos 4"? Por que a sina de querer fazer um novo disco de estilo diferente do anterior? Por que retirar os metais das músicas? Por que achar que ser uma banda de rock que tem letras inteligentes e profundas é ter que estar evoluindo pra alcançar a iluminação?
Quem gosta dos Los Hermanos deve estar se angustiando com essas perguntas frente ao seu novo disco, o "Los Hermanos 4".
A crítica permanece bastante dividida: há os que idolatram as 12 músicas do álgum, outros reclamam que Los Hermanos estão muito preocupados em demonstrar maturidade e fizeram um disco cheio de preciosismos.
Hoje ouvi as músicas e sinceramente não parece nada com o que fizeram antes, é diferente sim, há uma unidade no "Quatro". Entretanto senti muito a falta dos metais, fato que deixou as músicas muito próximas de uma bossa nova sem alegria e irreverência que a caracteriza pelo envolvimento com o samba. Há uma preocupação excessiva em usar uma linguagem poética que acaba sufocando a suavidade que as canções precisam ter e que tiveram. Basta lembrar de uma obra prima como "Retrato pra Iaiá" e depois ouvir "Primeiro Andar", ambas de Rodrigo Amarante, para perceber que a qualidade poética é a mesma, mas a canção ficou menos agradável de ouvir: a impressão de um ouvido que não liga para a letra é de um longo pedido de socorro de algum suicida.
"O Vento" parece salvar em parte essa vontade aloprada de ser inovador, dando alguma sensação de semelhança com os discos passados, "Paquetá" também tem ares assim. Mas se comparadas com as canções do próprio "Quatro" fica melhor nele que em qualquer outro. Todos vão pela vereda de canções plenas de poesia e minimalistas a quanto basta ser, o que faz com que, escutando vezes seguidas as músicas, colha-se o cuidado com que foram geradas e aí é outro aspecto em que vejo mal o disco novo: as suas canções não são tão agradáveis de ouvir à primeira vez que as dos discos anteriores e isso significa que quem diz que Los Hermanos são uma banda de esnobes e orgulhosos vai ganhar muitos adeptos em quem for ouvir o "Quatro" antes dos outros discos. Há gente que vai argumentar que nas canções "fala-se demais e canta-se pouco".
Essa questão dos LH serem orgulhosos e terem-se deixado levar pela fama não é verdadeira de todo e nem falsa de todo. Evidentemente que o fato de serem muito conhecidos e terem muitos fãs mudou bastante o seu jeito de tratar os outros e de pensar a música, esse comportamtento diferente é sobretudo na maneira de negociar os concertos. Depois do "Ventura" LH não aceita que bandas desconhecidas ou que eles próprios não conhecem abram suas apresentações, talvez façam isso para evitar complicações, já que não se pode prever como a banda anterior deixou o público ou o provocou ou o que seja, mas a impressão acima de qualquer escusa é que são muitíssimo esnobes. De outro lado, velhos amigos da cena alternativa carioca garantem que LH é o mesmo desde o primeiro disco: bons amigos!
De todo jeito, o "amadurecimento" dos LH parece antes de qualquer coisa envelhecimento no sentido de perder o sopro de adolescência que havia forte no "Los Hermanos", estava presente em canções do "Bloco..." e também no "Ventura". No novo disco entretanto não há alegria nesse sentido e se há em outro sentido, perdoem, mas ainda não percebi pela melodia de nenhuma canção.

quinta-feira, julho 28, 2005

Dóceis simulações

Bathing, Monet Posted by Picasa
Isso de pintar abstrações pode ser defensável sob vários aspectos estéticos, de outro tipo de sensibilidade ou conforme se queira defender, entretanto não há abstração que seja tão sutil quanto os retratos para mostrar a realidade pretensamente como ela não é, fingindo que a retrata como é.
O quadro Bathing de Monet transmite-me isso: acho que não vou encontrar no mundo beira de cais com reflexos tão lindos.
Assim como os reflexos das pessoas que Monet pintou tão magistralmente não foram nunca reflexos de ninguém, há várias outras simulações que acabam por bastar a si mesmas, como dos atores que figindo que se amam conseguem emocionar as donas de casa, ou dos treinamentos de incêncio para quebrar o tédio das aulas de geometria analítica e finalmente o açúcar como substituto às autênticas alegrias para liberar as substâncias orgânicas que acalmam e trazem conforto.
Não me sai da cabeça o famoso 'Mito da Caverna' de Platão ao falar desse assunto. O grande filósofo grego viu a maioria da humanidade condenada a uma infeliz condição. Imaginou (no Livro VII de "A República", um diálogo escrito entre 380-370 a.C.) todos presos desde a infância no fundo de uma caverna, imobilizados, obrigados pelas correntes que os atavam a olharem sempre a parede em frente. O que veriam então? Supondo a seguir que existissem algumas pessoas, havendo ainda uma escassa iluminação vindo do fundo do subterrâneo, disse que os habitantes daquele triste lugar só poderiam enxergar o bruxuleio das sombras daqueles objetos, surgindo e se desafazendo diante deles. Era assim que viviam os homens, concluiu ele. Acreditavam que as imagens fantasmagóricas que apareciam aos seus olhos (que Platão chama de ídolos) eram verdadeiras, tomando o espectro pela realidade. A sua existência era pois inteiramente dominada pela ignorância (agnóia).
Na mesma medida, nossa exposição continuada às simulações pode cegar, fazer com que se tome por verdadeiro algo que, na origem, é simulado. Isso explica muita coisa, como por exemplo, por que algumas mulheres não podem ser amadas, mesmo que alguém queira amá-las: na verdade nunca receberam amor verdadeiro e não suspeitam do que seja. Quando finalmente lhe oferecem esse sentimento ela não pode reconhecê-lo, pois só recebera simulações, como os homens acorrentados no fundo da caverna não reconheceriam como um homem se vissem sua figura normalmente, mas apenas se visse a sua sombra.
Dá arrepios pensar nos efeitos provocados pela ignorância acompanhada do vício de uma simulação, mas está mais presente do que se imagina, como na cortesia dos comerciantes, recepcionistas de hotel e taxistas, ou nos sorrisos de um político em campanha, ou na face contraída de quem acusa ou defende num tribunal com paixão pela vitória, antes de ser pela justiça: todos simulam e nós apreciamos suas simulações, pois são parte integrante do nosso modo de vida, que inclusive, no aspecto do trato social, deixam as coisas mais dóceis.
Entretanto, parafrasendo meu professor de literatura ao falar dos escritores engajados numa literatura sem conteúdo, há que saber se prefere-se as remelas ou os olhos. Na mesma medida há que saber se é suficiente dar 'bom dia' às sombras, ou às pessoas que são suas donas, saber se prefere-se os reflexos na água simulados numa pintura ou ir junto a margem olhar para o próprio reflexo e compreender a beleza de descobrir-se e ao mundo.

terça-feira, julho 26, 2005

O que vou deixar

Herdar é tão comum quanto respirar se formos comparar a vida na sociedade ocidental com a vida biológica, lembrando que para respirar, claro, é preciso ar e para herdar, mais claro ainda, é preciso ter o que deixar.
Há os que herdam bens, acho que é a espécie de herança mais ordinária. Mas também há os que herdam outras coisas de valor, como um nome famoso ou um sentimento.
Isso de deixar sentimentos como herança parece-me mais bonito que deixar aos herdeiros outras coisas. É claro que há sentimentos maus, como paixões cegas, obsessões fundadas em convicções erradas, medos, pudores ridículos, e mais tanta coisa que listar não vale a pena. Outrossim, há ótimos sentimentos a deixar, como a paciência, que seguramente não é lá da minha natureza, mas que herdei de meu pai e aprendi o grande valor dessa virtude; a humildade, a belíssima condição de perceber que a única coisa realmente perene é nosso desejo de nos unir a Deus; o amor que não impõe condições, não é do tipo doente passional, um amor tão suave, tão verdadeiramente bom e doce que dá como único destino a paz; a compaixão, virtude tão esquecida pelas pessoas egoístas que se esforçam pelas ruas, sem ver que um rompante de vento, para usar linguagem metafórica, seria suficiente para tirar-lhes o conforto e a segurança e igualá-los aos pobres pedintes de quem diariamente sentem asco e desprezam.
Mais que tudo, vale dizer, queria deixar aos herdeiros que tiver, o meu grande cuidado. Não puramente uma precaução medrosa com tudo, longe de ser isso. Digo do cuidado com quem se ama. Se querem algo de mim, que levem esse sentimento tão completo que é cuidar de quem se ama com desprendimento, na medida certa de não idolatrar, mas na margem de dar de si toda esperança, mesmo a que não se tem, toda a confiança, que merece com louvor, todos os sorrisos e boa disposição em fazer sorrir. É mesmo uma boa herança, mas acho que ainda tenho algo a acrescentar ao meu espólio.
Talvez também fosse bom deixar os meus poemas de afeto, algum sobre aventura, certamente cheio de metáforas brilhantes sobre coragem, talvez fosse boa a herança de um verso rimado e feliz! É isso mesmo que me deixaria contente em deixar: rima e felicidade pois, como na vida civil não há herança de dívidas, também na vida poético-social não pode haver poesia de ressentimentos, nem sobre desgraças ou morte que tenha mesmo grande valor, esses poemas não servem para herança.
Ficarão os cheios de paz e, certamente pelo fato de que as paixões espalham-se como um cheiro de comida para quem tem fome, também os poemas cheios de paixão e amor servirão a outros para inspirarem-se, elevarem-se e experimentarem o sabor da intensidade da vida que, se por um lado custa caro, já que envolve completamente e acaba por cegar às vezes, também serve para nos mostrar a beleza íntima de quem se ama.
Por fim, assinando o meu testamento, colocaria como condição essencial que tudo fosse esbanjado ao máximo: nada de acumular, aplicar, esperar rendimentos!
Que o que eu deixe sirva para salvar os olhos dos meus herdeiros do fim triste que tem os que pouco amam, pouco suspiram, pouco acreditam e pouco desejam deixar semelhante herança.

terça-feira, julho 19, 2005

Além de uma cela digna

Talvez, se não fosse preciso ter medo, poderia-se sonhar com planos possíveis para os sentimentos delicados e plenos que nos é permitido sentir.
Acusam a união federal de captar mais de trinta por cento das riquezas que produzimos para impostos, mas talvez mais voraz que o fisco seja o medo. Ao medo pagamos mais da metade do nosso valor e, por tantas vezes quanto é possível sonhar, é capaz que se pague mais!
Se fosse uma relação matemática, seria fácil ver que a vida custa caro demais, já que os momentos realmente plenos e sem privações são muito poucos em relação aos de aperto, tristeza, humilhação e dor e uns sem pudor de desagradar a moral da sociedade, diriam que tirar a própria vida seria mesmo mais prático. Nós, entretanto, somos daqueles bichos que amam o sofrimento, tanto quanto somos capazes de amar ao trabalho e a todos os sacrifícios que somos subordinados: suicídio não fecha bem a história, o melhor é deixar-se abater pela vida. Há ainda outro elemento: o não saber do destino, a esperança de tudo reverter-se. Esses sentimentos, entre tantos outros, são de uma potência incrível e revigoram as energias e estímulos.
O bom seria ir além da condição de gente, como os do oriente acreditam: iluminar-se, chegar junto ao que é divino, saber a verdade das coisas, não saber o que é, mas que é.
Essa serenidade espiritual que afasta os demônios, típica dos santos, costuma ser percebida também nos exércitos em guerra.
Repórteres que acompanham soldados já relataram que em momentos de grande tensão, as personalidades individuais cedem lugar para um estado de atenção e de concentração que foi muito eficiente para que escapassem dos riscos de morrer em batalha, já que, segundo os repórteres "não demonstraram medo, afobamento ou preocupação com a prórpria vida em especial. Não chamaram por seus medos pessoais nem crenças. Permaneceram em alerta, tomando decisões que foram obedecidas sem questionar pelos subordinados, que depois revelaram-se corretas".
Talvez nesses instantes esses homens tenham se iluminado precisamente porque negaram o seu eu para ser um todo uniforme, o que os unia passou a ser mais forte do que o que os diferenciava. Nesse instante o medo perdeu, ali não se pagou esse detestável tributo à personalidade e esses felizes soldados tiveram mais que uma cela digna que chamar de vida, tiveram o presente de alcançar a natureza divina de tudo.
Pois, ao que é divino, não importam as coisas do mundo, não importam as pessoas, não importam as aspirações de grandeza, nem as necessidades, as paixões tornam-se tolas e mesmo os sentimentos resumem-se no sentimento de plenitude da paz, da liberdade, essa humildade própria do que é santo.
Talvez o mais curioso de tudo é que justamente quando alcançaram essa condição provisória de santos, quando finalmente ficou submersa a personalidade, junto das ambições e preocupações ordinárias, justamente ali quando morrer seria heróico, os santos provisórios não morreram, foram santos para salvarem-se e poderem ser abatidos pela vida.

sexta-feira, julho 15, 2005

Biscoito de Polvilho

Quem já provou dos biscoitos de pouvilho feitos em casa sabe do que vou falar a seguir: uma iguaria, coisa fina, da fineza que é própria do que resume um sabor, um significado e até uma saudade! Lembro do meu pai contando que seu dia mais feliz como cozinheiro foi ainda na juventude, quando, talvez por iluminação divina, combinou de uma maneira magistralmente arbirtrária os ingredientes do biscoito caseiro, tendo como resultado da fritura da massa, o biscoito de polvilho mais saboroso que já fora experimentado pela sua estirpe.
Esse mito fez com que eu tivesse na guloseima algo como uma fascinação. Foi fácil, deste modo, ceder à sugestão da minha vizinha, dona Sueli, que comprasse um pacote de polvilho doce para que ela me fizesse o tal biscoito. Aconselhou o doce, pois o azedo era indisposto! Santa sabedoria dos velhinhos octogenários! A dona Sueli tinha já os seus 84, mas conservava o bom humor e a lucidez, também o amor às coisas de cozinha, dona de hotel que fora, e de restaurante também, trata-se, portanto, de uma empreendedora reformada, assim me parece pelo seu senso de iniciativa e constante esperança em tudo.
Cheguei com o pacote em sua cozinha e entreguei-lhe com satisfação, mas a dela foi maior: que doçura a maneira como os velhos se alegram com as coisas pequenas, uma humildade que não nos foi legada pelos pais, infelizmente.
Determinada a ser julgada sozinha e receosa, evidentemente, de que eu atrapalhasse o seu emprenho em fazer o seu famoso biscoito, fiquei só observando, fazendo-lhe companhia enquanto amassava o polvilho, os ovos, o leite, a manteiga, acho que a receita leva isso, não me perguntem...
A dona Sueli sabe decorado e muito bem essas receitas, tanto que deve ser até enfadonho para ela lembrar-se de algo que cozinha há mais de 70 anos! Mas é provável que cada vez que faça o biscoito lembre-se de algo que o acompanhou no passado, como eu com o prodígio do meu pai!
Dizendo-lhe que naquela noite o programa era encher a pança de biscoito e ir dormir, ela começou a questionar sobre namoros e coisas assim e é claro que não lhe dei confiança, mas fui gentil.
Da mesma forma que com o prazer de fazer a sua receita, dona Sueli começou a discorrer longamente sobre o amor, das facetas, das paixões, das coisas más e boas e eu, empolgado em ver alguém tão idoso falar disso, fui dando confiança e acabei por perguntar se no casamento fora feliz. Já sabia que o esposo era falecido. Ela parou um instante e fitou-me friamente: "dei-lhe um tiro na barriga" disse com o olhar petrificado.
Minha primeira reação foi pensar que estava brincando, mas falava muito sério. Daí fui perguntando o que tinha acontecido, alguma razão teria para aquilo e de fato havia: a cólera da mulher que além de traída, fora ofendida. Perdeu a razão e meteu um tiro no agressor adúltero! Mas o que acabou com esse um não foi esse tiro, morreu muitos anos depois. Vale acrescentar que se sentia tão culpado por aquilo que retirou a denúncia contra a esposa na delegacia, disse-lhes "foi minha culpa, provoquei isso".
Dona Sueli tinha se casado por imposição do pai. Amava a outro.
Ficou pronto o nosso biscoito, comi e fui dormir. Mas não sem antes agradecer à minha cozinheira: pela primeira vez na vida comi uma receita de biscoito de polvilho que além dos ingredientes normais levou lágrimas de paixão de uma velhinha de 84 anos.

terça-feira, julho 12, 2005

Trouxeste a chave?

Na versão americana de "Vanilla Sky" o protagonista e seu psiquiatra, no subconsciente do primeiro, sobem por um elevador que parece que não vai parar nunca. Sobem como se estivessem na Torre de Babel que foi concluída, num prédio que projeta sua sombra sobre a curvatura da terra, como um ponteiro imenso de relógio à passagem do sol. Quando finalmente chegam, olham o horizonte com o vento na cara: é a hora da verdade.
Se cenas assim são marcantes no cinema, imaginem na vida. O cinema consegue tratar da coisa de uma maneira mais poética e fotográfica, como nesse filme. Mas mesmo um simples camponês, nos confins da Moldávia, escuta do seu destino aquela pergunta: "trouxeste a chave?". Podia ser engraçado imaginar o camponês respondendo ao destino que não tinha chave nenhuma e pensar no que resonderia de volta o destino, mas digamos que não ter a chave significa exatamente não saber o que fazer com a própria vida. Encarando a coisa ainda sob essa metáfora, seria como se o destino se desincumbisse da tarefa de existir pelo camponês. Com a pergunta sobre a chave, na verdade, lança um terrível "agora é contigo, meu amigo supersticioso". Se o camponês não quisesse aceitar, o destino daria de ombros, se fosse um bom gozador ainda desejaria um bom proveito, com aquele risinho de absoluta auto-confiança. Mas deixemos essa metáfora, já que não sou profeta oriental e nem autor de literatura barata pra enveredar por aí. A crise no peito fala mais diretamente, rompe com o seu universal e rude: trouxeste a chave?
Essa mesma chave abre alguns portões relevantes, o que eu pessoalmente mais prezo é do do mundo das palavras, onde estão todos os poemas que esperam ser escritos, segundo a "Procura da Poesia" de Carlos Drummond. A mesma decisão é que molda os poemas.
Não há vida mais heróica e ao mesmo tempo mais miserável do que a de um poeta de vocação, um verdadeiro poeta, como considero Camões, Bocage, Baudelaire, Verlaine, Rimbaud, William Blake, Florbela Espanca, Castro Alves e Vinicius de Moraes, gente que tinha algo apenas parecido com sangue nas veias, mas que não era sangue, gente que tinha algo como músculos, pele e ossos, mas também não era exatamente isso: eram poetas e tinham os bolsos cheios de chaves.
Ler esses poetas é como tentar roubar suas chaves. Mais de uma vez sonhei com alguns deles tentando me ensinar alguma coisa tola de se fazer, como segurar um copo de cerveja, costurar uma camisa rasgada por faca, tocar a superfície quieta da água sem perturbá-la e mesmo coisas fantásticas, como domar búfalos e conduzir um exército em guerra. Acho que com tudo isso diziam em código: "aí estão as tuas chaves! Pega e vai ter com teus poemas." Há uma grande verdade nisso, pois para haver algo que mereça o nome de poesia, há que se encarar o mundo e as coisas do mundo com alguma coragem e tirar delas, ainda assim, a sua sutileza, o seu histórico de paixão e contrariedades, para só então materializar a perturbadora presença do poema reclamão, doido para ir ao papel. Aí então é preciso força, pois não há poesia sem habilidade para despregar do sono imemorial as palavras, sem sensibilidade para juntar os músculos dos braços num empenho de desafogar o verso preso ao limbo, ao inconsciente, ao desejo inadmitido. Os portões do despertar têm sua chave de ouro. Sem chaves, não há poesia.

sexta-feira, julho 08, 2005

Amélias do meu Brasil

O samba "Ai, que saudades da Amélia" não é só esse hino da submissão feminina como gritam os tontos desse país, antes disso, é uma linda declaração de amor. Na letra o sambista reclama com sua mulher, diz que não sabe o que é consciência, diz que tudo que ver quer, e diz que boa era a Amélia, que passava fome ao seu lado e dizia a ele "meu filho, o que se há de fazer?", ou seja, sente saudades de um amor que era mesmo bonito por ser simples e honesto. Então coloco no subjuntivo para provocar e para me intrigar: não seria melhor se as mocinhas do Brasil fossem mais boazinhas e compreesivas, se tivessem mais persistência em não ter a menor vaidade?
Olha que não tou aqui simplesmente acusando e dizendo, "olha que tolas temos como mulheres nesse país de araque", nem por isso, meus amigos, há mocinhas por essas terras que são a própria doçura encarnada, mulheres finas e ternurentas como sonhou o nosso Álvares de Azevedo nas noites mais insanas, quando ainda se achava que a noiva casta era o sinônimo da esposa santa!
Digo simplesmente que há gente complicando muito as coisas, e vou ser justo afinal: não é só do lado das mocinhas e seus sorrisos e ambições, também, e em maior grau, os rapazinhos têm interesses vários quando colocam os olhos numa mulher. Se acaso deixam-se apaixonar, bom, aconteceu. A moça solta um grande grito: finalmente aconteceu! Noves fora, resta concluir forçosamente que toda gente parece correr em sentidos opostos, quando a grande inteligência pra um amor dar certo é que ambos imitem os cavalos de corrida: corram os dois no mesmo sentido.
Falo aqui da ambição do homem, já que sou um e conheço o suficiente para não falar muita bobagem. As da mulher, bom, elas não são de esconder tanto quanto nós escondemos, basta olhar nos seus olhos e já se vê do que se trata.
Não é lindo apaixonar-se por uma moça que prove aos outros o quanto o homem seduz bem? Linda e simpática, aos amigos inteligentes é também consciente das dores do mundo e articulada, à mãe é a filha de Beltrano! Ao pai tem lindos olhos! Balzac é que estava certo, trata-se da comédia humana, mas não percamos o foco, senão levamos bomba do leitor! Vamos lembrar que o que parece bom hoje pode ser mau amanhã!
Acontece justamente isso com o homem que casa-se com uma moça linda e apenas isso. Fato é que o rapaz foi um tolinho, não ouviu o poeta: "uma mulher tem que ter qualquer coisa além da beleza" e reparem na generosidade: qualquer coisa. Infelizmente a grande parte das beldades não tem nada além da beleza e essa é sua desgraça e de quem as ama, a sua gritante pobreza. Quando o marido se dá conta do mau negócio, acaba desfazendo o matrimônio, ou pela decadência na aparência da esposa ou por ter perdido mesmo a paciência.
Outros há que se casam por amor passivo à doce e romântica namorada que já não ama com paixão, mas tem o seu respeito e mais que isso, tem sua amizade. Esses casamentos são os melhores e nesse grupo, creio eu na minha modéstia barata, estão as Amélias, já que os homens gostam dessa disposição da mulher aos seus caprichos. Falta só uma coisinha simples: paixão e uma pitada de falta de razão. Para um homem ambicioso de vida, ingredientes fundamentais, aliás, sua fonte de sua desgraça e perdição.
Se essa doce Amélia souber a mágica de instigar amor e paixão, bom, então caminhamos para a frente: despertando amor, desmontam o que há de mau no homem. Temos a amada, humilde e louca de amor, cercada do que ela dá, querida e adorada. Há uma delícia em se amar mulheres assim, ficam as marcas dos seus dentes (rastros da sua nunca ignorada passagem) e a graça do riso vai demolindo o tempo subjuntivo: não há essa conjugação para elas, só certezas. Também uma medida boa dos medos, portanto, também desaparece: sobra uma mulher de verdade.

Velhas senhoras

Les vielles femmes, Henri Cartier-Bresson Posted by Picasa
Hoje ouvi de novo a querida Rita Pavone, conhecida no Brasil por ter gravado originalmente a "dameti un martelo" e olhe lá, mas sua voz que dá a impressão de ser muito aguda, só que não é, é linda, de fato linda justamente por isso.
Imaginei, pensando nela e na injustiça de não ser reconhecida, que eu tenho na cabeça uma imagem sua jovem, mas Rita hoje não é mais jovem, deve já ser uma senhora de 50 e alguns anos. Em seguida, veio à mente essa foto acima de Cartier-Bresson: "les vielles femmes" ou "as velhas senhoras" e também o seu truncado olhar de reprovação a tudo que não lhe agrada, sentença que dói só de imaginar.
É engraçado a contradição aparente que as senhoras lançam aos olhos atentos a esses símbolos, como se não fossem mulheres aptas ao amor, à aventura, ao riso e à desventura: as velhas senhoras parecem matronas perpetuamente ligadas a censurar e a reprimir, sem fertilidade, sem riso, sem saúde. Não são poucas as censoras idosas que na minha infância ralhavam comigo por qualquer bobagem, como da vez que tive uma dúvida de interpretação da bíblia no velho testamento. Perguntei à professora de catecismo se, já que Deus tinha ordenado à Noé e sua família para crescer e se multiplicar, tinha mandado que todos fizessem muito sexo, já que só assim é que os bebês vêm ao mundo e que, logo, o sexo não seria assim tão mal, já que estaríamos obedecendo diretamente ao Altíssimo, mas a minha professora, uma senhora que quase setenta anos, disse que eu estava subvertendo tudo e, na minha inocência, não compreendia o mal que havia no sexo feito de maneira lasciva. A pobrezinha não percebeu que não disse nunca que seria por diversão, mas justamente para reprodução, de todo jeito ficou muito sem jeito e brava, indo conversar com mamãe na outra vez que me levou à aula. Sou forçado a reconhecer, em outra medida, que mesmo as mais severas e tristes velhas senhoras guardam um jeito mais inocente, essa professora quando ruborizou com a minha observação prova essa delicadeza, em casa, por exemplo, muitas foram as vezes que vi minhas avós aprontarem-se para casamentos e festas com essa alegria inocente e pura, cheias de carinho ao distribuírem seus sorrisos formidáveis.
Hoje, porém, concluí que esse modelo está totalmente falido, a geração de coroas a que pertence Rita Pavone desbancou para sempre o mito da "velha senhora", já que as novas velhas são mesmo como as mulheres novas de agora, viveram a liberação sexual, a revolução feminina, não praticam a religião como suas mães e avós, enfim, são tão jovens no comportamento como qualquer mocinha de vinte anos, com a vantagem de saber que os sonhos são mais saborosos se forem mais práticos e que os homens se apaixonam pelo que não podem ter.
Não se vêem pelas ruas senhoras de xales pretos às costas e óculos fundos com touquinhas e sorrisos de gentileza, as senhoras modernas não são assim tão clássicas, vestem outras roupas, têm o próprio carro, não são feitas de tolas nos contratos com a mesma facilidade e talvez seja verdade que o nosso Cartier-Bresson tenha capturado um olhar extinto nos dias de hoje, talvez não exista no mundo mais essa matrona má e cheia de rancor, pronta a censurar com apóio de sua irretocada contuda moral e religiosa, não foi-se esse tempo e esse comportamento.
Imaginei agora a senhora Rita Pavone com seu martini na mãozinha direita, junto ao parapeito de algum transatlântico comentando com uma amiga que lindos jovens estavam na disco noite passada: assim são nossas novas velhas senhoras.

domingo, julho 03, 2005

Só para raros

"... Minha vida fora penosa, transtornada e infeliz, conduzindo à destruição e ao niilismo, fora amargurada pelo sal de todo destino humano, mas havia sido rica, orgulhosa e senhorial; uma vida soberba até mesmo na miséria. E anida que o resto do caminho até o ocaso fosse inteiramente desfigurado, o cerne dessa vida fora nobre, tinha feição e estirpe, não girara em torno das moedas, mas em torno das estrelas."

Hermann Hesse, O lobo da estepe
O primeiro amigo que fiz por aqui não é como eu esperava (um brinde à vida!). O vizinho que estudava filosofia na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais partilha comigo alguma estranheza aos costumes e jeitos daqui.
As disussões, entretanto, não restaram nas fronteiras das nostalgias pelas montanhas nobres que foram nosso berço comum, caminham animadas comumente pela cerveja para combater o calor a temas como o existencialismo, inatismo da personalidade, angústia pela razão, música popular e, evidentemente, poesia.
Sua triste e apática figura lembra o de um refugiado de guerra que sofre pela fome e pela humilhação e os traços ora frágeis, ora agressivos parecem marcas que se fixaram após terem expressado todas as expressões e sido assim o espelho físico de todas as torturas que seu jovem espírito sofreu. De início, essa sua débil figura foi o prenúncio de verniz intelectual estilizado e subestimei pretensiosamente o alcance de suas idéias, tomando-o por um desses que gostam de dizer que estudam filosofia, viajam a congressos da juventude comunista e em segredo conspurcam uma natureza pobre e arbitrária, emoldurada por suas baforadas entorpecidas. Enganei-me, felizmente.
Os óculos que trazia na cara não eram uma peça de seu figurino, mas a ferramenta que usava para ler, para auxiliar os olhos míopes a conversar com os seus mestres, partilhando deliciosamete as idéias avassaladoras da rica filosofia do fim do século XIX e do século XX. Isso vi não pelos livros espalhados em seu quarto e que trazia sempre à mão, mas pelo vigor com que defendeu, certa vez, que a moral cristã era um mal que a sociedade usava para seu conforto, um conforto burguês, mais ou menos igual ao que dizia Nietzsche. Idéia que eu, pessoalmente, considero agressiva, mas que mostrou também que o vizinho trazia na alma uma tristeza e uma agústia que eram filhas da sua consciência clara do mundo e das coisas.
Daquela discussão em diante, ambos ganhamos confiança para trocar essas impressões, ele declarando-se descrente das instituições e dos sistemas ordenantes, eu partilhando minha angústia do superficialismo dos sentimentos e da pequenez das vontades e objetivos que era o normal, ambos nos sentindo, de fato, pessoas alijadas do mundo burguês, e emprego essa palavra no seu pior sentido: um mundo de aparências, conveniências, culto à posse e egoísmo endeusado a ponto de ser considerado normal não ser solidário.
Fomos a um clube de serviço para universitários no sábado, como o que eu freqüentava em Juiz de Fora, e argumentando com o vizinho que também no meio da sociedade de valores pequenos e mesquinhez há muita gente que não se deixa abater, que é persistente e que nós mesmos não temos de nos atormentar, temos sim de viver com plenitude a vida misteriosa que teremos antes de morrer e ter por cima uma lage e embaixo, definitivamente, a solidão.
Discrente do meu otimismo, disse seguidas vezes o seu costumeiro "será?" e eu ri intimamente e por fora dizendo que sim, que temos a grandessíssima vantagem de não viver vidas tolas e inúteis e que nos esperava um destino cheio de surpresa (talvez a coisa mais certa de se dizer de algum destino). Lembrei-lhe ainda que essa liberdade, se custava o tormento de amargurar-se com a feiura do mundo e com angústias existenciais, permitia-nos rir muito mais que as outras pessoas e secretamente, no mínimo, gargalhar das circunstâncias do acaso e mesmo debochar das pessoas que se elevam acima dos outros, desconhecedores da nossa condição de macacos muitíssimo inteligentes, mas ainda macacos.
Não lhe convenci, no fundo talvez pretendesse convencer a mim mesmo novamente e cada vez mais dessa idéia, mas ele também lembrou-se que muitas vezes tentou ver esse prêmio como um consolo por ter partido do mundo das idéias simplistas e da alienação e me disse isso. Disse enfim, talvez para que finalmente ele sorrisse: "vivemos uma realidade que é só para raros", ao que ele respondeu que os loucos são raros, daí foi minha vez de sorrir.