domingo, outubro 21, 2012

E então, garotão?


Nesses dias em que a política da minha terra andou a dar o que falar por conta das eleições municipais, é quase impossível não associar estas agitações democráticas ao meu tio que muito apreciava essas atividades, participando ativamente dos pleitos como candidato ao legislativo e ao executivo municipal, sendo eleito e cumprindo mandatos muitas vezes para as diferentes funções: a dedicação de uma vida inteira ao bem de uma terra.
Mas este ano já não pôde cumprir o que certamente seria mais uma campanha para prefeito, já que há pouco mais de dois anos levou-lhe a vida uma colisão brutal, após um despiste, após uma curva em declive, sobre uma pista molhada de chuva, sobre uma ponte, não muito longe da nossa terra.
Não me incomoda a morte porque sei que ele viveu, talvez não tanto quanto possivelmente lhe iria permitir a natureza (razoavelmente, pois já vinha sofrendo com doenças do coração e fora operado no ano anterior), mas viveu. 
Ao longo dos incompletos sessenta anos que andou por entre a gente, foi o próprio carisma e muitas vezes, a própria amizade, o amor e a coragem. Não conseguia dizer que não a ninguém, e talvez por isso fosse muito criticado e também por isso tenha perdido muito do património que já estava a ser transmitido por herança na minha família há quatro ou cinco gerações. 
Sorria muito e nos cumprimentava com o costumeiro sorriso, com as bochechas do sorriso..., os seus óculos de aro dourado e o clássico bordão: " - E aí, garotão?". 
Quando era criança, lembro-me bem de uma festa de aniversário em que foi o meu tio, sem me trazer ali nenhum presente. Claro, menino mimado que era, e sabendo que um primo tinha recebido um cavalinho lindo de prenda do meu tio, não podia deixar por menos e quando ele me cumprimentou eu fui logo perguntando se iria ganhar um cavalo também. O pobre do meu tio, que por óbvio tinha uma predileção por aquele meu primo, não estava preparado para aquilo e disse assim: " - Eu vou te dar mais que um cavalinho, vou te dar a bezerrinha mais linda que eu já tive". Claro que eu não fiquei contente, mas de qualquer das formas, foi um grande presente. No dia seguinte, bem cedo, o tio não se tinha esquecido do presente, e mandou entregar na quinta do meu pai uma linda bezerrinha.
Era cafeicultor, como o pai dele, e também tinha outras atividades agropecuárias
Não negava nada a ninguém, aquele bom, gentil homem, nem mesmo a um sobrinho mimado.
O meu pai amava-o com uma dedicação notável. Desde criança, sempre o vi muito envolvido nas campanhas políticas do meu tio, argumentando quanto a temas de que normalmente não falava, colocando dinheiro no que normalmente não punha, indo a onde normalmente não ia. Eis o tipo de dedicação que o meu tio provocava não só no meu pai, seu irmão, mas em toda a gente.
Eu próprio, apenas um pouco mais velho do que no episódio que contei acima (creio que completava então cinco anos), ajudava também nas campanhas e ia com o meu pai aos comícios. Para mim, como é claro, eram momentos muito aliciantes e a figura do meu tio era para mim e para o meu irmão e primos e tios, como para os primos e demais parentes dele também, uma grande referência na nossa família.
Por dezasseis anos compôs o executivo municipal, por quatro anos como vice-prefeito e outros doze na função de prefeito. No início do seu percurso foi ainda vereador por um mandato de quatro anos.
Fez pelos pobres sobretudo: casas sociais, calçadas das ruas, centros de saúde, escolas, tantas obras e tão abrangentes que não haveria a cidade que há hoje sem o esforço desenvolvido por todos os anos que esteve a frente dos destinos da municipalidade.
Não foi, todavia, perfeito. Nem na seara familiar, nem na profissional e nem na política. Errou por vezes ao querer ser bom demais. Dizia o avô dele, meu bisavô, que "o homem tem que ser 'bão', o que é 'bão, bão', arrebenta no chão", e nisso há muita sabedoria. 
Emprestava dinheiro a quem o levava sem intenções de pagar de volta, ajudava com a sua influência e posição, quem não lhe tinha verdadeiro respeito ou não reconhecia o seu trabalho, dava oportunidades ou confiança a quem não as sabia aproveitar, ou que não estava ao nível de fazer valer as oportunidades ou confiança, e acabava por comprometer o seu nome. 
E pelo bem e pelo mal, feito por vezes sem conseguir antever a maldade, foi sobretudo muito amado e vai ser ainda lembrado por muitos anos.
De mim, o "garotão" terá sempre a memória de quem muito o respeitava e amava. Morreu quando eu terminava a minha dissertação de mestrado, e por isso lá consta uma dedicatória à sua memória. Recordo hoje e sempre, como com relação ao meu pai, a sua juventude (o que aqui não tem a ver com a idade). Amava a vida e amava a nossa terra e por estes amores muito sofreu e muito sorriu. 
Que Deus o tenha na Sua infinita misericórdia, pois a nós só resta ter muitas saudades do nosso "garotão".