sexta-feira, dezembro 27, 2019

Quando te fiz chorar

Les frères, Annie Massollo

Há poucas coisas tão íntimas quanto as emoções. Como umas acabrunhadas filhas no nosso ego, elas relacionam-se diretamente com os medos, as paixões, as ilusões e as ambições mais profundas.
Cedo aprendi o poder destrutivo, ou até involuntariamente construtivo das emoções. Recordo antigas discussões com o meu irmão, sempre muito acalouradas, por coisas sem nenhuma importância, mas que resultavam em dramas fenomenais. Ele com o seu especial gosto por provocar e testar os limites, eu com o meu orgulho e meu sentido de justiça. 
Quando estávamos os dois na segunda infância, eu com 12 anos e ele com os seus 9, tivemos uma briga séria, que começou por qualquer tolice num jogo de futebol. Ficamos então sem nos falar por uns dias, a fingir que o outro não existia: um comportamento tão estúpido e cruel que ainda hoje me envergonha. Na altura a nossa maturidade não dava para muito mais, e ficávamos a medir forças com esse tipo de agressividade inútil... Mas como era época das festas da cidade, também andávamos os dois muito distraídos com outras coisas.
Era comum saírmos à noite com grupos de amigos à procura de algum entretenimento: ver as novidades do parque das exposições e por lá passear e arranjar algumas confusões. 
O recinto constitui-se num grande largo com um campo relvado para as provas equestres e rodeios, com uma grande arquibancada que se insere harmonicamente no declive, formando uma espécie de mistura entre praça de touros e anfiteatro grego antigo. Há restaurantes improvisados à esquerda de quem chega, com alguma estrutura a mais que a dos carros das farturas das feiras e festas populares, além de pavilhões de exposições. À direita ficam os pavilhões com os estábulos para os animais, sobretudo cavalos e bois, mas também há um ou dois pavilhões temáticos. À frente, fica uma grande estrutura com palco, com dois pisos e uma excelente projeção sobre o largo. No fundo ficam, aí sim, as carrinhas de farturas e outras vendas em barracas montadas, das quais recordo com particular saudade as que vendiam uns estupendos espetos na brasa.
Anexo ao parque das exposições, ficava o recinto do parque das diversões, com os brinquedos para miúdos e, muitas vezes, também para os adultos. Era um grande campo em declive suave, talvez com três mil metros quadrados, em que havia espaço suficiente para se meter uma roda gigante, pula-pulas, um carrossel (ou dois), uma pista dos carrinhos de bate-bate, além das brincadeiras de arremesso e de tiro ou um ou outro brinquedo da moda que desafiava a coragem dos mais audazes. 
Estava montado o palco ideal para as grandes disputas entre os rapazes!
O meu irmão e eu andávamos em grupos diferentes, e naquela altura ainda por cima, estávamos zangados um com o outro, como já referi. Estávamos cada um por sua conta e risco, num ambiente de muitos ânimos!
Tendo saído de casa mais cedo que eu, o Fernando juntou-se logo com os amigos no recinto. Depois de darem duas voltas àquilo, resolveram ir investigar uns tambores que haviam sido usados numas provas e estavam encostados à beira do relvado. Os miúdos, à falta de supervisão, logo fizeram daquilo uma brincadeira em forma de desafio: "aposto que não consegues ficar de pé sobre o tambor!". Enquanto a coisa estava entre eles, tudo bem. À parte de que os tambores não deviam ter sido deixados ali,  soma-se o risco de que os miúdos podiam partir o nariz numa queda, mas pronto, merecendo alguma censura, não é grave por si só. 
A treta começa quando o meu irmão desequilibra-se do tambor, que apanha impulso e vai direitinho contra as pernas de um rapaz muito mais velho. Talvez já com uns 15 anos, ele era um repetente regular, conhecido da nossa escola, e estava por ali com uns amigos.
"Vais pedir desculpas já!". "Não vou. Foi um acidente". Os outros à volta, sedentos de alguma ação, atiçavam os adversários: "Vais morrer, miúdo". "Vais ouvir isso e calar?". "Eu não deixava que me fizessem isso".
Eu entretanto já andava por ali, porém mais interessado em ver se espreitava uma certa rapariga nos restaurantes que propriamente à procura do mano. No entanto, a voz era demasiado familiar para que não fossem chamados à colação os meus instintos mais primitivos: "És grande, mas és fraco!"
A este último impropério seguiu-se uma valente troca de socos e muita gritaria dos miúdos à volta. Sem pensar no que seria do lindo fio de ouro que trazia ao pescoço, ou da camisa nova que me fora oferecida pela avó e que estreava naquele dia, ou ainda do cheiro fresco de perfume que exalava em favor daquele recinto com os cheiros que podes imaginar, caro leitor, irrompi no conflito a agarrar o meu irmão pelo casaco e lançá-lo para longe daquilo e, ato contínuo, desferir um belo murro na orelha e dois pontapés nas costelas do rapaz. Levei também uma bordoada - o rapaz não era tão fraco quanto o meu irmão dizia. Mas logo aquilo acalmou com a chegada dos adultos e fomos lá obrigados a apertar as mãos e nos desculpar uns com os outros, embora (e ainda bem) não se tenha feito qualquer apuração de culpas, propriamente.
O Fernando nunca se esqueceu daquele dia, e nem eu, obviamente. Para além da poeira levantada pela fumaça daquelas turras que nós tínhamos, para além das tolices emocionais que não contam para nada, há dois corações, muito leais um ao outro, capazes de grandes atos de bravura ou desprendimento. O que conta, afinal, é a sintonia entre os corações... Naquele dia, por muito ruído emocional que houvesse à volta, a vida aconteceu (e acontece) naquela vibração.
Quando o encontrei depois da briga, ele ainda com a cara vermelha da sova que levara, não havia derramado uma só lágrima. Nos meus braços, no entanto, dominado pela emoção do meu acolhimento à sua defesa, chorou discretamente e deixou escapar um longo suspiro. Logo em seguida, enxugou os olhos com as mangas do casaco, respirou fundo e disse, "Bem, agora vamos ver o que mais há para fazer por aqui".

sexta-feira, dezembro 06, 2019

Menininha do meu coração


Vieste a este mundo de modo insuspeitado, como a vida deveria ser sempre. E que grande chegada, Puca-puca... Recordo da ligação do Fernando a dizer que eu seria tio e que dali a uns poucos meses haveria um casamento, tudo assim um bocado em cima do joelho, mas sempre com um imenso sentido de alegria.
Nasceste há sete anos, a 4 de Dezembro, um dia de sol em Coimbra, em que eu percorri as bancas de jornal e recolhi tudo quanto se havia publicado nesse dia, a pensar que no futuro irias gostar de ver como estava Portugal e o Mundo no momento da tua chegada.
Logo chegaram as tuas primeiras fotos, que causaram grande curiosidade: não eras parecida nem connosco, nem com a família da tua mãe: como todos os recém-nascidos, eras uma coisinha acabada de sair do conforto do ventre materno, rosada e chorona, ainda muito inchada. Um traço teu, no entanto, chamou-me logo a atenção: tinhas já um queixo delicado, como o da tua avó paterna, e podia-se adivinhar o contorno do teu rosto desde aquele ponto de acesso à forma dos teus sorrisos.
Vieste cá ainda bebé e encheste-me o coração de alegria: as tuas reinações mantinham-nos todos entretidos: os passeios a Fátima, ao Porto ou a Lisboa eram sempre o mote para fotos curiosas, como a que temos contigo na Avenida dos Aliados, em que te agarraste em simultâneo a mim e ao teu pai, sem querer estar ao colo só de um dos dois.
Depois fui eu que viajei ao teu encontro, doçura. Nos longos meses em que a tese foi sendo escrita, que grande conforto não me trouxeram as nossas brincadeiras de domingo nas Três Barras. Revivi contigo os momentos de uma infância privilegiada, em que livres e intrépidos, o teu pai e eu desbravávamos os limites da quinta, conhecendo ao pormenor cada árvore dos pomares, cada declive em direção aos córregos, a cor dos campos de pasto, o cheiro dos armazéns de café e o silêncio do açude que em nós fez-se (e faz-se sempre que lá estamos) no encontro com o nosso eu profundo.
Também tu e eu corremos pelos campos, nadamos na piscina, colhemos acerolas e comemos mangas, quase sempre contigo a cantar qualquer música... Aliás, fui eu quem te ensinou a assobiar e tu rapidamente dominaste este primeiro "instrumento musical" para de mais uma forma expressar os teus gostos.
Fazes parte disso tudo que somos nós, tens o nosso sangue e o assim a nossa grandeza e a nossa miséria... És inteligente e delicada. Pensas antes de falar e és muito cuidadosa. Uma sedutora como poucas, consegues sempre o que queres sem nunca, nunca forçar... És um exemplo para essa legião de chatos que vivem a insistir e espezinhar... Não, tu guardas a tua dignidade altaneira e tens aprendido rápido a ganhar e a perder. Mas também amas muito e sinceramente... e por isso te colocas muitas vezes em posições de fragilidade. Vai chegar um tempo em que poderás querer sentir de outra forma: se lá não estiver o tio para te olhar com amor e dizer "esquece, encanto", lembra do seguinte: amar é expressar gestos de generosidade convicta, não uma busca por validação.
Brinca com as tuas bonecas, escolhe as tuas roupinhas, e os teus sapatinhos, veste-te de princesa e inventa brincadeiras: vive a tua infância na alegria e na paz, sê a menininha linda e feliz que anda por aí a distribuir sorrisos e a fazer sorrir, sem qualquer antecipação.
Não vou pedir que não cresças. Seria egoísmo, ou tratar-te como se fosses um brinquedo, a servir ao nosso deleite. Vais crescer e estás a ser criada para seres uma mulher, digna da nossa casa e de ti mesma, e assim serás. 
Porém, não nego que o teu riso de criança seja para nós a própria vida, pequenina. Conservá-lo é que queremos para ti, no dia dos teus anos e sempre, mas sem técnicas de redoma, que te previnam de experimentar o mundo. Do alto das montanhas das minhas convicções, majestosas como as da nossa terra, terás do tio sempre um abraço de amor e uma palavra de verdade, e nenhuma desilusão te poderá jamais deitar abaixo.