sábado, dezembro 05, 2009

Quando se tem amor

Quando se tem amor
A se oferecer em partilha
No dia da grande viagem
Que é o nosso grande amor

Quando se tem amor
Um amor, tu e eu
Para morrer de alegria
A cada hora e a cada dia

Quando se tem amor
Para viver nossas promessas
Sem nenhuma outra riqueza
A não ser a de acreditar sempre

Quando se tem amor
Para enfeitar com maravilhas
E cobrir com o sol
A feiura da miséria

Quando só se tem amor
Como única razão
Como única canção
E única saída

Quando se tem amor
Para vestir o amanhecer
Pobres e bandidos
Com casacos de veludo

Quando se tem amor
Para se unir em oração
A favor dos males desta terra
Como um simples trovador

Quando se tem amor
Para entregar a essa gente
Que vai à luta
Em busca de luz

Quando se tem amor
Para traçar um caminho
E forçar o destino
Em cada encruzilhada

Quando se tem amor
Para falar aos canhões
E bastasse uma canção
Para convencer os tambores

Só então, quando não tivermos mais nada
A não ser esta força que é o amor
Teremos na palma de nossas mãos
Minha amiga, o mundo inteiro!


Jacques Brel

quinta-feira, novembro 19, 2009

A nossa casa


Por vezes lembro-me daquela singela crónica de Vinicius de Moraes para o seu filho pequenino, a sofrer com febre. Ficou talhada à memória a imagem do pai impotente, vergado sob o berço, a rezar de aflição, com o coração a arder de paixão tanto quanto a carne do bebé. Assim é o amor.

É curioso como o nosso mundo vive a explorar sempre mais a ideia do amor, da sua transcendência, do seu conteúdo de caridade, da sua palavra de carinho, do seu colo morno, da sua natureza de ser lar, milhares de adereços, todo um magnífico conjunto de esforços a orbitar esse astro, e mesmo assim assombra a quantidade de gente que passa a vida sem tocar-lhe, sem ter nada dele, mais importante (e talvez por essa razão): sem se dar conta que está em tudo e que se manifesta em tudo, basta querer dar de si, basta querer ir para além de si que o amor virá ao seu encontro como o sorriso que nos acende a alma.

Vivemos rodeados pela ideia do amor, mas muitos há que por mais que queiram sobra-lhes alcançar apenas uma superfície fina e fria. Que triste paradoxo. É como viver cercado de ouro, diamantes e jóias caras numa ilha deserta. É a impotência fundamental de viver.


Amo-te como amigo e como amante

Numa sempre diversa realidade.

Amo-te afim, de um calmo amor prestante

E te amo além, presente na saudade.


Amo-te, enfim, com grande liberdade

Dentro da eternidade e a cada instante.


Eis os seis versos do soneto do amor total que, no meu modo de ver, buscam mais precisamente a essência desse "abandono desordenado", essa caridade infinita que é o amor.

Em honra a essa bela ideia, essa faceta do multi-explorado sentimento amoroso, umas linhas a mais para contornar seu longo, árdo e dourado caminho.

O amor vive, tal como nós, as plantas e os animais, e da mesma forma se alimenta, cresce, reproduz-se. É um ser abstrado com necessidades concretas. Uma vez instalado legitimamente, uma vez confrontado com o seu dono, nunca mais desiste. Persiste. Eis a face mais honrada do amor. Continua. Levanta-se às injustiças, às porcarias da vida, revolta-se, luta. É sublime, mas não por um desejo de reconhecimento ou fortuna, impulsos que podem guiar-nos na vida profissional, antes o-é por instinto de que o outro faz parte desse que ama. Há aqui uma união de facto, no sentido mais poético do termo.

Disso vê-se facilmente que o sofrimento de um é o do outro, e a alegria de um é a do outro também. E aqui um dado curioso, nada mais é preciso para que isso se passe que a mera função da pessoa amada existir. Não se exige compromissos assinados em cartório, anéis, fotografias, telefonemas, cartas... Basta existir, pois assim no peito existirá também, qual a chama da vida que em nós arde por todos os instantes, esse amor que quer bem, esse amor que é a miséria repartida e que faz de ambos menos pobres, esse grande elemento de conforto a todas as mazelas que se nos impõe a vida.

Antes do mundo das maravilhas ou da felicidade, o mundo da fé, da caridade, do encantamento nessa doce pessoa que encontramos pelo caminho e que nos leva adiante a cada dia na simples condição de existir. Eis o amor que há no mundo.

terça-feira, novembro 10, 2009

Feliz aniversário

É uma loja que fica em frente ao Arco de Almedina, portal que sustenta a última das sete torres erguidas por Afonso Henriques para proteger a citadela da Alta de Coimbra.
O emblemático passado daquela zona não comunica muito mais ao comércio, anestesiado pelas grandes superfícies, mas ainda muito preguiçoso para reagir. Logo serão os próximos a pedir auxílios do Estado por terem sido "devorados pela crise".
Voltando ao sítio em questão. Fica em frente ao Arco de Almedina. É uma loja de peças em couro, mas não estamos a falar de selas de cavalo ou tapetes de pele de tigre, mas sim do mais fino couro para botas, bolsas e casacos.
É tanto couro junto que o cheiro distinto remeteu pra uma outra linda loja, noutras paragens, mas igualmente impressionante, onde me tinham mandado escolher o casaco que quisesse. Fora então o dia dos meus anos.
Por tantos anos tive aquele casaco sobre os ombros como que a vestir um comprometimento com um futuro que hoje se faz presente e dele sobra essa saudade maio sem pai nem mãe. Sem saber bem a que se refere, ele existe, como um enfeite no meio da sala que faz alguma boa figura, embora não comunique nenhuma ideia ou lembrança, não signifique muita coisa mais.
Comprei um novo casaco, feito na Índia, espero eu que não por crianças famintas, e com um toque macio à sua pele de ovelha, sendo assim mais confortável que o anterior e mais leve. Sim, mais leve. Quando a vida nos deita à frente o mais escabroso dos problemas, a mais espinhosa das situações, é a hora de ter a serenidade necessária para saber o que fazer e ter muito peso nos ombros não ajuda muito!
Antes como agora, o nariz aponta pra frente, sem medos ou receios de se comprometer e fazer desse grande palco de loucos um exercício útil para alguém mais que eu mesmo na satisfação dos meus caprichos particulares, bravura de ver no horizonte uma linha a desaparecer, sem montanhas com o dedo em riste e sem o peso meu velho casaco de couro a fazer pender para frente.

sexta-feira, outubro 30, 2009

C'est bien loin tout ça

Enquanto os jornais de Coimbra criticam o cortejo da latada desse ano pela falta de consistência, perdendo folhas de papel com esses apontamentos ingratos, soube a mim, como a muitos outros, se calhar, um gosto de nostalgia demasiado forte para qualquer observação agressiva.
Já não tive ao meu lado os meus colegas tão queridos, cuja ausência nesse ano ressona tão alto nos meus ouvidos e salta para cima dos meus olhos em momentos como esse.
Daquela vez no ano passado tínhamos corrido as ruas com um grupo de estudantes do segundo ano do curso de direito para arranjar-lhes uns nabos para seus caloiros. Logo passadas umas horas, éramos já nós os que trincavam o legume. Como um rio de carrinhos de supermercado, caloiros de meias-calça rasgadas e sutiens e doutores desbatinados, fomos chegando à baixa para, por fim, dar o banho do baptismo aos novos estudantes, passavam a ser de cá de Coimbra então, se calhar também nós passamos a ser.
Embora houvesse em tudo semelhança, e talvez, é possível, alguma superioridade ao desfile anterior, já não pareceu tão engraçado. A mim faltou-lhe aquela despreocupação para me entreter e sorrir, já agora há tanto por fazer!
De todo jeito o meu coração foi muito alegre nos instantes que lá estive, do que sem nenhum exagero é o meu dia favorito em Coimbra em todo o ano, o do cortejo da latada. E isso explico pelo seguinte: já não há mais eventos como esse, em que o que importa mesmo é a amizade, a integração dos mais velhos e dos mais novos, desprovido de interesse económico. Os concertos no recinto (a preços de 12€ no fim de semana apenas para entrar) infelizmente converteram-se na forma de a Associação Académica de Coimbra fazer bons contratos com as marcas de cerveja e com os que querem lá ter uma lanchonete, para além dos patrocínios dos media e de empresas. Muito há que se dizer desses contratos, tanto nessa altura da latada quanto na da queima das fitas!
De tudo em tudo, o cortejo da latada permanece aquela coisa simples e feita em casa, sem grandes pretensões, embora extremamente bonito e sincero, pleno de alegria e movido cidade abaixo, rumo ao Mondego, pelo coração uníssono de todos os estudantes.

quarta-feira, outubro 14, 2009

Devagar para não faltar amor

Em meio às confusões do início do ano académico, contribuiu para o convívio dos colegas do ano passado a conferência sobre a suprema corte de Israel. Interessante não seria o termo. Digamos que a conferência em si foi informativa e que ri uma ou duas vezes do sotaque do palestrante, magistrado dessa corte.
Mais a mais, aquilo era uma boa centena e meia de alunos da licenciatura, meio sem perceber aquele inglês internacional, meio distraídos em olhar uns pros outros e ninguém de facto muito interessado na imparcialidade da corte maior do estado judeu. Por acaso não vi lá o Francisco, a quem a palestra teria interessado para além do aspecto puramente académico, digamos.
Uns lá, a se fazerem de bravos, levantavam grandes argumentos sobre o tratamento isonómico de todos os cidadãos israelenses, judeus ou não, outros a baterem-se pelo sagrado direito de defesa do estado judeu para justificar acções abusivas contra uma população palestina desarmada e miserável... Se algum dia fechei fileiras com esses, já não é mais assim, não vou mais por esse caminho. É tolice.
Não digo que seja tolice defender uma ideia com ardor, bater-se por ela, querer vê-la ganhar corpo nos corações e mentes dos outros. Se for um propósito digno e justo, ora que belo sentido para se dar à vida! Muito melhor do que viver de maneira leviana e consumista, ao capricho das aparências e dos modelos de carros.
O que acho que não cabe bem é levantar-se para ocupar o silêncio com a voz no sentido de querer ganhar uma atenção fácil e desmerecida... Nesses empenhos, nenhum proveito é colhido pelo ouvinte. Talvez iludido por alguma bela palavra, algum artifício de linguagem, deixa-se levar pelos primeiros minutos, vai confiando por algum desejo secreto de satisfazer a curiosidade de que aquilo faz sentido ou vai dar a algum lado. Não, nem por isso. As pessoas apenas cometem esses crimes contra o silêncio por amor a si mesmas, querem atenção, querem ser notadas, querem os elogios, os olhares, a confirmação de que sua existência tem propósito e sentido. Que débeis criaturas somos nós quando nos deixamos levar pelos valores errados!
Já agora é melhor ir devagar. Ouvir e calar. Não por medo acovardado em levantar a voz, mas simplesmente porque não vale a pena dar combate à bravata e à estupidez. Ambas arruinam-se no seu triste labirinto de véus de vaidade, cansam-se uma da outra e apunhalam-se mutuamente em traição.
Confio, assim, que um caminho de discrição e pouco riso (quando possível, pois é muito difícil) reserva mais doçura, mais proveito para o aprendizado e, certamente, amor para não faltar nunca a ninguém que o mereça.

quarta-feira, outubro 07, 2009

Fim da terra

Como um lento reflexo a se compor sobre a superfície do mar, o dulcíssimo marejar fez vir uma sensação de sentido e de receio que esmiuçava-se no calor.
Desde então - que grande sorriso maroto! - o verão foi doce e pleno.
A visita à Galiza, especialmente ao cabo Finisterra, foi apenas a precursora das indizíveis aventuras desta estação dos suores e das noites curtas...
Umas tantas músicas dos anos 80, bem lamechas, para o fim de tarde a voltar pra casa. Quantas outras passagens não recordam o mesmo sincero beijo? O tempo corre mais depressa desde que se decide pela vida...
Mas agora, sobre a secretária já cobram atenção umas poucas notas que remetem a telefonemas e compromissos para essas primeiras semanas do outono. Logo avoluma-se o trabalho, enche-se os dias com horizontes outros e pensamentos diferentes, preocupações novas. Um mesmo pulsar no coração, no entanto, alimenta-se de uma força destemida que parece sempre tão legítima que merece sempre um sorriso para si.
Acarinhada gema, nas minhas mãos indefesa e contente, que grande beleza nasce a cada seu sorriso.
E assim também eu nasço de novo a cada dia, estranhamente mais jovem e mais bonito, algo envergonhado por ter a si nesse precioso sítio, talvez, como num contínuo verão, fértil e robusto.
Nada mais afortunado que ter um coração puro.

segunda-feira, setembro 28, 2009

Aos bocadinhos e com muito jeito

O que decidiram os portugueses nas eleições legislativas de 2009? Talvez a ideia de um país forte e com um governo voltado para as necessidades de todos tenha passado pela cabeça de alguns, mas o mais provável é que o sorriso, a boa disposição de espírito e a notável capacidade combativa do primeiro ministro tenham sido os responsáveis por dar ao seu partido mais um êxito.
Ganha Portugal? Não me parece. Antes, ganham os que, felizes em se alimentar das migalhas da mesa do primeiro ministro, vão ter o que comer por mais 4 anos, subsistência que talvez seu talento não possa suprir. Como o resto do país, os entusiastas militantes do Partido Socialista parecem acreditar que José Sócrates é um homem sério e honesto nas suas promessas. Assim, sonhando com um futuro de largas expensas e privilégios comerciais às custas do tesouro público, continuam a adornar as fotos da vitória, essencialmente, as jovens e atraentes militantes que circundavam já o primeiro ministro nas fotos da campanha.
As eleições provaram também que os portugueses não gostam de atalhos mal iluminados e com más infraestruturas. Provar pela primeira vez tem de ser feito com cuidado e envolvendo o mínimo de risco.
Foi deste modo que o CDS/PP e o Bloco de Esquerda elevaram muito substancialmente suas participações no número de deputados da Assembleia da República, sem ameaçar, no entanto, a supremacia do PS e do PSD.
Aos emergentes, o eleitor disse: "vamos ver o que vocês fazem com esse bocadinho a mais. Se forem mesmo capazes, ser-lhes-á dado mais um bocadinho." Assim como é muito incorrecto achar que o PS e o PSD têm lugar incontestável no cenário político, é igualmente errado achar que mudanças bruscas são possíveis e, num certo sentido, é bom que seja assim, pois a estabilidade é que confere sólida legitimidade.
Mesmo que se diga que a percentagem de votos de forças políticas como o CDU decresceram, o grande perdedor foi, surpreendentemente, o vencedor... O PS que até agora detem algo como 120 lugares para deputado na Assembleia, passará a ter 96 e passa a depender de alianças com outros partidos para aprovar projectos de seu interesse. Afinal, a arrogância da maioria absoluta deste partido mostrou aos portugueses que absolutismo nenhum é positivo e assim, a democracia portuguesa, aos bocadinhos e com muito cuidadinho, já agora vai poder respirar.

terça-feira, agosto 18, 2009

O outro eu

Existe um outro homem que também vive sob a minha pele. Há muito não ouvia falar dele. Hoje lembrei-me bem das suas feições e modos, já que estivemos a limar nossos pontos de vista, outrora tão próximos.
Mora ainda em Inglaterra, ao que parece. Conserva, magicamente, uns lindos olhos cinzentos, um peito aceso de amor incondicional e muitíssima força vital. É um touro, um burro desses que arrastam muitas vezes o próprio peso... e sorri, sorri com confiança. Quem corre por gosto não cansa. Mas é tão bruto, Santo Cristo, tão bruto é esse homem! Come com o garfo à mão direita e a faca à esquerda, tem olhares ora leves, ora pendulares, ora incrivelmente possessivos! Como é engraçado!
Nessa tão longa tarde de verão, participei a ele alguma poesia e acho que ele percebeu, sem concordar, o quão breve será sua vida (quase tanto quanto a minha) e que nesse atmo que dura pouco demais para lembranças torpes, confidenciou seu grande, grande amor, não na forma de uma declaração ou de um nome de mulher... mas na forma de seus actos, actos verdadeiramente grandiosos. Pudessem todos os homens perceber a grandeza na face desse homem, quanta dignidade a sua, acho que se envergonhariam todos da vida que levam e dos deuses que elegeram para si.
É um encanto o seu sorriso. Traz em si tanta firmeza e actitude que o pragmatismo que sempre me fez orgulhoso pode aprender hoje uma bela lição. Contou-me das suas tarefas quotidianas, das coisas simples de onde consegue retirar alguma beleza, das sutilezas de ser esquecido por todos e mesmo assim suportar o não poder esquecer e eu lhe perguntei insistentemente como. Mas como? Diz-lá, como?
"Porque também nisso há sentido. Porque foi o que passou e me deixou os olhos marejados, primeiro de uma forma, depois de outra, que me fez esse um no mundo, independentemente dos outros que ignoram os meus propósitos e fazem pouco dos meus ideais. Lembro-me de tudo sim, de tudo que me fez melhor, de tudo com que serviu de lição, pois se não sou choramingas, menos ainda sou burro." Com a mão a segurar o queixo, olhei malandramente os seus lábios a oscilar, mas reconheci-lhe o modo muito particular de ver as coisas.
Comentou ainda sobre o tempo, a temperatura da água do mar no norte, o governo do PS (sem muito entusiasmo), e despediu-se assim que esvaziou seu copo.
Era cedo para ir, pensei em dizer-lhe. Mas homens assim não são comandados pelas sugestões dos outros, seguem rectos, como as setas lançadas, o seu destino e cumprem-no.

sábado, julho 25, 2009

Palavras de sabedoria

Parte, e tu verás


Parte, e tu verás
Como as coisas que eram, não são mais
E o amor dos que te esperam
Parece ter ficado para trás
E tudo o que te deram
Se desfaz.

Parte, e tu verás
Como se quedam mudos os que ficam
Como se petrificam
Os adeuses que ficaram a te acenar no cais
E como momentos que passaram apenas
Perecem tempos imemoriais.

Parte, e tu verás
Como o que era real, resta impreciso
Como é preciso ir por onde vais
Com razão, sem razão, como é preciso
Que andes por onde estás.

Parte, e tu verás
Como insensivelmente esquecerás
Como a matéria de que é feito o tempo
Se esgarça, se dilui, se liquefaz
E qualquer novo sentimento
Te compraz

Repara como um novo sofrimento
Te dá paz
Repara como vem o esquecimento
E como o justificas
E como mentes insensivelmente
Porque és, porque estás

Ah, eterno limite do presente
Ah, corpo, cárcere, onde faz
0 amor que parte e sente
Saudade, e tenta, mas
Para viver, subitamente, mente
Que já não sabe mais
Vida, o presente; morte, o ausente –
Parte, e tu verás...

V. de M.


1961

in Poesia completa e prosa: "Poesias coligidas"







O coração não deve carregar consigo nenhum peso, não deve se deixar prender pelo que já passou, não se deve deixar envelhecer.
Uma vez o então presidente de um grande grupo de comunicação, em entrevista por ocasião de seus 99 anos ou algo do tipo, fez uma declaração que não pude nunca esquecer. O entrevistador perguntou o quanto ele amava a sua mulher, com quem era casado há pouco mais de um ano e o que sentia em relação aos outros amores que tinham passado. "Nunca houve nenhuma outra antes dela". É evidente que o que ele queria dizer é que o passado não significava nada, que ele não lhe ligava nenhuma, a primeira e a última namorada era a sua esposa, ela merecia e esperava essa dedicação.
É capaz que seja bem assim. Levar do passado, talvez os conhecimentos, nada mais que isso. Nem falsos cartões de natal, ou votos de feliz aniversário, aos que deixaram o convívio, tudo parece um pouco falso e sem muito sentido. Será que é sempre assim? Há amigos que perseveram no afecto e na fé? É bom que haja e é uma fortuna encontrá-los, mas a vida não é uma avenida de delícias, ao contrário, parece mais uma via rápida em que escolhas pragmáticas são precisas sempre mais rapidamente. Pobres dos amigos! Que interminável gradação de prioridades faz com que sejam empurrados em um vão de estupidez e auto-satisfação!
Sem pesares maiores, cabe o que se percebeu do brilho dos olhos deles, sempre a brilhar nos nossos de alguma forma, sem entretanto perpetuar sua ausência, sem desejá-los, sem citá-los, sem trazê-los para um convívio que não é parte deles. Passa-se algo como um velório sentimental, um sepultamento dessas esperanças e nem as saudades parecem verdadeiramente justas.
Mas os braços não lhes podem estar fechados, isso nunca. Há para eles um remanso de harmonia e bem-querer, um sorriso pronto e confiante, um desmemoriado gostar da presença, reencontrada na alegria simples do acaso que foi o primeiro encontro.
Deixar ir. Deixar ir. Para onde? Quem sabe... para outro sítio, de certeza, esse desconhecido lá onde os espectros não têm peso e nem importância e o novo senta-se à mesa no seu lugar de direito, sem ser perturbado ou calado por qualquer calafrio nosso.

terça-feira, julho 07, 2009

Depois de dois anos

Como se fossem meus os olhos de Verlaine no fim de sua vida, eu vi tudo isso de novo, com o coração esvaziado e a cabeça cheia de labirintos infantis mas difíceis de vencer.
Talvez tenha crescido ao meu lado uma criança madura e prudente que tem um sorriso contido e gosta de dar muitas ordens. Uma criança que não chora nunca e que nunca olha para trás.
Como o velho e amplíssimo salão do Instituto Granbery em Juiz de Fora, o pensamento mantém a sua elegância como que à espera. Mesmo tendo por princípio a acção, por vezes é preciso convir da natureza estática de certas coisas e deixar estar.
As ruas dos meus anos mais verdes perderam o encanto com a minha ausência. Ressentiram-se como o amor que os meus amigos me tinham. Já não sabiam meu nome, olharam-me como se fora um estranho e não como seu filho. Assim, uma brisa muito fria lentamente levou consigo o verde da borda dos meus olhos e eu fiquei fixamente a mirar a cidade, sem saber bem para que lado ir.
Como um trovão dos céus (embora o toque fosse amistoso e simpático, como o é), o telemóvel trouxe-me de volta à realidade. "Sim, sim, já estou cá, está tudo bem, sim, sim, obrigado, adeus." Que conversa estúpida, fez-me lembrar o propósito de tudo isso. De volta aos afazeres.
Seguiu à noite uma manhã de chuva. Detestável mais aos mais impressionáveis que a mim, propriamente, tive que adoptar a consciência inglesa de que um belo dia depende de nós mesmos unicamente e não da presença do sol.
De volta às galerias onde o negócio dos alfarrabes ainda é próspero e pujante, se calhar porque é alimentado pelo comércio de livros didáticos: umas mães a se desfazerem do inútil outras a tentar uma pechincha e os alfarrabistas a fazer algum dinheiro na intermediação. Também compram (depois de escolher com cuidado o que é conveniente) bibliotecas herdadas e talvez aqui esteja o grande interesse desses sítios: nunca se sabe o que se pode encontrar e nem em que estado de conservação!
Os alfarrabistas lembraram-se mais da minha ausência do que do meu nome. Tinham lá qualquer coisa boa, uma pequena pilha de livros de uma antiga colecção, embora, como é costume, não soubessem disso.
Da rua veio uma voz conhecida que me deixou cair aquilo. Fui correndo ver. A minha prima com uma colega, estava lá como a tinha deixado o meu último abraço. Sorriu, sorriu imensamente. Perguntou porque não lhe tinha ligado, fez que se aborrecia, sorriu de novo. Foi a minha taça de temperança, como fora noutros tempos, embora como então, não lhe tenha dito nada, nem do bem e nem do mal.
Fui dormir, como sempre, antes da criança vigilante ao meu lado. Olhava-me com uma expressão severa que já me tinha habituado. O seu silêncio calou-me um bocadinho mais e meus pensamentos não foram muito além. Ela que esteve nos sítios onde o meu coração floresceu e foi pleno, ela que viu quem me tinha amor e estima, ela que fez de uns e de outros pouco ou nada, também dormia sob a mesma lua pouco depois, sem pensamentos, sem sonhos, sem cócegas e sem amor verdadeiro.

domingo, maio 24, 2009

A Travessa da Esperança

Não vás tão docilmente

Não vás tão docilmente nesta noite linda:
Que a velhice arda e brade ao término do dia;
Clama, clama contra o apagar da luz que finda.

Embora o sábio entenda que a treva é bem vinda
Quando a palavra já perdeu toda a magia,
Não vai tão docilmente nessa noite linda.

O justo, à última onda, ao entrever, ainda,
Seus débeis dons dançando ao verde da baía,
Clama, clama contra o apagar da luz que finda.

O louco que, a sorrir, sofreia o sol e brinda,
Sem saber que o feriu com a sua ousadia,
Não vai tão docilmente nessa noite linda.

O grave, quase cego, ao vislumbrar o fim da
Aurora astral que o seu olhar incendearia,
Clama, clama contra o apagar da luz que finda.

Assim, meu pai, do alto que nos deslinda,
Me abençoa ou maldiz. Rogo-te todavia:
Não vás tão docilmente nessa noite linda,
Clama, clama contra o apagar da luz que finda.



Dylan Thomas

É uma travessa curta e estreita. Não chegou em tamanho e proporções para ser chamada rua, não era tão estreita para ser beco, é uma travessa, mas não é uma travessa qualquer: falamos da travessa da esperança.
Estimosa via junto ao Largo Rangel de Sampaio, localizada aqui na boa e mui antiga freguesia da Sé Nova, lar dos estudantes e dos senhores mais velhos e ponto de encontro para a conversa matutina da dona Fernanda e da dona Afonsa e das empregadas da residência universitária.
Escolho a ela e não a outras mais famosas e prestigiadas vias para as minhas inscurções à Baixa. Prefiro essa humildade cantada e discreta quando, de frente para a minha janela, dá-me a tranquilidade de sua (talvez) involuntária expressão poética.
É ali que espreito, todas as manhãs, o sol chegar primeiro e iluminar a bela roseira do jardim da casa ao lado enquanto que pela rua e sobre os carros os gatos mais bonitos de Coimbra estiram-se e numa divina paz de consciência aquecem-se aos raios meigos da manhã nova. Em volta, um mundo de desassossego parece não se dar conta de tanta fortuna, de tanto mérito, de tanta poesia.
Um grito de pavor, um amor verdadeiro falhado, um bilhete arrasador, um constrangimento, um abuso, um sem número de tragédias... Um cortejo de carnaval, um passeio de domingo, um abraço de reencontro, um sorriso amigo no lado oposto, um sem número de glórias... Tanto há na vida! Quanta coisa por fazer, quanto por viver, quanto por atravessar!
Na perseverança de um dia poder me aquecer de manhã como fazem aqueles gatos, continuo sempre a optar pela Travessa da Esperança.

quarta-feira, maio 06, 2009

A redenção pelo amor

Saiu de casa após o jantar sem o casaco, era uma noitinha quente como essas que vamos tendo agora na primavera, o que contribuia para ter o pensamento leve. Nas suas roupas um cheiro forte de alecrim, na pele um frescor de menta, aroma seu que a brisa docemente carregava consigo.
A essa imagem da boa composição de seu aspecto, à doçura de seus gestos e simplicidade das palavras, contrastava o que trazia dentro de si e que não se lia senão num fugaz fixar dos olhos vez por outra. Tentavam ver para além da vista que havia diante de si, tentavam alcançá-la na incorruptível paisagem dos seus sonhos, em que seu grande sorriso de bonança iluminava e aquecia como o próprio sol, o sol de sua vida.
As lembranças desses e doutros gestos assaltavam-no, no descuido de qualquer pensamento inocente era levado a cabo para ouvir a voz a dizer a certeza e o carinho, estava de novo presente para testemunhar a paisagem plena daquela presença, na atmosfera à sua volta o ar novamente vibrava com aquele riso, a mesma curiosa combinação de elementos que orbitava a mulher que como nenhuma outra percorreu os caminhos sinuosos que levavam ao seu coração.
Esperavam-no na tasca, seu copo já estava cheio e os abraços dos amigos ansiosamente à sua espera. Sua vida vinha tornando para caminhos demasiado previsíveis e aquela noite parecia como todas as outras em que negava a si mesmo: estéril e maçante, tudo aquilo a que diligentemente adimplia na vida, todos os seus dedicados esforços de êxito, suas noites longas de trabalho, nada daquilo tinha brilho, nada comunicava-lhe valor. Resignado, aceitava e seguia, sempre seguia em frente, não por gostar do que poderia o futuro trazer-lhe, simplesmente havia bons motivos maus, como o orgulho e a teimosia. Alguma coisa lhe provocara um impulso de revolta, entretanto.
Naquela noite depois de deixar a casa, sem que nenhuma estrela tivesse despencado do céu, sem que tivesse ganhado a lotaria, sem que nada de especial tivesse provocado o resultado, encontrava-se completamente convicto de sua condição: amaria.
Subitamente, seu coração ardeu à intensidade do sonho e lhe soube bem ter a face quente pela emoção e então quis que ardesse até a própria cinza, à grandeza de ser redimido pelo amor que tinha em si, violado e domado, naquela noite, exaltado.
Olhou a lua apaixonadamente e mandou-lhe um beijo com as mãos e disse para si mesmo o nome da mulher que amava e sentiu sobre o seu rosto o aproximar do seu rosto, o toque das suas mãos, a completude do mundo e do sentido de tudo que havia no seu abraço.
À condição do segredo e do destino, continuou resoluto o percurso. Ao chegar à tasca ouviu seu nome ser gritado, em seguida os copos ao alto: soube então que estava para sempre redimido.

terça-feira, abril 21, 2009

O mais profundo desejo

Ai de quem gritar outro nome! Não há, meus amigos, não há desejo nenhum maior do que o de ser livre. Podem tirar do homem os seus bens, o seu conforto e até o futebol aos domingos, mas é sempre demasiado cruel retirar-lhe a capacidade de decidir por si e assim, por ele mesmo, definir o seu destino, a sua fortuna, pelas suas próprias escolhas.
O amor à liberdade tem subido às cabeças e as vidas de milhões de jovens foram sacrificadas nas guerras do século passado (e de tantos séculos antes...) em defesa desse ideal.
Hoje é o dia de Tiradentes, o meu herói. Um homem que de seu, além dos instrumentos de dentista e de umas poucas mudas de roupa, tinha o ideal da liberdade a arder a cada respiração sua. Queria-a para si, mas também a queria para todos os outros e, principalmente para sua pátria. Traído por duas vezes, preso e quando do seu julgamento, quando confrontado com a possibilidade de trocar uma sentença de morte por uma de degredo no caso de negar a sua fé na independência do Brasil e jurar fidelidade à D. Maria I, preferiu sacrificar a própria vida do que negar aquilo que lhe dava mais sentido. Fê-lo honradamente, com a sua dignidade revolucionária que tantos outros contagiou mas que esses não partilharam ao ponto de partilhar com ele o mesmo destino e, por isso mesmo, ele é que é o herói que merece ser lembrado e, mais ainda, reverencidado pelo legado que nos deixou.
Curiosamente, nessa mesma semana comemora-se um outro dia de orgulho para a liberdade do mundo. Há quase 35 anos, jovens oficiais das forças armadas portuguesas, em associação com diferentes forças da sociedade e expressando um desejo uníssono do povo português, resolveram terminar com uma ditadura despótica e envelhecida, uma que privava as mulheres do direito de voto e que tinha lançado a juventude portuguesa ao sacrifício vão de uma guerra injusta por longos 13 anos. O 25 de Abril trouxe liberdade política à Portugal e às antigas colónias, que foram libertas do julgo da metrópole, mas não só isso, trouxe consigo uma corrente morna, embuída de convicto cheiro de cravos, de que era possível ter esperança em uma vida mais feliz e mais digna, em que os destinos que se revelassem, bons ou maus, teriam sido aqueles que foram escolhidos pelas pessoas, em liberdade, e não por qualquer outro que quisesse decidir por elas.
Essa corrente de sentimento ainda circula por esse valente e heróico país. Está nas mentes e nos corações, a impulsionar a todos com a sua força vibrante, a redimir das misérias, a trazer esperança quando das tristezas no seu significado de amor à liberdade e por isso, deve ser celebrado sempre.
Nesse 25 de Abril, mais que nos outros dias todos do ano, lembremo-nos daqueles que viveram sob a repressão e a tirania e sofreram-nas para que hoje pudéssemos escolher por nós mesmos, mas lembremos sobretudo de que o que moveu aqueles revolucionários de 1974, como aqueles que Tiradentes liderou em 1789, foi o mesmo e mais profundo desejo da alma humana que é desejo de ser livre.
Aos exemplos dos nossos heróis, a coragem para levar a cabo as nossas revoluções particulares para nos libertar das opressões que magoam e, por fim, ter coragem para dar efeito ao que nos pede o coração para fazer, sentir e viver.

terça-feira, abril 14, 2009

Não é fácil...

Passem-se dias, horas, meses, anos
Amadureçam as ilusões da vida
Prossiga ela sempre dividida
Entre compensações e desenganos.

(...)

Soneto de Aniversário, Vinicius de Moraes



Após um longuíssimo repouso, retorna a vida ao Colégio da Trindade, em Coimbra. O quarteirão inteiro que o velho edifício ocupa entre a Faculdade de Direito e a Couraça de Lisboa será o endereço do Tribunal Universitário Europeu, agora já em construção, como bem o sabem os passarinhos das árvores próximas e os turistas que espiam a obra a partir do pátio das escolas. Eu a observo da Sala do Mestrado, no Colégio de São Pedro, onde se defende tradicionalmente os relatórios e onde há uma pequena sacada que proporciona uma vista objectiva do velho colégio.
Sempre me chamou a atenção o facto das suas ruinas ali estarem, em meio à opulência do resto da universidade, do que me foi explicado que o dono não quis negociar o imóvel na altura em que o Estado Novo destruiu metade da alta de Coimbra para ampliar a universidade. Assim, desde o final dos anos de 1940 até o início dos anos de 1970, o Colégio da Trindade perseverou sem grandes reformas, tendo por último servido como residência até quando já não mais aguentava a sua decrepta estrutura, enquanto no seu entorno tudo era ampliado, aumentado e melhorado para o crescimento da universidade.
O dia, entretanto, chegou, como acima já foi anunciado. Afinal, o Colégio da Trindade vai ter destino ainda mais nobre que os seus congêneres da primeira infância da academia portuguesa, quando foram dadas as primeiras aulas, há mais de 700 anos.
Era bom se fôssemos como os prédios antigos e a nossa paciência fosse muito mais do que a condição humana nos permite. É pena que na nossa condição seja difícil ver que a redenção sempre nos alcança enquanto nos mantivermos de pé e com alguma dignidade na cara.
Os dias trazem a todos coisas novas, surpresas novas, idades novas. É bom ficar mais velho sem deixar envelhecer o amor, sem torná-lo amargo e desconfiado, sem contrariá-lo, sem desacreditá-lo. É a fé na sua graça, a sua parte mais íntima em nós, que o faz ser sempre belo e potente, como da verdadeira primeira vez.
É como tentam fazer ao Colégio da Trindade: ao invés de deitar todas as ruinas abaixo e construir um prédio novo e moderno, preservam tudo o que podem e das velhas fundações medievais vai se levantar um edifício recomposto em facilidades e propósitos. No fundo, ainda vai guardar os traços mais basilares da sua natureza, a gradação mais profunda da sua verdade, afinal, redimida.

terça-feira, março 31, 2009

A simular a vida com estranhos

Rose

Já faz quase um ano. Naquela altura não se tinha ainda sobre a cabeça o sol brilhante de Portugal, mas sim a espessa camada de nuvens que deixa Londres com seu aspecto soturno e introspectivo. No coração, no entanto, fazia sol. Pareceu bem uma vida de sacrifícios em segredo, no aguardo de uma felicidade que, afinal, não se verificou, ao menos não como fora esperada. Ter o que fazer, algo pelo que esperar e alguém para amar - eis o que os gregos consideravam ser a felicidade, se não acertaram, ao menos circundaram com muito jeito.

O início da primavera em Londres no ano passado foi muito mais uma continuação do inverno do que um primeiro sorriso a preparar o verão. Os dias não eram tão curtos, é verdade, mas perseverava a chuva ocasional e fria, o entardecer com vento, a necessidade das roupas pesadas - nada que eu deteste mais em termos de desconforto que estar de casaco todo o tempo. Ninguém se animava a ter esperanças sobre o verão: o do ano anterior tinha sido tão frustrante, tão molhado e ventoso, que nos olhares havia resignação com o tempo, toda gente a sonhar com casas no sul de Espanha ou no Algarve.

Entre os estudantes estrangeiros era sempre aquele estúpido "simular a vida com estranhos", como a celebração do natal, do ano novo ou do dia dos anos, ou as conversas sobre coisas pessoais, ou as viagens... não havia naquilo nada mais que uma simulação do que deveria ser algo muito mais significativo, profundo, relevante. Simulavam o amor, diziam tolices, mas não era para fazer rir, de facto, depois de alguma reflexão eram mesmo para chorar.

Abrir a caixa de pandora e dizer a eles que aquilo era um bocado sem sentido era o mesmo que dizer uma verdade inconveniente, aquela que toda gente conhece mas que ninguém quer admitir. Faltava-lhes coragem até para isso!

Não que todos os males dos relacionamentos fingidos sejam culpa dos estudantes intercambistas - eles, ao contrário de todos os outros praticantes, estão escusados com honras: só quem já enfrentou o além-mar sabe do que se trata, estar onde não há ninguém em quem confiar, ninguém com quem falar, nada que se conheça, lugar nenhum onde se possa ir. Do que a coragem é ganha quando se enfrenta esse mundo desconhecido e das suas paredes de fumo compor alicerces de uma vida nova, mesmo que provisória e assim tentar adaptar àquilo as coisas que são queridas: os colegas são rapidamente promovidos a amigos e com eles se gasta muitíssimo tempo a fazer turismo pela capital e a planejar festas, as viagens tornam-se marcos da existência, como uma forma de retirar um pouco da dureza da vida nova e ter algo a frente que tem potencial de dar alguma alegria, o curso assume uma função muito mais de entreter e desanuviar do que propriamente de aprender, enquanto outras preocupações tomam forma, nomeadamente, conseguir um trabalho a tempo parcial (o que na altura em que lá vivi fora mais fácil do que nos dias que correm, suponho eu).

De toda a palhaçada que gira em torno desses relacionamentos sociais, ou melhor, para ser mais politicamente correcto, de toda a superficialidade deles, transbordava vez ou outra uma gotinha de poesia, do que sentia o meu corpo todo se aquecer como uma lâmpada incandescente subitamente iluminada e alimentava-me daquilo com tanta gula que podia ser comparado ao faminto que, a estar a morrer a fome é presenteado com um banquete, sem a garantia, entretanto, de que vai voltar a comer.

Foi assim algumas vezes no Cittie of Yorke, o pub medieval que frequentava com meus colegas e que ficava próximo ao nosso college. Esse foi um dos únicos sítios poupados pelo grande fogo de 1666 que destruiu Londres, um acto que prova a infinita sabedoria e bondade de Deus, segundo os frequentadores mais antigos. Foi lá que ouvi Blake - um dos seus frequentadores célebres - ser declamado por um rapaz que segurava um copo de pint vazio, mas que trazia a voz cheia de paixão, foi lá que, entre sorrisos embaraçados, celebrou-se o final dos exames, foi no nosso Cittie que a vida deixou de parecer uma continuação sem sentido e fez-nos lembrar que éramos todos muito mais do que estranhos obrigados a conviver uns com os outros e destinados a uma inevitável separação - por aqueles breves instantes em que nos esquecíamos disso, das ambições e obrigações, fomos seres humanos a dividir um sorriso colectivo de satisfação, como se dividíssimos um mesmo coração venturoso e aberto, como se houvesse felicidade grega para toda gente e toda gente soubesse desses indizíveis segredos e pudesse percebê-los!

A primavera é outra, o país é outro, mas pouca coisa mudou, à excepção que cá em Coimbra não há pubs e muito menos, que Deus me perdoe, o nosso Cittie of Yorke!

terça-feira, março 17, 2009

Minha chávena de chá

À parte da constipação que faz pesar a cabeça e arder os olhos, não há nada que incomode nesse belo dia de sol. Cantam os passarinhos poucos e no Jardim Botânico o cenário paradisíaco da natureza ganha na sua ordem algum maior encanto, já é quase primavera.
Um passar de olhos pelo jornal: uma anaconda que engoliu um cãozinho de estimação na Austrália e ficou mto pesada para poder evadir-se, um golpe de Estado em Madagascar, o desaparecimento das Ilhas Maldivas e o presidente do Brasil a contar vantagens sobre o seu país, com alguma razão de fazê-lo, mas para que dizer se é possível fazer?
Como um corpo adormecido na cama desfeita evade, com mais facilidade que a anaconda do Território do Norte, o pensamento. Desprendido das outras atenções, a arder nas curvas das considerações devido a essa sorte de doença, deságua no velho oceano do afecto e dilui-se num gozo tolo e doce.
Acção. Eis o que realmente é capaz de fazer esse considerar ser expresso aos outros, de nos deixarmos saber, conhecer, de partilharmos. O silêncio, se por um lado priva os outros de se certificarem da nossa estupidez, lado outro oculta o brilho, a poesia, o encanto, esse não-sei-o-quê capaz de fazer dar voltas à cabeça e arrancar os sorrisos de satisfação. Agir, é preciso agir já, nesse belo dia, nessa hora de pasto que seja, nesse minuto de reflexão, nesse segundo ardido na minha garganta.
Já agora fará mais sentido ter uma agenda para os afazeres. Não convém deixar as pequenas tarefas do dia sobreporem-se, o melhor é resolvê-las. Vai-se à ordem do dia, aos estudos, às coisas da casa, à rotina que dá a face da sanidade da vida tantas vezes.
Um belo copo de vinho para acompanhar o almoço, um peixe grelhado com umas batatas boas bem assadinhas, as cebolas e a salsa. Eis por onde passeia o pensamento nesse minuto, de certo modo a desanuviar-se das obrigações, como se assim elas deixassem de existir. É claro que não é assim.
Relembrando uma vez mais a doce "Blackbird", é preciso apanhar nas asas quebradas e aprender a voar e ver que só se esperava por esse momento para levantar-se, mesmo como numa revolução ou então, na mágica cena de Fred Astaire e Ginger Rogers, reconhecer-se nessa condição de dançar com o rosto colado.
Às armas, cidadãos! Mas enquanto não fico curado da constipação, e não é uma solução má, o melhor é encontrar conforto na minha chávena de chá.

sexta-feira, março 06, 2009

Difícil de explicar

Alguns episódios vivem sempre calmamente no imaginário. São paredes dessa casa subconsciente que não têm de fazer sentido e muitas das vezes não fazem.
Uma dessas paredes é o episódio do Capão à Traição, episódio que marcou o fim da guerra pelas minas, entre os paulistas e os portugueses, brasileiros de outras regiões e o povo das minas.
Os paulistas foram derrotados (esses senhores encontraram os primeiros veios e queriam ser os únicos a explorá-los), e nós os vencedores, mas foi uma vitória indigna. Após seguidas derrotas e reduzidos a umas poucas centenas, os paulistas encontravam-se cercados num capão, que nada mais é que uma porção de mata isolada. Após 2 dias de cerco, os paulistas pediram a rendição em troca de um salvo-conducto para fora da região das minas. O comandante emboaba, Bento do Amaral Coutinho, um "carioca alentado, homicida e insolente", chegou a jurar pela santíssima trindade que garantiria o acordo se os paulistas depusessem as armas, mas logo depois que esses cumpriram a sua parte, os emboabas os massacraram covardemente. Depois da guerra, as capitanias foram separadas, do que marca o nascimento de Minas Gerais. Sempre me questionei se valia a pena ganhar assim, perdendo a si mesmo... E talvez por isso o episódio tenha se tornado uma das paredes (das mais intrusivamente visíveis) desse mundo interior.
Alucinações de uma madrugada junto à Ponte de Santa Clara, uma trova escrita numa porta de casa de banho, um copo de whiskey pela metade e a larga generosidade dos bons amigos. Tudo isso também compõe esse mundo que habita dentro, que é inacessível para os outros e também para nós mesmos.
Como se se fosse adentrar num sonho do conhecimento oculto de nós mesmos, em que a grande piscina nos olhos da amada fosse cheia de licor de anis e houvesse naquele banho o desejo ardente de se embriagar e depois de se dissolver, de se deixar ir, incorporar e passar a testemunhar os crimes e os heroísmos que tocam aquele coração, ser parte dele na sua infinita beleza, ser o seu susto de desespero, ser o seu pulsar apaixonado, ser a sua coragem para o sacrifício, ser a sua paz de ser amada e nunca mais ter medo. Ninguém consegue perceber nada disso, é muito difícil de explicar.
Bonitas mesmo são as luzes da disco a piscar ritmadas e o transe geral, resultado da batida, do álcool, da combinação ocasional de outros estimulantes, num só contemplar desses segredos íntimos, indizíveis e desconhecidos, o apreciar desse eu profundo perdido entre tantas camadas das coisas que as pessoas percebem, aceitam e para as quais devotam suas vidas. Naquele piscar das luzes a comunhão geral (e circunstancial) da nossa condição ante o mistério e o magia da existência.
Lado outro, cabe ponderar que é um portal perigoso de se cruzar. Sessões de hipnose têm sido utilizadas por psiquiatras a fim de auxiliar pacientes que sofreram traumas graves a perceberem melhor toda a situação e, assim, serem curados. Essa técnica de indução permite que se acesse esses conteúdos subconscientes, sendo assim percebidos com mais clareza. O mal que se pode causar reside no facto de nem todas essas lembraças ocultas serem felizes, há muitas que foram propositadamente ignoradas pela mente a fim de ser permitida uma vida de maior paz, sem que se fosse eternamente atormentado pela culpa, pela amargura e pelo remorso. Ainda assim acho que faz muito sentido e que representa uma possibilidade muito útil de se saber o que nós não permitimos a nós mesmos.
É preciso confrontar esses desenganos. Olhá-los nos olhos, desafiá-los. Tão duras e penosas que são essas lembranças ocultas, pode ser que nos esmaguem e nos impeçam de viver o presente de uma maneira desprendida do que aconteceu antes.
O que não se deve nunca esquecer, no entanto, é que a verdade é a única força capaz de nos libertar, de nos permitir sermos nós mesmos, de nos dar a genuína paz que nem os truques do subconsciente, nem o medo da vida seriam capazes de dar.

terça-feira, fevereiro 17, 2009

O abrigo

Foi uma viagem de carro como outra qualquer. Saímos logo depois de tomar o pequeno almoço e pelas primeiras horas tivemos o noticiário matinal a nos entrar pelos ouvidos através do rádio para romper o silêncio.
As mãos no volante frio, a agarrar-lhe para as curvas, para lá, para cá, para lado nenhum talvez, apenas a ir... íamos os dois.
Um belo dia de sol, uma vista para não se esquecer, a experiência que talha na personalidade a sua forma e que vai ser evocada instintivamente por toda vida quando tivermos de nos comportar naquele tipo de situações outra vez.
Na volta, a imersão na sensação de gozo, a amizade boa e generosa, o riso fácil e a preciosa voz de se ouvir fizeram todas um outro momento da vida, na altura em que se acha que a bondade pode ser repartida só por teres tido a sorte (que cada vez mais parece maior) de ter tido com boa gente na tua vida até aquele momento.
Chegamos e separamo-nos, mas não era totalmente verdade. Houve participações recíprocas nos pensamentos alheios. Construiu-se uma boa via de "dar de si" que nos levava a lugares fantásticos, uma via de mão dupla, é bom fazer constar.
Foi aquela viagem, muito provavelmente, a constatação do abrigo que existia em cada um.
Impossível não associar com a emblemática conferência do doutor Campolina na Semana de Filosofia da minha universidade, quando, falando sobre aspectos da ética, ensinou que na primitiva origem grega, "ethos" significa refúgio, abrigo, ou lugar onde se está bem, acostumado. Para mim a ética, desde então, tomou uma feição mais íntima: onde encontramos a nós mesmos na hora de decidir, sem mais mentiras e fingimentos.
Qual um feroz animal em noite de tempestade que encontra um abrigo, encontrou-se paz naquele estado de cumplicidade enamorada. Como se fosse comum aquele tipo de identificação, nem espanto havia e por isso mesmo é que a alegria era sempre original, simples e viva.
Olho para a satisfação de viver com os olhos dela, não são propriamente meus esses olhos. Abraçam quem eu amo uns braços que em muito são os dela e se gargalha também num ritmo que é o da minha amiga. Só quem nos ama verdadeiramente é capaz de nos fazer melhores e nos dar o sentido, a excelência e a beleza que todo o resto das pessoas pode admirar e querer para si, mas que não lhes pertence.
Esse abrigo que é tão confortável, que sabe tão bem desfrutar, tão rico e luminoso, é feito por ela, além de todos os outros que primeiramente deram amor, ao invés de quererem ser amados. Esse abrigo é o que eu me tornei.

sábado, fevereiro 07, 2009

Vamos, vamos, minha gente!

Coimbra passa as noites em claro... não mais nos bares e nas ruas, como na época da festa das latas, mas na solidão dos quartos, sobre as secretárias e os livros, a trabalhar no solitário processo da assimilação dos conhecimentos que, somado ao constante medo do chumbo, marca essa altura do ano para os estudantes. A época de exames está quase no fim, é verdade, mas não será esquecida enquanto perdurarem as obrigações acima das vocações.
Este é o ambiente de opressão geral que é compartilhado na cidade académica, nada capaz de provocar uma onda de suicídios, mas é claro que incomoda, deixando na boca um gosto amargo logo que o pensamento vem à cabeça.
Somado a tudo isso, ainda há as obrigações de cuidar da alimentação, dos exercícios físicos, da casa... Do que não há tempo para nada, nem para quem mais o mereceria, o que realmente faz apertar o coração...
Lado outro, também há vantagens, como não? A pesquisa e a investigação progridem a bom passo: recolha bibliográfica, marcos teóricos, hipóteses, variantes, estratégias de acção e resultados possíveis ocupam as mentes dos estudantes do mestrado em direito, e também desse que vos escreve, meus leitores, no entanto há faíscas de boa fortuna nas cinzas do inverno e para além das opressões e tirania, há ventura, já que nossos conhecimentos nos tornam pessoas mais úteis e preparadas. Um pensamento preenche a imensidão, como um dia disse Blake.
Foi inevitável, nessas circunstâncias, recordar uma das cenas mais doces do cinema de animação: a "the work song" do filme Cinderella, dos estúdios Disney, produção de 1950. A versão brasileira é especialmente bela, pela maneira como a canção foi traduzida, pelas palavras escolhidas: assentam ao ouvido como o amor verdadeiro ao peito.
Nessa cena, os ratinhos e os passarinhos, os únicos amigos que a solitária e sobrecarregada de tarefas da Cinderella tinha, decidem ajudá-la a ir ao baile, preparando o seu vestido, já que ela não teria tempo de fazê-lo por si mesma, devido às suas obrigações (injustamente impostas, diga-se de passagem).
Para Março teremos a IX Semana Cultural da Universidade de Coimbra, maioritariamente encabeçada pela Faculdade de Direito. Digamos que será nossa primavera, nosso grande baile, uma vez que os eventos são bastante interessantes e vão envolver toda a comunidade académica, sempre com um conteúdo interactivo.
Um primeiro renascimento para os convívios e as serenatas, as preparações para a Queima e os fados do Diligência, o estar com quem se quer estar... mas sem descuidar da dissertação!
Entre o frio e a neblina, a chuva constante e os livros pesados para cima e para baixo nas ladeiras antigas, transparece ainda mais o bom propósito do esforço e a liberdade de se ter escolhido esse caminho que, mesmo que custoso, é nosso.
Força, Cinderella.

domingo, janeiro 25, 2009

Antiga, mui nobre, sempre leal e invicta

Ponte Dom Luiz I vista das escadas do café Mira Douro

Não bastou o centenário de Manuel de Oliveira, nem os convites dos amigos, teve mesmo de ser por obrigação que acabei por me ver em meio à doçura tão própria das ruas da cidade do Porto.

Hoje o Porto é a segunda maior cidade do país, com uma economia mais pujante que a das outras regiões em diversos sectores, especialmente os de tecnologia. Para além disso, persevera o seu talento natural para a vinicultura, na produção do mundialmente famoso e tão bom vinho do Porto.

Suas ruas, largos, avenidas, jardins, edifícios e igrejas parecem afinal um só, numa unidade que é difícil de definir mas que é plena desse genuíno conceito que informa o que é verdadeiramente português.

A cidade recebeu-me com seu habitual sorriso, mesmo em meio à chuva e ao frio que o inverno lhe impele, deixando às sombras umas feições tão formosas e cheias de confiança, que refletem com perfeição o próprio povo portuense.

Trata-se de uma satisfação que me acompanha da época da segunda infância, quando lia sobre a fantástica história do cerco do Porto no século XIX, numa guerra em que estava em jogo a liberdade e a justiça. Nesse conflito em que os números pendiam largamente para o lado de um poder opressor e absolutista, em muito deve-se à cidade do Porto o triunfo da verdade e da soberania do povo português.

Ao percorrer as ruas do Porto antigo, a descer até à Ribeira para junto do rio Douro, imagino os combates e a emoção, mas sobretudo a privação e os sacrifícios pelos quais o povo do Porto teve de atravessar e resistir, como a fome, a morte dos amigos, vizinhos e parentes... Uma luta que não lhes rendeu bens ou títulos, mas que, motivada pelos mais altos ideais, significou um legado de honra e bravura imperecíveis.

O líder dos liberais, vencedor do conflito, era um homem que, mesmo não tendo nascido no Porto (nasceu mesmo em Lisboa), tinha um coração portuense. Tanto assim que o legou à cidade do Porto, encontrando-se até hoje na Igreja da Lapa como uma relíquea o coração do Imperador Dom Pedro I do Brasil ou El-Rei Dom Pedro IV de Portugal.

Não tenho intenção de liderar revolução nenhuma, toda gente merece a paz. Mas assim como aqueles senhores que lutaram do lado liberal preferiam a morte do que uma vida de sujeição ao mal e à tirania, também eu não teria receio de defender o ideal, o mais íntimo comprometimento com nós mesmos.

Em segredo, a olhar a ponte Dom Luíz I na sexta-feira passada, desejei que mais e mais acasos acontecessem a me trazer ao Porto, como é bom lá estar, como me é natural tudo aquilo. Se eu não nasci no Porto, pelo menos sei com toda certeza a que terra pertence o meu coração.