quinta-feira, novembro 19, 2009

A nossa casa


Por vezes lembro-me daquela singela crónica de Vinicius de Moraes para o seu filho pequenino, a sofrer com febre. Ficou talhada à memória a imagem do pai impotente, vergado sob o berço, a rezar de aflição, com o coração a arder de paixão tanto quanto a carne do bebé. Assim é o amor.

É curioso como o nosso mundo vive a explorar sempre mais a ideia do amor, da sua transcendência, do seu conteúdo de caridade, da sua palavra de carinho, do seu colo morno, da sua natureza de ser lar, milhares de adereços, todo um magnífico conjunto de esforços a orbitar esse astro, e mesmo assim assombra a quantidade de gente que passa a vida sem tocar-lhe, sem ter nada dele, mais importante (e talvez por essa razão): sem se dar conta que está em tudo e que se manifesta em tudo, basta querer dar de si, basta querer ir para além de si que o amor virá ao seu encontro como o sorriso que nos acende a alma.

Vivemos rodeados pela ideia do amor, mas muitos há que por mais que queiram sobra-lhes alcançar apenas uma superfície fina e fria. Que triste paradoxo. É como viver cercado de ouro, diamantes e jóias caras numa ilha deserta. É a impotência fundamental de viver.


Amo-te como amigo e como amante

Numa sempre diversa realidade.

Amo-te afim, de um calmo amor prestante

E te amo além, presente na saudade.


Amo-te, enfim, com grande liberdade

Dentro da eternidade e a cada instante.


Eis os seis versos do soneto do amor total que, no meu modo de ver, buscam mais precisamente a essência desse "abandono desordenado", essa caridade infinita que é o amor.

Em honra a essa bela ideia, essa faceta do multi-explorado sentimento amoroso, umas linhas a mais para contornar seu longo, árdo e dourado caminho.

O amor vive, tal como nós, as plantas e os animais, e da mesma forma se alimenta, cresce, reproduz-se. É um ser abstrado com necessidades concretas. Uma vez instalado legitimamente, uma vez confrontado com o seu dono, nunca mais desiste. Persiste. Eis a face mais honrada do amor. Continua. Levanta-se às injustiças, às porcarias da vida, revolta-se, luta. É sublime, mas não por um desejo de reconhecimento ou fortuna, impulsos que podem guiar-nos na vida profissional, antes o-é por instinto de que o outro faz parte desse que ama. Há aqui uma união de facto, no sentido mais poético do termo.

Disso vê-se facilmente que o sofrimento de um é o do outro, e a alegria de um é a do outro também. E aqui um dado curioso, nada mais é preciso para que isso se passe que a mera função da pessoa amada existir. Não se exige compromissos assinados em cartório, anéis, fotografias, telefonemas, cartas... Basta existir, pois assim no peito existirá também, qual a chama da vida que em nós arde por todos os instantes, esse amor que quer bem, esse amor que é a miséria repartida e que faz de ambos menos pobres, esse grande elemento de conforto a todas as mazelas que se nos impõe a vida.

Antes do mundo das maravilhas ou da felicidade, o mundo da fé, da caridade, do encantamento nessa doce pessoa que encontramos pelo caminho e que nos leva adiante a cada dia na simples condição de existir. Eis o amor que há no mundo.