quinta-feira, junho 09, 2016

A alvorada da Nova República

Daqui de longe, na nossa Coimbra antiga, eu tento acompanhar o que se vem passando no cenário político brasileiro, com todas as inevitáveis implicações que estes factos acarretam na economia e mesmo na cultura nacionais.
A primeira impressão (sim, impressão, pois tendo como fonte a comunicação social, mesmo que seja imparcial, é sempre um contato em segunda ou terceira mão com a realidade) que tenho é que nada disso é mau, nem triste, nem é sinal de ruína da nossa ordem constitucional.
É doloroso, isso é claro, mas não significa que não deva ser visto com o grande valor simbólico que faz levantar desde tantas convulsões.
As demais impressões são, portanto, de uma ponderação no significado desses eventos, e não deles em si mesmos.
O impedimento da Presidente Dilma Rousseff, que ainda será decidido pelo Senado Federal, é um sinal de que o presidente da república já não tem aquela majestade de que gozavam os presidentes da República do café-com-leite, ou das didaturas do Estado Novo ou Militar. O impedimento do Presidente Collor de Melo já tinha deixado isso claro, embora não tenha sido tão enfático quanto agora porque Collor não dispunha de qualquer base de apoio política.
Obviamente que não é positivo afastar uma presidente eleita pelo voto direto, no entanto, dadas as circunstâncias em que está a ser processada, os crimes de que é acusada parecem estar diretamente ligados à péssima situação económica do Brasil nesse momento, o que todos os brasileiros conseguem sentir na pele.
À volta da questão principal, estão questões acessórias, mas que são da maior importância. Um ex-presidente da república que é feito Ministro de Estado por razões várias, mas não propriamente coincidentes com o interesse público, um Ministro de Estado da Justiça que faz insinuações de ameaça à Polícia Federal, um Advogado Geral da União que, deixando de lado a sua elegância pessoal, abraça uma defesa por ideologia político-partidária, instrumentalizando um órgão federal pensado para defender a União Federal, e não propriamente a Presidente da República.
A movimentar todo esse panorama imensamente sensível, está a operação Laja-Jato da Polícia Federal de Curitiba. Despoletada desde uma investigação sobre corrupção na Petrobrás, a força-tarefa da operação tem utilizado do novo mecanismo da delação premiada para obter espantosas evidências probatórias contra figuras de primeira linha da administração da pretolífera estatal e mesmo dos Governos Federais desde 2003.
A perda de mandato do Senador Delcídio do Amaral por ter tentado subornar um dos delatores, aparentemente em cumprimento de orientações do Partido dos Trabalhadores de que era filiado, foi apenas uma das consequências propriamente fantásticos desta operação.
Há dois dias, no entanto, uma das mais poderosas cúpulas políticas do Brasil foi atingida de frente pelo pedido de prisão pelo Procurador Geral da República Rodrigo Janot ao STF contra o ex-presidente José Sarney, o Presidente do Senado Renan Calheiros, o Presidente Interino do PMDB Senador Romero Jucá, fundamentado em evidências de que estariam a conspirar para enfraquecer e esvaziar a operação Lava-Jato.
Outros eventos que estão também vinculados a esse momento devem ser lembrados: a iniciativa do Promotor Dallagnol, coordenador da força-tarefa do Ministério Público no âmbito da operação Lava-Jato, em entregar ao Congresso Nacional um pedido de alteração de lei contra a corrupção desde a iniciativa popular também indica o mesmo caminho.
Outro símbolo que não se deve perder (este de enorme estatuto moral): as faixas verde-amarelas amarradas às árvores em frente à Polícia Federal em Curitiba, os laços verde-amarelos com que foram reunidas as mais de 1,5 milhões de assinaturas em favor do projeto de lei com as 10 medidas anti-corrupção.
Tudo isso é a alvorada da Nova República que foi anunciada por Tancredo Neves.
A nossa ordem constitucional não está a cambalear, ela está a afirmar-se. Não há ruína político-institucional no Brasil, o que estamos a ver é uma interpolação de regimes para além da constituição escrita, é a constituição a impor-se às velhas práticas da conveniência e da corrupção que se achavam imunes aos princípios. É em boa medida uma interpolação de gerações com mentalidades diferentes.
Filhos da Nova República, Dallagnol e seus pares não cresceram propriamente numa ditadura. Foram educados sob os princípios democráticos da presente ordem constitucional que tenho certeza que irão defender a qualquer custo.
De um lado, a geração e a mentalidade que está a ser vencida, em que um Ministro de Estado da Justiça, oriundo do Ministério Público, ameaça a Polícia Federal, de outro a geração que condena essa mesma mentalidade e quer fazer valer a Constituição Cidadã, propondo leis anti-corrupção de iniciativa popular e implicando criminalmente uma das mais poderosas cúpulas políticas do país, que pensava que os princípios constitucionais não se aplicavam a eles.

terça-feira, maio 17, 2016

O jardineiro dos sonhos

Há quase dez anos eu disse adeus a tudo e a todos para vir viver o sonho. "Não chorem por mim, não façam da minha ausência uma ponderação para a tristeza", pedi-lhes em vão.
Recebia-me a capital do Reino Unido naqueles meados de Agosto de 2006 com a costumeira chuva de verão inglesa.
É crucial relembrar um episódio daqueles primeiros dias. Trata-se da circunstância em que estupidamente perdi o meu guarda-chuvas Ferreti, um exemplar objeto de uso da fidalguia de Belo Horizonte. Num desses dias de chuva, após entrar num autocarro inglês de dois pisos, vermelho, como é óbvio, resolvi pousar o gancho do guarda-chuvas na barra de apoio em frente ao meu assento. Ao chegar ao ponto de desembarque, pelo susto da novidade de tudo, não deu outra: esqueci da vida e lá deixei o Ferreti: fui-me embora fazer-me inglês.
Em que pese esse simbólico abandono de Minas, no entanto, a Inglaterra tratou a minha inocência com candura e paciência. Fui muito bem recebido. Os ingleses gostam de trabalho e comprometimento, e nos estudos que me propus a fazer, e também nos meus part-times, da mesma forma, tentei ser sempre diligente, e assim também já não era um estrangeiro a mais, mas alguém que comandava algum respeito e, ao ser dada a liberdade, alguma confiança. Com a ajuda de Deus, eu alcancei todos os objetivos que ambicionara ao chegar à Inglaterra, mas não venci em tudo.
Há quase dez anos, quando troquei completamente de vida para ir experimentar algo novo, eu pensava só em cumprir o sonho. Que bom é ter coragem de se viver o próprio sonho! Olho para trás e vejo o quanto já fiz na minha vida e consigo encher toda a caverna do peito de orgulho. Sem sobrar espaço para arrependimento nenhum, eu, e apenas eu, para além do nosso Senhor, no entanto, sei o que custou. Eu também perdi.
Penitenciei-me imensas vezes, e ainda hoje o faço, por todo o sofrimento que causei a vós, família e amigos brasileiros, e a tantos outros que, sem eu próprio devotar grande amizade, sempre tiveram por mim grande carinho e consideração, e amargaram também um pouco a minha ausência.
Aos amigos que ficaram, à minha linda família, digo-vos com grande susto: custa voltar e vê-los sempre mais velhos! É como se os nossos entes mais chegados envelhecessem de repente 10 anos, é brutal para a impressão visual desacostumada. Mas deixando de lado as brincadeiras, amo-vos, minha gente linda. Sóis o que de melhor a vida me deu até 10 anos atrás e isso não é pouco, é mesmo a maior parte da minha vida!
Eu não morri, no entanto. Vivo aqui no nosso Portugal dos antepassados, como eu insisto em chamá-lo, a fazer o meu percurso de uma maneira nova, uma vida nova. Não é uma vida em substituição à vida antiga, como se desta eu quisera livrar-me. Não pensai assim, pois não é verdade... É uma vida nova que responde a um chamado profundo que sempre houve dentro de mim, que pedia para avançar para mais além. Eu precisava de descobrir um mundo maior do que aquele que vós me havéis dado e do qual eu sou muito grato.
Agora eu sou capaz de olhar para trás e reconher que precisava de conhecer um mundo novo, um lugar em que os limites da minha própria origem fossem levantados, e onde eu pudesse ver o que valia para além do que já sabia, para além do que estava já à minha espera.
Eu paguei o preço: não pensem que o orgulho significa alegria. O orgulho é justamente a satisfação de ter vencido o sofrimento, a incerteza, a saudade e a angústia por acreditar em algo maior e mais valoroso que tudo isso. Foi o que eu sempre tentei fazer: pôr as situações contingentes em perspectiva e não permitir que alterassem as minhas convicções íntimas sobre mim mesmo e o meu destino. O pesar pelos retrocessos nunca foi maior que a vontade de superar essas dificuldades. A Inglaterra soube reconhecer esta atitute e cá no nosso lindo Portugal também a mesma postura tem sido, vez após vez, ano após ano, saudada com respeito e elevada pelos meus pares, pelos meus amigos, e até pelos meus conhecidos.
Não quero despedidas, porque até onde me disseram, a ponte do retorno não cai de velha ao se completar dez anos de exílio. Quero, isso sim, que os que ficaram para trás tragam-me na lembrança com o mesmo carinho que tenho por eles, e que eu possa estar presente na vida deles de formas diferentes enquanto a presença física não é possível.
O meu testemunho, talvez convenha esclarecer, não é um grito à emigração. O nosso país basta e provém a todos e mesmo aos estrangeiros, todos sabemos bem. Não foi por ser preciso que eu parti... No entanto, o meu apelo poderia ser o de ter coragem para viver em liberdade. O que mais quero, ó meus queridos amigos, é que vivéis as vossas vidas sem medo, e não deixéis para o amanhã indefinido a crucial importância de viver o sonho e trazê-lo, às custas que forem, ao sangue que se pedir de vós, à realidade.
O meu mantra nesses dez anos não foi o impetuoso "não te permitas fracassar", mas sim o prudente "não deixa que cresçam ervas daninhas no campo dos teus sonhos".
E por isso mesmo, caros amigos leitores, que ao cabo de quase dez anos, e se calhar para todo o resto da vida, assumi mais essa profissão de fé: ser um jardineiro de sonhos. Sóis todos bem vindos a juntarem-se à minha guilda.