quinta-feira, dezembro 28, 2006

Um mar sem termo

Vinicius escreveu o "soneto do amor como um rio" em 1959, em Montevideo. Na época, o poeta servia como 2º Secretário da Embaixada do Brasil no Uruguai e estava casado com sua 2ª esposa, Maria Lúcia Proença.
Ao contrário de muitos poemas de amor, Vinicius gostava muito desse, a ponto de incluí-lo na seleção de sua Antologia Poética de 1967, a primeira delas.
Eu também gosto muito do poema, que faz um jogo de imagens entre o amor e o fluxo de um rio, enquanto desliza macio, noturno e sem termo. Precisamente, um sentimento a fluir de um para o outro, mas que se sublima nessa travessia e não no que cada um recebe de amor do outro... e como um rio, embora tenha águas diferentes, é sempre o mesmo rio.
É bonito também porque faz lembrar outros poemas com convições semelhantes, mas de outras épocas, como o "soneto do maior amor", composto em Oxford, em 1938, quase 20 anos antes, quando estava preocupado em estudar literatura e sentir saudades de Beatriz de Mello, a Tati, com quem se casaria por procuração mais tarde.
O terceto mais pessoal e mais delicado que o poeta escreveu é o primeiro deste soneto: "Louco amor meu, que quando toca, fere/ E quando fere vibra, mas prefere / Ferir a fenecer – e vive a esmo".
A decisão firme sobre os sentimentos não é só pela paixão, é por se tratar de uma fé, algo que não se abre mão com sorrisos... algo caro demais.
O "soneto de fidelidade", escrito na mesma época, mas já depois do encontro com Tati, também serve para afirmar as convicções deste mesmo ideal, como toda uma certidão do que se trata amar e venerar o amor: "E em seu louvor hei de espalhar meu canto/ E rir meu riso e derramar meu pranto/ Ao seu pesar ou seu contentamento" e este esforço porque afinal, poderá dizer do amor que teve que foi mais intenso e mais alto que tudo, que tudo valeu e tudo venceu, pois incorporava a própria fé na vida, seu sentido e beleza maiores.
Entre o "soneto do amor como um rio" e estes sonetos do maior amor e de fidelidade, quase 20 anos e um mesmo, irresoluto coração, à parte de tanta coisa que poderia ter mudado num homem nesse tempo.
O poeta acreditava nessa verdade, na de que não havia outra escolha possível que não a de viver sinceramente e intensamente, passou a vida perseguindo o ápice do sentimento, a crista dourada de uma paixão sem termo, infelizmente sem um sucesso matemático, digamos, mas evidentemente pleno de sentido na vida que teve, tendo amado muito e tendo sido muitíssimo amado.
Contra a verdade de que tudo que se ama morre, há que vencer a fé de que não morre nunca o que nos faz vivos, que acaba por ser nossas próprias convicções.
Eis a árdua missão do poeta, lembrar sempre ao seu leitor de se orgulhar, de defender e mais que tudo de acreditar nos próprios sentimentos de amor além de todos os quinhões ruins do mundo.

segunda-feira, dezembro 04, 2006

Num bar com Rodrigo Amarante e Jack Black

Acho o Rodrigo Amarante muito parecido com o ator americano Jack Black! E a semelhanca nao se restringe aos olhos muito separados no rosto, ou das expressoes de doido que os dois gostam de fazer... fisicamente semelhantes, acho ambos muito honestos com si mesmos.
O Rodrigo tocando e cantando sentimental lembra Jack Black no 'O amor e' cego', o Amarante de sentimental e' o Jack Black em 'King Kong', partindo pra ultramar no seu 'Venture', delirando de paixao, e como nao ver o amor do Rodrigo no professor encarnado pelo ator americando em 'Escola de Rock'?
Gosto sobretudo da maneira de olhar deles. Do fundo do coracao que juntava com prazer os dois numa mesa de bar pra tomar uma cerveja e provocar aquelas caras de estranheza com o mundo, alguns casos de fas neuroticas, vestidos rasgados, serpentinas e tortas de maca... isso para as primeiras horas, porque nas ultimas, e' possivel que sobrassem muitos sorrisos dos que conhecem bem o fundo das garrafas que ganham os olhares que foram pras namoradas, as partidas de buraco que fazem a noite com o copo de whisky parecer um servico sem a responsabilidade com o resultado, o amor transcendente que perdoa e compreende, dificil de achar como o e' a complacencia do credor que (por alguma intervencao divina) da' credito a quem tem um sonho mas nao tem mais muita coisa para garantir o emprestimo.
Com aquela maneira maluca de olhar, nao e' possivel que os dois nao comunguem da carencia infinita de amor que os liga, a tantos outros que nao tiveram medo de parecer tolos e demonstraram os proprios sentimentos com confianca e um orgulho meritorio. Talvez assim a arte possa fazer por merecer o nome, quando e' executada com o coracao aberto, sem maneirismos nem fotos para publicidade, so' a intencao de demonstrar o belo por alguma via... a musica, o cinema e tambem a poesia, pobrezinha! Por que nao?! Afinal ela esta' em tudo e nao e' vista, como os dois artistas em questao sabem bem!
E' de fazer ranger os dentes as imagens poeticas do Amarante no ultimo disco dos Los Hermanos, e' dificil entender como alguem sobrevive aquelas coisas pra escrever e gravar e depois dizer que fez tudo em um mes porque era o caso de se ter um disco novo. Acho dificil composicoes como 'Os passaros' e 'Condicional' serem esquecidas.
E' de enternecer o coracao a maneira simples do Jack Black fazer rir, transportando para esse cinema pobre de talento e de inventividade um frescor de inteligencia nos gestos, nos sorrisos, num deboche algo que nunca ofensivo mas sempre muito claro e como nao torcer para azarrao, afinal, o sr. Black e' um gordinho que posa de gala nos filmes! E' o anti-heroi americano do padrao de beleza e mesmo inteligencia, e ainda assim e' amado...
No ultimo gole, um abraco camarada e a satisfacao de ter partilhado as primeiras horas de um novo dia, dado enfim olhares sedutores as estrelas matutinas, em companhia de dois amigos que eu nunca encontrei, mas que sao honestos com si mesmos e magnetizam a vida com um paixao incrivel: o suficiente para terem o meu respeito.
'A saude dos dois!

quarta-feira, novembro 29, 2006

Dos abismos do infinito

Pudera eu novamente olhar nos olhos que me deram amor verdadeiro e retribuir-lhes igual ternura e sinceridade. O instante passou. Seguiu-se um novo dia. Minha alma e o meu corpo amanheceram diferentes, mas eu guardei na lembranca o remorso de nao ter sido capaz de atingir-lhes em igual proporcao... ferira quem me dera a mao!
Num reverso das fortunas, amei muito em vao! Acreditando dar em paga o que antes tinha sido ingrato em reconhecer, elevei demais pequenas figuras... que tortuosa aventura querer acreditar em quem nos mente!
Sei que nunca segui do mesmo jeito. Nao somos nunca os mesmos... Ca' no peito um coracao reservado e tantas vezes rigido e cruel amolece com a singeleza que escapa das coisas... ainda amo a natureza e a humildade, a gentileza e a simplicidade das coisas, alem e' claro de umas pessoinhas lindas desse mundo, que gostam de mel de abelha, que me preparam frango com quiabo, que me viram dar-lhes raminhos de samambaia pretendendo que fossem flores!
Quisera eu poder ditar os valores do mundo! Para mim vale o amor... e o resto que lhe tome a trilha! Mas temos as contas e os impostos, os automoveis e a posicao social... temos tanta coisa que nos garante reconhecimento, felicidade... que o amor sobra a possibilidade de se encaixar nisso tudo, ou nao! Mas subjugar a fe' e' uma coisa arriscada demais e eu nao vou por esse caminho.
Tenho um carinho incondicional pela simplicidade dos gestos... deixar-se deitar de lado para ver TV, com a almofada embaixo da cabeca e a frente a expressao de um rostinho algo curioso e a esperar, numa discricao tao grande quanto a minha, mas muito mais simples que os labirintos caprichosos do meu pensamento. Amiga, incondicional melhor amiga, como o teu nome se levanta covardemente torturante nesses dias! Como me e' sofrida a lembranca do seu vulto a ir-se sempre para o Instituto de Ciencias Biologicas... e o carro dos teus pais dirigido pela tua mae a rumar para a saida sul do campus e eu a mirar anonimamente a cena toda, de longe. Tarde miseravel.
Os olhinhos da namorada, na tarde em que me surpreenderam, plenos de amor, pareceram bonitinhos, simplesmente, aquele olhar que tinha ganhado... Deus do ceu, se eu pudesse entender que o resto da vida era a busca sedenta daqueles olhos, a carencia perene de lhes dar de volta um coracao valoroso... valeria a morte naquele instante, porque nada pode ter maior valor no mundo, nada pode ser tao alto ou tao bonito, quanto olhar em paz e cumplicidade, na serenidade de se saber amado, quem se ama. E do contrario, nada mais tolo que acha-lo bonitinho, simplesmente.

terça-feira, outubro 24, 2006

Food for thought

Something beyond a thick fog and the Kensal Green tube station just made this morning interesting: a 10ton lorry, full of bricks, just came very fast down street from nowhere to prove I shouldn't victimize life so soon.
From the word go, or better, from the word "don't die now, man!", I turned down the radio, shutting up the amuzed BBC 4 Good Morning, the main reason for I didn't notice the lorry. Waiting for the bus during 5 minutes was time enough to consider how fragile life is and how much time we waste doing duties usually nonsense, but always practical for living in our way.
People normaly avoid talking about that and it's very difficult to have a nice and healthy debate and it's because it's easier just consider it's all right people dying of starvation, or children without future because the parents don't care about them, or rapes and crimes... daly lies and flatering smiles... most of the people think it is just on the newspapers and it's a pleasure to continue with an empty life.
It is a crime forgetting the one's life for convinience and, maybe worse than that, is bring other people inside the one's vicious circle of mediocrity with a fancy speech, carefully planned to be taken as possible and atractive.
Like in a game, there are always a target to reach and someone to fight against, competing for the glory of recognition of the talent. In the end, we want to be loved, but none want to beg for love, except who loves back deeply, but these people don't play, they live.
Unfortunatelly, life is not so easy as a game. Deceiving and telling lies seems to be simple, but nothing is more effective to who intend an unsteady life than adopting this behavior.
At the moment you understand life if very, very short and there's no time to waste with this depressing and childish mentality, you finaly will be able to understand people and respect their feelings.
Maybe if the conscient people organize protest in Trafalgar Square, with placards of "Out with the fear of think and feel!", and some naked dwarfs to attract the media, we could have some hope, or at least some laughs. So, let me pretend and laugh! It's all an endless comedy but always with the same old disgusting joke.
After all, it's a question of to be awake when the lorries are coming down the street.

quarta-feira, outubro 18, 2006

Gazing into nowhere

The streets of Soho and Picadilly are always crowed at the afternoons and nights, specially in the weekends. People from almost every part of the globe mixed in a struggling walking block smile excited around the lights of Piccadilly Circus.
There was I at near Dean Street when I saw a teenager walking dow Shaftsbury Avenue hugged with an older women, who was probably her mother; just behind them a mature man and a kid, maybe the rest of the family. Like all the turists in that Saturday afternoon, they were taking a walk for that amazing area, but surprisingly I noticed an expression in the eyes of that girl: far from that noised place, she gazed into nowhere. Usually we can find among many crazy people the same way of looking at the horizon... so, it was not just about gazing, it was about gazing with an absolute calm suffering.
After she passed by me, I took that image into my thoughts trying to get a logical meaning for that sad eyes, so I remembered sometimes I gaze into my window thinking about what is the sense of nonsense lives and often is easy to became a little depressed.
Even a beautiful Saturday afternoon, at an exciting place, is not good enough to take my deep thoughts away, and being blind to other things is an innocent strategy to see the answers we strive to find, many times, unusefully.

sexta-feira, setembro 22, 2006

Toiros e furcados

Em muitos paises as touradas sao consideradas como crimes contra os animais, pelo sofrimento a que os touros sao submetidos, em algumas situacoes sendo mortos na arena. Em Espanha ainda se permite esse desfecho, mas em Portugal eles levam o animal para o estabulo da arena e la' o sacrificam, enfim, ja' acabou o espetaculo.
A parte das touradas em que os cavaleiros espetam-lhe as costas, ou os toureiros o fazem de tolo com o manto vermelho ou rosado, nao e' a mais emocionante... bem, quando o toiro enfim tem a sorte de apanhar o toureiro ou o cavaleiro espeta numa ma' hora e leva a investida, bem, dai' fica mais divertido. Quando nao, e' sempre o imperio da inteligencia contra a brutalidade e a furia, da mesma maneira que na vida.
Da arquibancada da arena ve-se um touro, ou toiro, como preferirem, com farpas espetadas as costas por cavaleiros que repeliram seu avanco e fugiram. O pelo preto vai manchado de vermelho de seu sangue a escorrer da cacunda ferida, um pavao macabro feito a uma suposta valentia de enfrentar um animal enfurecido, mas que nesse estagio, ja' esta' muito fragil em sua furia, mas sem desacredita-la, pois inocente da morte certa.
Enfileiram-se a sua frente cerca de 10 homenzinhos que tem a responsabilidade de agarrar o bicho a unha, os furcados. O primeiro deles leva o maior impacto, geralmente e' gravemente ferido, com consequencias imprevisiveis... os outros lancam-se por cima, quando a besta ja' esta' a frear.
O primeiro furcado deve convocar o toiro a avancar, chamando-o com uma pose tipica, com as maozinhas 'a cintura o pe' direito 'a frente, numa marcha de encontro a um destino que ele nao tem medo de descobrir qual sera'. Por vezes, leva uma cabecada tao forte que seu corpo voa longe... e vem os toureiros para distrair o toiro... mas logo enfileram-se de novo, para garantir que o animal nao vai escapar 'a morte. Ele bate forte, mas e' fatalmente dominado. Os furcados cumprem a missao.
Depois disso, vem outras bois para compor com o toiro um rebanho que vai todo para dentro, e' uma maneira de conduzi-lo sem mais delongas ou acidentes.
E' facil dizer que touradas sao crueis e tudo mais... mas sao uteis para demonstrar a propria dinamica da vida, esse sim o proposito maior do esporte. O touro avanca, porque obedece 'a sua natureza, e o cavaleiro fere-lhe a cacunda para mostrar-lhe quem e' mais poderoso, tambem a obedecer a sua natureza. Um so' e' mais inteligente que o outro, por isso o domina e, literalmente, mata. A paixao que os envolve e' parecida, embora num seja cega e na outra direcionada...
Ainda aqui fico com os toiros, parece-me mais honesto morrer pelo que se e' do que viver para enganar.

quinta-feira, agosto 31, 2006

Deixa o verao pra mais tarde

Comprei um vinho italiano ontem que trazia no rotulo uma mulher nua, com formas muito redondas e que me fez lembrar aquelas pinturas renascentistas que quando vemos da primeira vez achamos feias, mas que depois mostram-se cheias de sentido de beleza! O vinho em si nao era bom, mas o rotulo... valeu a garrafa!
A beleza mora nas coisas bizarras, num rotulo de vinho barato, num sorriso desinteressado de um estranho, na manha subitamente ensolarada, na lembranca cheia de paciencia das pessoas que amamos e que nos amam, verdadeiramente.
"Ouvir na madrugada passos que se perdem sem memoria", cativar o proprio coracao com gentilezas habituais dos anonimos, admirar um passaro e uma torre de igreja, na ludica pretensao de o tempo pode mesmo passar mais rapido e enfim toda essa beleza possa servir para desmagnetizar a ansiedade de nao querer esperar.
Nesse meio tempo, em que a beleza vem em doses assustadoramente desmedidas e das formas mais inusitadas, passo apressadamente os dedos nas paginas do meus livros de cabeceira, tentando lembrar do que vem escrito neles, sobre a beleza que eu aprendi um dia a amar de todo coracao. Mas acho que os autores nao tomaram do mesmo vinho que eu e nem tampouco viram as torres de igreja, os passaros e os fins de tarde da Inglaterra.
Sob o ponto de vista que for, entretanto, nem tudo e' belo. Ha' terriveis poses de sensualidade nas estacoes do metro, e as casas vitorianas estao carregadas de uma tristeza tao intensa que ficam assustadoramente feias, sem contar o fato de que sao todas indenticas... Detalhes infimos que em nada prejudicam a primeira impressao.
Vi um mendigo dormindo no jardim do National Galery, que ficava rindo dos turistas que davam pao pros pombos. Sujeito de sorte: levantava a cabeca e tinha aos pes a Trafalgar Square e ao fundo um dourado Big Ben, sem duvida, o mais belo quarto do mundo, ainda que fugaz e um tanto frio, como toda ambicao humana.

sábado, agosto 26, 2006

Gota de Bile

Numa noite de sexta-feira Roberto e eu, alem de outros amigos, fomos a uma adega muito animada, chamada "Adega da Mina".
Fraternalmente embuidos da certeza de que a unica bebida alcoolica permitida a um bom cristao era o vinho, abusamos dessa conviccao e por umas seguidas 6 horas fomos esvaziando os galoes, e em seguida as bexigas, para no mesmo passo enchermos a vida com alegres gargalhadas.
Juiz de Fora, inglesa no apelido de "Manchester Mineira", aproxima-se de Londres no tempo, que aqui tambem muda muito, nas palavras do meu colega turco, "the weather here is very change-abe"! Em Juiz de Fora temos 4 estacoes num dia, como aqui, mas a mudanca e' sempre gradual ao longo da jornada e o verao dura realmente 3 meses e nao 3 semanas!
Inesquecivel memoria, hoje tao saudosa, de quando junto dos bons amigos eramos estudantes sonhando com carreiras brilhantes e reconhecimento, orgulhosos das nossas origens e estirpe, tinhamos muito mais a oferecer do que a pedir, assim, brindavamos. Curiosamente, a humildade da casa, a qualidade do vinho e mesmo o duvidoso estado de limpeza dos copos em nada diminuia o nosso orgulho, afinal, estar entre homens brilhantes nos faz sentir tambem brilhantes, mesmo que de fato sejamos ordinariamente ordinarios.
Adoraria ter o Roberto ao meu lado para discutirmos com os imigrantes franceses daqui, sem duvida as pessoas mais bem orientadas em termos de assimilacao do modo de vida britanico sem com isso perder nada de si mesmos, na adoravel conviccao de que ao tratar com um ingles tao a tratar com uma crianca indocil e que precisa de cuidados especiais. Evidentemente exageram, embora toda nao de todo sem razao!
Afinal as adegas daqui nao me lembram em nada as que eu frequentei, como a da Mina, porque simplesmente o que ha' para valer sao bares tipicos, cheio de gente se embebedando com a cerveja daqui, ou com gim, tambem popular.
Daquela vez, quando acordei depois de ter tomado algo como 2 litros de vinho "Cancao", premiei o corredor da casa do Roberto com uma uniforme e acre linha de bile, na sua bela coloracao amarela, antes de me deitar olhando atonito o teto branco da sala de estar, convicto de que a vida nao seira jamais como aquela boa sensacao de nao colaborar com as coisas praticas, e com os amigos, discursar embriagado sobre algum segredo de amor.

quarta-feira, agosto 16, 2006

Quando eu te encarei frente a frente

Quando os turcos tomaram Constantinopla disseram que era uma grande cabeca sem corpo, pela decadencia do Imperio Bizantino, reduzido aquela bela cidade. Olhando Londres hoje, cheia de imigrantes, e' como olhar um corpo sendo preenchido, e' como ver uma cabeca que se levanta.
Gente do mundo todo tem certeza que e' possivel ser feliz aqui. Refugiados de guerra, gente das ex-colonias inglesas, europeus de regioes mais pobres, latinoamericanos e de mais lugares onde a mente lembrar, tantos e tao variados sao os imigrantes. Todos razoavelmente tenazes. Os ingleses quase se encolhem, mas no fim sao os que mais se beneficiam, afinal, era caro pagar 12 libras por hora para um compatriota limpar a cozinha do restaurante, um polones faz por ate' 1/3 desse salario. Doutro lado, nao ligam nenhuma de ver sua cidade invadida, tendo suas feicoes alteradas, ouvindo linguas estrangeiras para todo canto, o que e' incrivel.
A cidade mantem sua beleza alheia aos invasores, aos herdeiros displicentes, serve a todos seu natural orgulho da gente que construiu isso e morreu e ai' um nome aparece mais alto que os outros e esta' estrito em todas as placas e esse nome e' Queen Victoria. Imagine uma mulher que foi senhora do maior imperio do mundo em seu apogeu, onde dizia-se que o sol nunca se punha e que se esforcava para esmagar o orgulho dos conolizados ao mesmo tempo em que lhes tomava as riquezas para nesta ilha erguer 50 mil casas vitorianas para os operarios, todas identicas, ou uma torre que sustinha a unica ponte do mundo de entao que se suspendia para os navios passassem. Outros tempos.
A 2ª Guerra Mundial deixou aqui marcas, diga-se: fez esse pais aliado incondicional dos Estados Unidos e seu apoiador incondicional, o que, de certo, ja o fez menos ingles, mas garantiu a continuidade de sua riqueza, o que de certo era o que nao podia prescindir absolutamente.
Todas as manhas e tambem no fim das tardes ouve-se os corvos. Seu voo e' feio e sua postura e' a de quem espera a morte. Imagino o que as geracoes seguidas deles pensam do que se passa com o pais que sempre viram tao energico e que agora parece ser o objeto de seu curioso zelo. Afinal, eles e tambem eu nos perguntamos: para onde isso aqui vai?
Certamente permanecera' orgulhoso das suas cidades herdadas, mas do que valera' essa reverencia esquecida das suas fundacoes originais eu nao imagino.

terça-feira, junho 13, 2006

Minha vida é esta: subir Bahia, descer Floresta

Quem conhece Belo Horizonte conhece o famoso adágio de Rômulo Paes, cronista mineiro, que foi consagrado pelo gosto popular pela sua riminha: "minha vida é esta: subir Bahia, descer Floresta". A "Bahia" no caso é a Rua da Bahia, que corta o centro e dá acesso ao centro sul para a região da Praça da Liberdade. A "Floresta" em questão não tem feras nem mata fechada, mas até que se encontram umas árvores, pois é um belo e tradicional bairro belorizontino, devidamente arborizado.
No entroncamento da rua da Bahia com a rua dos Guajajaras, próximo ao final da Avenida Álvares Cabral, temos o belo momumento que traz o adágio.
Ao povo belorizontino, Vianinha e eu bebemos uma cerveja na tabacaria do edifício Rotary, bem pertinho do referido sítio.
Vianinha, que comigo dividiu os bancos do colégio, acha que o povo daqui tem um mineirismo moderno, como que se fossem patentemente cosmopolitas, mas sem nunca se esquecerem que nasceram na antiga "Curral del Rey". No modo de falar, é engraçada a maneira como não pronunciam o "n" dos gerúndios, tanto mais a proximidade e intimidade da sua voz se falam rápido relatando qualquer coisa.
A boa gente desta capital é composta de gente de todo lado, mas aqui os que estavam no início fizeram valer seu modo de ser e de falar. Vianinha, que agora tirou diploma pela Universidade de Ouro Preto, conhece bem como é diferente a moda daqui para a da cidade histórica, que muitas vezes tem falar mais elegante, uma doçura ainda mais reservada, com seus sorrisos jamais precipitados. Mas prefere Belo Horizonte!
Vianinha e eu não somos daqui, mas do sudeste mineiro, região com influência cultural forte do Rio de Janeiro, pela proximidade geográfica inclusive, mas sempre Minas Gerais.
Aprendemos desde cedo que Juiz de Fora é que era a capital de fato do nosso estado, pois supostamente mais culta, mais histórica e mais metropolitana, nisso fomos em muito instruídos no tradicional rivalismo com a capital de direito. Mas Belo Horizonte tem suas qualidades! Já vi o Clube Atlético Mineiro ter esperanças em vão, já vi a juventude da zona sul encantada de si mesma na praça Diogo de Vasconcelos, na Savassi, já vi Fernando Sabino e Carlos Drummond proseando depois da morte na Praça da Liberdade e namoradinhos colados no gramado do parque municipal no domingo de sol, mais que tudo e já há algum tempo, vi um belo horizonte da Raja Gabaglia. Cidade generosa que reúne a nós mineiros.
Assim como minha amizade com a querida Patrícia Godefroid, foi aqui na capital que retomei e vi plena como dantes minha amizade com o querido Vianinha, depois também de muitos anos. Despeço-me de todo rivalismo e dou graças ao fato daqui ter cultura vibrante, cursos em todos os graus, sedes nacionais de pujantes sociedades empresárias que fatalmente tomam os nossos serviços de advocacia. Patrícia veio estudar, Vianinha se especializar, já eu vim para encontrar-me com eles e para não ficar muito ocioso, resolvi trabalhar.

sexta-feira, maio 05, 2006

Casar na Igreja do Pilar

Se formos pelas verdades simples, o casamento é a celebração da união de quem se ama. Como se casa, se há festa ou não, onde se casa teria uma importância secundária. Entretanto, não é bem assim, principalmente quando estamos falando das igrejas de Ouro Preto.
A fachada da igreja do Pilar não se coloca tão imponente como a igreja de São Francisco de Assis. De fato, está no nível do chão, no nível em que as pessoas andam, desbotada pelas intempéries, pedindo uma mão de tinta... Apesar disso, foi ali que descobriu-se o primeiro veio de ouro, apesar disso, tem um altar que reluz riqueza e afirmação, apesar disso, é casa de muitos corações.
A contrapor a formalidade e a tradição, imaginei, muito por sugestão de Patrícia, evidentemente, um casamento alternativo ao que se vem fazendo por lá:
Tomemos então, a sugestão de um ritual especial para essa igreja especial: entra a noiva desfilando um vestido algo lilás (contribuição minha), mangas tricolores em azul, vermelho e verde, e mangas curtas, diga-se de passagem! Com presilhas muito bem ajustadas aos braços. A barra do vestido deve vir ao chão e deve ser suspensa pelas mãos, a fim de que se possa ver os pés, devidamente nus, sim, descalços, sem nada a fazer-lhes limite, que não o próprio chão da Igreja do Pilar.
No cabelo, nada de arranjos arquitetônicos. Mais que tudo no penteado fica bem a simplicidade, daí os cabelos soltos, alinhados apenas para compor a noiva com mais harmonia. Para coroá-la, nada de tiaras de brilhantes... fica melhor uma coroa de flores pequenas, flores do mato, uns alecrins, algo ouropretano para mostrar que a flor de noiva que se casa também floresceu naquela cidade.
A marcha é então o próximo movimento nesse ritual: aqui entram as serpentinas de várias cores, e não as cinzas e brancas... pois essas lembram festas de alegria obrigatória... serpentinas vermelhas, azuis, amarelas, até roxas, quem sabe? Todas a cortar a igreja de norte a sul, de leste a oeste, a unir toda aquela gente surpresa (espera-se) na intenção de demonstrar o que me parece ser a alegria do amor, era um símbolo bastante bom por esse ponto de vista.
No altar, encontram-se os noivos, miram-se e de frente para o padre e os padrinhos, juram tudo e prometem tudo quanto lhes coloca à frente para jurar e prometer, fica a aqui a beleza por conta da sinceridade desses votos, infinitamente sinceros.
Trocadas alianças, nada mais há que um beijinho comportado, afinal o objetivo não é escandalizar, mas sim evocar o significado real que deveria ter a cerimônia, seguido da marcha de saída, já agora os noivos juntos, com as mãozinhas dadas, cúmplices no sentimento, ansiosos das conseqüências de sua coragem, o sentimento que enobrece.
Na porta da Igreja do Pilar, à rua onde passam as pessoas que vão à praça ao lado, por onde passam os que vão à praça Tiradentes, noivinhos coloridos de amor recebendo os cumprimentos efusivos e os votos de felicidade dos privilegiados que puderam assistir a fantástica cerimônia, pais estupefatos, nas no fundo muito orgulhosos, e é claro, uma legítima noite outonal da velha cidade, com a lua consideravelmente crescente às esperanças de seguir por toda a vida como naquele instante seguiu-se o coração.

domingo, abril 16, 2006

Uma sexta-feira santa

Encontrei a avó para seu aniversário de 69 anos numa sexta-feira da paixão. Com as faces bem rosadas e sempre risonha, sorriu para mim o grande sorriso que há tanto esperava ver. Estava feliz, estávamos todos, mamãe, as tias e primos.
Ficou preocupada com a minha garganta, mais uma vez, muito inflamada. Fiquei sentido de dar-lhe mais essa preocupação e menti, dizendo que já estava muito melhor e mais bem disposto, do que ganhei um olhar de reprovação da minha mãe, mas vovó sabia que estava falando para agradá-la e sorriu de novo.
Dei-lhe de presente uma lembrança de Araxá, que tinha visitado há umas semanas, um carro-de-bois pequenino, 13cm de altura por 25cm de comprimento, idêntico ao que está no quintal da casa de dona Beja, com as rodas com pregas e o engate da gangalha, tudo bonitinho como manda a tradição. Ela gostou, mas acho que meus priminhos que moram lá perto dela vão destroçar o mimo rapidamente, uns diabinhos, mas não muito piores do que os netos mais velhos à sua época. Meu avó gostou do presente disse que já tinha tido um, achei que era brincadeira, mas vi que ele examinava com muito cuidado a pequena réplica. Da parte da minha avó, foi bom presente, mais que a pecinha simples em si, ela curtiu mesmo que tivesse me lembrado dela, mas como não? Disse que era para ela não esquecer de mim e também ela disse o seu "como não?".
Almoçamos e eu brinquei com a minha tia que espera o primeiro filhinho. A vovó tinha feito questão que levasse Aparecida no nome se fosse mulher, assim como levou no nome a minha tia, mas para sua decepção vai nascer um meninão, segundo o exame de ultrassom, será batizado Bruno, segundo a vontade da mãe. Vovó riu de novo. Foi pena que já não aguentava ficar lá entre eles, depois do almoço a febre bateu forte e fui me deitar, dormi umas horinhas.
Que loucos são os sonhos que se tem depois do almoço, mas não suspeitava que eram ainda mais delirantes quando se está com febre! Tão loucos que não valem o registro, basta mencinar que havia bezerrinhos pequenos, vinho caseiro, mamadeiras e banquete com bacalhou à Gomes Sá.
Acordei duas horas depois, achando muita graça daquela bobagem toda. Minha mãe já se preparava para ir, nem tive tempo de conversar com minha avó, mas tive a impressão de que iria revê-la logo, será?
Apanhei umas frutas de seu pomar para a medicina caseira contra sinusite e amidalite, não custava nada tentar, afinal fazia seu gosto também. Os priminhos foram ajudar a colher.
Já ardia menos a garganta, a respiração era livre e a testa nem estava quente quando acenei no carro para ela e desejei feliz aniversário antes de partir e foi ali que ela sorriu desta nova última vez.

sexta-feira, março 31, 2006

Uma moça mira o mar

À beira do mar chega uma brisa que muito viajou antes de encontrar o continente, foram milhas e milhas onde a pressão atmosférica fez o ar mover-se a uma tal velocidade e sem nenhum obstáculo, que enfim encontrou o continente encorpado de sal, umidecido pela água, bem disposto para inspirar.

Olhar o mar... ver que a imensidão não tem limite, que o limite o mundo é que tem, na fronteira da curvatura da terra. Mas os olhos não se detêm às fronteiras, vêem além.

Como se houvesse uma torre imensa à beira do mar, no topo da qual fosse possível ver todos os reinos do mundo, insistem os olhos em perseguir o horizonte de onde segue oculto o mar.

Pois digo que não há horizonte mais bonito.

Vivamente me lembro de uma vista no campus da Universidade Federal de Juiz de Fora onde era possível contemplar um horizonte aberto. Ficava na praça cívica, próximo à Biblioteca Central, um grande vão aberto onde não se intrometia montanha nenhuma, nem prédio nenhum, era apenas um largo rebaixado de bosque com o lago do campus no fundo e mais abaixo, há uns 3 quilômetros, a cidade de Juiz de Fora. O sol se põe bem à frente de quem admira a paisagem, de modo que a linha da cidade fica dourada e com pigmentos alaranjados as folhas das árvores e o lago.

Ao fim do dia, via-se o pôr-do-sol mais bonito do mundo acadêmico, engrandecido pelo fato de que quem vive nas montanhas não tem horizontes abertos: há sempre algo à frente para interromper a vista, como se vivéssemos numa liberdade cercada, além de tardia.

Era ali que o coração liqüidava as mesquinhas preocupações e um bom vento livre, vindo talvez do litoral, soprava os cabelos, esfriava o corpo e convidava a um café na cantina da biblioteca. Havia filosofia demais para aquela vista.

Considerávamos, eu e os demais miradores, que valia morrer olhando para algo assim, que se fosse para ter fixada na alma uma última lembrança da vida, eternamente cristalizada, que fosse uma como aquela boa vista.

Não fosse a morte o argumento preferido dos poetas fatalistas, não fosse o morrer a mirar o mar a final sutileza da balada da Moça do Miramar, de entristecida poesia com essa mesma figura de linguagem, teria entre os meus sentimentos o desejo dessa morte, evidentemente secreto. Mas não é exatamente assim comigo.

Do fundo do coração, sei de uma coisa: meu último olhar não será para um livre horizonte sem fim, onde supostamente significaria ver liberdade, ou onde questionaria a metafísica do mundo... Será para dentro dos olhos do meu amor, donde colherei minha gota de transbordo da coragem, minha bandeira altaneira da esperança, minha alegria perene.

Não preciso estar em lugar nenhum para ver o infinito, senão perto deles, pois tenho nestes olhos o meu mar.

quarta-feira, março 29, 2006

Leve balanço

Vi Belo Horizonte pequena a desaparecer atrás de mim de dentro de um avião de élices: pequenino e bastante barulhento, mas que nas curvas fazia um leve balanço e cessava de tremer tanto.
Não supunha que houvesse linha aérea entre Belo Horizonte e outras cidades assim tão próximas, mas a prosperidade do Triângulo Mineiro fez sugir essa escala ao destino chamado Uberlândia, enquanto a nossa Manchester mineira, Juiz de Fora, continua com uma única linha regular para São Paulo: saudade do tempo em que era pioneira, pois agora há estudantes de mais e dinheiro de menos!
Nunca tinha vindo a Araxá, aqui tudo é muito plano e as ruas em geral bem largas: uma satisfação para quem está acostumado a ladeiras e curvas bem fechadas. É a terra de "Dona Beja" do Grande Hotel de águas termais, mas atraiu-me para cá o serviço: amanhã há uma audiência, a colhida de um testemunho.
Aterrissei distraído quando do avião tive um encontro quase aéreo, mesmo sem acreditar logo de início. Talvez pelo whisky servido à bordo, talvez pela docuça de curvar àquela velocidade e altura, desvencilhei-me do cinto aparentemente inútil num acidente aéreo, e encontrei em pleno vôo, desta vez sem élices barulhentas, mas de braços abertos e em frente a um horizonte lindo e aberto, um passarinho.
Desencantado de sua própria liberdade, planava bem longe, rumava a um destino desimportante e perseguido por puro instinto, rezava secretamente afeto, fomentava dentre as asas ensebadas amor, dava de comer no biquinho. Enfim sorri, depois de tantos dias tristes, meu melhor e mais franco sorriso para aquela desenvoltura nas acrobacias.
O que fazia esse bicho em Araxá, meu Deus? Não sei. Mas está por aqui. Eu que já o vi tantas vezes e conheço tão bem a sua natureza, eu que de um bicho desses fui companheiro e dono por longos anos, senti o peito espremer angústia, a garganta apertar sozinha e os olhos marejarem...
Voou depois para um lugar impercebido, sem dar um pio, sem qualquer sinal maior. Mas esteve aqui perto de mim, disse-me o seu "olá" e tão lindo fez-me lembrar de si com todo mérito que fazem por merecer os pássaros, criaturinhas muito livres e muito objetivas nos seus propósitos e alguns deles, como esse amiguinho, gloriosamente leal, desgraçadamente inesquecível.
Queria ter um bico como o dele, asas coloridas como as dele, queria mesmo era voar como ele quando fosse voltar para casa... mas não sou passarinho, vôo em aviões de élices, por vezes melancolicamente deselegantes.

segunda-feira, março 27, 2006

Minha crônica favorita

Susana, flor de agosto

A redação seria a coisa mais triste do mundo, não fosse a presença inesperada de Susana. Susana com seus 13 anos em flor, sua sábia beleza, seu doce e triste olhar castanho e sua perfeita desenvoltura encheram a redação de uma vida inesperada, fazendo-me por alguns instantes esquecer a mesquinhez do cotidiano. Ela entrou nos amplos espaços do meu tédio com passos graciosos de dançarina e ficou a girar por ali, balançando os cabelos longos sobre os ombros firmes de adolescente. Pus-me a adorá-la como nunca dantes, àquela menina a quem dei vida, e nunca senti mais forte, doce, secreto, o elo que a ela me prende.Talvez para os outros sua jovem figura trouxesse apenas o encanto uma flor em desabrochamento. Para mim, seu pai, trouxe uma sensação de indizível amor, de um triste, fatal e pacífico amor sem remédio. Revia-a pequenina em meus braços diante de um branco céu crepuscular olhar para o alto anunciando-me que as estrelinhas estavam acordando. Revi-a a me olhar do seu modo sério quando lhe contava histórias, longas histórias por vezes inventadas e que nunca eram bastantes para a sua imaginação insone. Revi-a crescendo diante de mim qual planta misteriosa, estirando o caule, distendendo os ramos numa ânsia saudável de crescer. Agora ali estava ela a dançar sua maravilhosa dança ritual só para mim, nos infinitos espaços do meu silêncio – Susana, uma vida tirada de mim, uma menina que eu fiz para amar com a maior doçura do mundo: Susana, flor de agosto, filha minha muito amada, para quem eu cantei meus mais sentidos cantos e sobre cujo pequenino rosto adormecido despetalei as mais lindas pétalas do meu carinho.

Vinicius de Moraes
10.1953
in

domingo, março 26, 2006

Dialética

Não é raro que a madrugada queime nos meus olhos, doce e bem vinda, embora no dia seguinte os mesmos olhos de contemplação tornem-se olhos arenosos, pesados e imprecisos.
É da própria essência da madrugada o mistério e o envolvimento, a sutileza e a plena consciência da falta de perenidade que lhe informa.
Calha bem respirar a brisa fria ao silêncio do mundo que dorme, sonhando acordado que o dia seguinte trará entendimentos mais inteligentes, que faltará aquela má-fé habitual, que se atrasará dormindo mais cinco segundos por preguiça aquela desgraçada inveja, filhinha dileta da vaidade e do orgulho.
Vem o dia com sol forte, e com olhos cheios de areia vejo as mesmas cenas: "não falamos o mesmo idioma", é normal pensar então, pois o entendimento é sempre difícil!
Segue o dia da rotina comum com apenas um rastro desses pensamentos, quase esquecida aquela sensação boa da madrugada. Um ceticismo sempre sarcástico e disciplinador é o vencedor habitual. Desacredita o mundo e tudo mais, como se colocasse os livros que já leu na estante rindo com confiança, enfim, também ele um tanto orgulhoso.
Vêm os colegas de hábito desejar "bom dia", comentamos do fim de semana, dos copos que esvaziamos, do futebol e da pena de não ter ido no estádio - que jogo fantástico! Sorrimos, vamos ao trabalho, concentramo-nos, afligimo-nos por qualquer prazo próximo, almoçamos, trabalhamos mais um tanto para o êxito do escritório e em casa finalmente, cansado e aborrecido com qualquer coisa pequena, levanto a alma para o alto com um banho bom, e com os pensamentos finalmente vagos de novo, já posso desacreditar tudo dentro do meu particular modo de pensar, achando graça do absurdo do mundo e não vertendo pra dentro nada que venha dele.
Venho aqui por uma curiosidade, a mesma talvez que tenho quando concorro - não pela vitória, mas pela incerteza do resultado - se consigo descobrir alguém que saiba ler no idioma em que escrevo.
Fora essas surpresas e o modo delicado como sorri minha avó, tudo no mundo é vão.

quarta-feira, março 22, 2006

Num copo de café

Passei em frente a uma vitrine da Savassi, tinham chegado peças novas da coleção de inverno. Acho que as mais caras, já que o verão finalmente está a passar.
Muito bem montada a vitrine. Tinha lá uns três manequins, um sofá, um abajour, uma mesinha de centro bem pequena e uns outros adornos elegantes. Parei e fiquei a olhar. Os manequins nus não pareciam envergonhados e se toda gente fosse assim era muito melhor, refleti mais por hábito do que por ter chegado a uma conclusão brilhante.
Logo entrou o rapaz que organizava as roupas. Tavam amarrotas. Ele vestiu os manequins mesmo assim. Achei engraçado pois, afinal, eles não se importam muito em vestir roupas naquele estado, ao menos não ficava à mostra aquele simulacro de sexo que os seus criadres inspirados imaginaram para reproduzir fielmente o corpo humano.
Finalmente, depois de agasalhar a todos os bonecos, deu comigo de frente pra cena toda. Sorriu e perguntou se estava bom. Respondi que sim, mas sem entusiasmo. O rapaz notou e convidou-me para entrar na loja.
Era um rapaz, mas nem tão novo assim, tinha 33 anos, chama-se Artur, e é vendedor há uns 4 naquela mesma loja. Naquela manhã trocava as roupas dos manequins. Perguntou como faria. Disse-lhe que não colocaria o rapaz a olhar para a moça, deixando-os de lado para a rua, daí as pessoas não veriam a estampa das blusas, que eram bonitas. Outra coisa que sugeri foi que colocasse a outra moça deitada no sofá, já que tinha boas pernas falsas e a pose iria chamar atenção. Ele concordou. Isso passou-se há 3 dias.
Encontrei com o rapaz no centro da cidade hoje. Tomava um café antes de seguir para o Fórum. Aproximou-se e disse que a vitrine tava fazendo sucesso, que as blusas e jaquetas tinham se esgotado e encomendavam outras e agradeceu de novo. Fiquei contente e ri devagar. Era pai de uma boa estratégia de vendas, tinha lá direito a uma comissão! Mas valeu mesmo pelo divertimento daquilo.
Veio à lembrança o modo como fazia batalhas na infância com soldadinhos de chumbo. Bolava estratégias, armava grandes confrontos! Emboscadas surpreendentes eram a prova de um exército bem disposto para o combate, que não perde de vista o ideal da vitória! Mas só havia um soldado na brincadeira, e era eu mesmo.
Na loja também só havia um manequim, e era o Artur. Ao me convidar para ir até lá dar a minha opinião e mudar tudo, acho que estava me convidando para tomar parte na sua brincadeira e fez de mim um rapaz que mostrava como as pessoas deviam fazer pose com as novas roupas da estação mais fria do ano, isso, é claro, através dos meus representantes inanimados!
Vertendo um e outro gole daquele café de depois do almoço, que serve mais para despertar da sesta do que para agradar o paladar, achava-me muito bem vestido para a nova estação, com a expressão multiplicada pela representação da minha vontade, orgulhoso da minha liderança, segui com os meus trajes formais de inverno por sobre o corpo, senhor dos soldadinhos de chumbo e agora também de manequins de lojas de grife.

domingo, fevereiro 12, 2006

Vem comigo a Ouro Preto

Assombrada pela sua praticidade frustrada, a capital mineira sob a chuva constante é quase como um assassino sem sua arma: fica um pouco confusa antes de encontrar outras opções. Confusão bonita de se ver e de se sentir, por instantes a marcha do mundo e das coisas é outra: "mas tá a chover..." argumentam todos nas conversas. Eu em casa, também à circunstância da chuva, aproveitei para verter pra dentro compreensões destas coisas bonitas daqui, lembrei das devoções que contemplei, ainda de uns espetáculos da natureza humana.... da comédia desta natureza... ouvi "Dora" e fiquei sorrindo uns minutinhos, depois outras também queridas daquela época, metade dos anos cinquenta ao fim dos sessenta, em que música popular e poesia andavam casadas em comunham universal de bens. Agradeci à chuva.
Surigiram lembranças, feitas não da má nostalgia de não as ter vivas, mas da contemplação da beleza. A meiga tarde de domingo no outono de Ouro Preto, meu Deus, que ar mais puro e doce, que composição plena das cores, das formas geográficas, do acaso da fortuna que ao pé da "Pedra Menina" edificou a matriz do Pilar e deste ponto, a sempre jovem condição de sofrer da paixão e conter-se.... mineiridade. Quis ir até lá talvez só pra ser molhado pela chuva de Ouro Preto, já então diria "felizmente está a chover" e o vagar pelas tortuosas ruas de pedra seria o exercício desta fé maior, crescida do esforço, justificada pelo encontro.
Abrir a porta de casa e dar de frente com essas coisas, a paz de sentir-se no lar que lhe cabe, disso iria muito bem mais uns poemas. Não desses que se escreve com o pensamento fixo num prêmio de concurso, mas dos feitos à mansidão do rio dos sentimentos.
Enturmei-me com uns versinhos novos, fiquei a ler umas palavras neles: "charutos", "noiva", "sanguinário", "tesouros"... talvez tenha sido esse poema um acelerador destas conclusões, pois a poesia nova aproxima-nos da mais cara e mais justa das certezas pessoais, a de que a terra arrasada ainda guarda embaixo das cinzas o adubo verde da esperança. Um gole de conhaque, um velho amigo a relatar aventuras, a redenção da justiça, a paixão discreta da condição ouropretana.
Rezei baixinho uma oração de devoção e piedade, fui tomar um café recém passado e comi um pedaço de queijo minas olhando a chuva insistente, apertei o queixo com o polegar e indicador direitos, enfim havia muito sentido em ir a Ouro Preto, e tanto mais quando está a chover.

domingo, janeiro 29, 2006

Moral da originalidade

Fui a Conselheiro Lafaeite por razões profissionais na semana passada. Ao clamor de um prezado nosso cliente de que o inventário de partilha de sua mulher estava a arrastar-se demais, resolvemos que era preciso falar diretamente com o senhor juiz da 4ª Vara Cível daquela comarca.
Ao providenciar o recolhimento das custas para expedição do formal de partilha, providência da prache processual para o caso de terminar um processo de inventário, onde reparte-se uma herança.
O belo fórum da cidade, já agora envelhecido e prestes a ser substituído por uma sede mais moderna, foi palco de um inesperado reencontro. Ninguém mais que um velho colega de Juiz de Fora, e com qual surpresa não reconheci aquela sua figura no corredor do velho edifício! Márcio Motta, a quem Roberto certa vez deu um apelido um tanto quanto engraçado, mas que vou omitir, por respeito.
Tinha então terminado a faculdade de direito e, não optando por uma carteira, fazia uso dos conhecimentos que encerravam o título seu de bacharel em direito, como funcionário da 3ª Vara Cível daquela comarca.
Cumprimentei e convidei para ir aos copos depois do trabalho, mas lembrei que teria de voltar a Belo Horizonte. Ficamos a falar no corredor por algo como 20 minutos. Falei do início da vida profissional, já o meu antigo colega falou da sua nova cidade, do incerto futuro profissional, visto que as medidas do Conselho Nacional de Justiça já entrariam logo em vigor e os funcionários do Tribunal de Justiça que não fossem concursados seriam todos exonerados, o que seria provavelmente o seu caso. Nessa hora fiquei mesmo algo preocupado por ele, tinha a testa plena de tensão, como ele mesmo ao demonstrar pena de si mesmo com o gesto. Sua vaidade era quase divertida.
Enfim falamos de nossa vida em Juiz de Fora: nossos amigos comuns e nossas competições. Mesmo após 5 anos, ele guardou intactas sua inveja e o seu rancor e logo a felicidade de rever um rosto conhecido de Juiz de Fora foi substituída pela decepção e pelo desprezo por ele.
Logo procurei me culpar por julgá-lo... mas independente de como os outros agem, já não suporto inveja ou rancor, que se querem ter algum vício, que procurem um menos destrutivo.
Todo o resto do dia andei advogando pela causa de encerrar o processo de inventário, no que tive sucesso e retornei a Belo Horizonte com o formal de partilha e minha sentença contra o velho colega. A minha moral pede sempre originalidade.