quarta-feira, julho 13, 2011

O que faz falta



Desde já, digo que o Zeca Afonso faz muita falta, e quanto sentido há nisso.
Há uns dias atrás fui ver o vídeo desta canção e havia lá um comentário algo como isso: "que canção sem sentido... se o pão que comes sabe a merda basta ir comprar outro pão!". Uma ideia que é sintomática da ignorância que anda solta por aí, a espalhar a sua miséria.
Fiquei a pensar comigo mesmo se é preciso estar tudo escrito nos formulários das obrigações inescusáveis para as pessoas conseguirem perceber bem o que se trata.
O canalha que escreveu este comentário de certeza não sabe o que é viver sob uma ditadura. Não sabe o que é ter suas ideias controladas, a sua palavra controlada, a sua vontade controlada. Não sabe o que é ser mandado para o meio do mato em África para lutar e morrer numa guerra estúpida.
A mim faz imensa impressão os 13 longos anos da guerra colonial. Penso nas famílias desfeitas, cá e lá, penso nos colonos portugueses que foram obrigados a largar tudo e retornar, penso no sofrimento, na viuvez, na doença, na mutilação.
Tudo o que poderia ser resolvido de outra forma se houvesse diálogo, se houvesse respeito pelos colonizados, se houvesse consideração pelo futuro deles, se houvesse humildade. Nada disso existe na ditadura. Para ela só existe afirmação, força bruta e uma visão unilateral e obsessiva do destino manifesto das coisas - o que vai variar de acordo com o específico tipo de ditadura.
Não só o pão sabia a merda nesses tempos, mas o vinho, a carne e o próprio ar que se respirava. Nenhum homem verdadeiramente livre poderia viver contente assim. E a verdadeira liberdade, tanto naquele momento como agora, consiste na coragem de reconhecer a tirania, a vilania e a opressão da vida e não aceitá-las, a dizer, não querer comer do pão que sabe a merda.
O rapaz que fez o comentário não sabe que não havia outro pão, senão o que sabia a merda para comer. Ele não sabe que é por causa da coragem de homens como o José Afonso, que ousaram dizer e propagar o que pensavam, que hoje já se pode comer outro pão que não o que sabe a merda.
E por isso, meus caros amigos, o que faz falta, e sempre vai fazer, é a consciência das coisas, da brutalidade do mundo, da mesquinhez das condições a que nos sujeitam, um total circo de opressões que só pode ser descortinado quando nos darmos conta do que faz falta: sensibilidade para perceber, humildade para aprender com a história, coragem para agir.
Este grito imemorial há sempre de ecoar do coração dos justos: o que faz falta é avisar a malta do que faz falta!