sábado, novembro 24, 2007

Piccadilly Circus e eu

Embora ainda houvesse gente na rua, embora os painéis continuassem a brilhar as animações dos produtos mais bacanas, embora tudo parecesse apontar para uma madrugada usual, Piccadilly Circus, já a mais de um ano o lar das minhas noites insones, mostrou-me num relance de pensamento onde Eros foi mandar sua flecha.
Ar frio que conheço e que tempera, o calor do rosto de expressão impassível: quanto frescor para se respirar! Fomos juntos, a fria brisa e eu, a vagar mais anônimos ao caminho do ponto de autocarro. No caminho, um rapaz despojado sentava-se numa cadeira de escritório enquanto três garotas italianas, todas flagrantemente bêbadas, falavam dos flertes da noite e brincavam animadamente umas com as outras. Havia junto de mim também um grupo de adolescentes de comportamento anti-social a fazer mais barulho que o necessário e trabalhadores com suas mochilas, encostados junto à fachada da Patisserie da Regent Street. Nenhum deles percebeu o meu estado.
Chego a casa e o céu do noroeste de Londres, sempre a lembrar o de Juiz de Fora, alaranjou delicadamente e este extremo amor que me comanda fez-se matéria sobre o meu corpo e tive a imediata certeza que qualquer um que me visse notaria esse sentimento nos meus olhos confiantes.
Num instante, toda mágoa e todo sofrimento se disolveram com os beijos que ganhei no meu sonho e foi sorrindo que a linda face da minha namorada aproximou-se para dar mimos.
O sonho a comandar a vida, a vida a seguir sua obediente condição de percurso e essas avenidas preparadas a se encher da expectativa dos dias do fim do ano quando ficará a ilha sem mim por uns dias a fim de que possa visitar o país que Fernando Pessoa chamou de "o rosto que contempla".
Outra coisa não poderia vir ao pensamento quando a vista do quarto evocava essa coragem, essa certeza, essa maneira de encantar o mundo que a princesa me ensinou sem perceber: contemplar a grandeza da liberdade e ver para além das casas vitorianas e dos pinheiros quietos, o horizonte distante que quer-se tanto: "Com razão, sem razão/como é preciso/que andes por onde estás".
Assim, procurei a cama meio tonto desta plenitude de vida, dediquei o último pensamento a ela e adormeci.

quarta-feira, outubro 10, 2007

Parque Secreto

Foi assim a tarde no parque: junto do vento constante o cheiro dos cabelos, vi a luz do sol a deitar-se devagar sobre a gente. Encampei no meu coração a empreitada de esconder-me entre as árvores, buscar com os esquilos o de comer e não voltar nunca mais para junto das ruas e do concreto, quis naquele minuto viver do meu amor e curtir o sorriso do meu amor como minha lembrança cristalizada do mais bonito que podia haver e depois disso nunca mais buscar nada.
Havia sobre as cabeças um azul malhado de branco céu cheio de ambições, como um teto que não é alto o suficiente e por vezes abraço-te e andamos curvados até a saída.
Foi assim junto do memorial do Príncipe Albert. Estavam lá nas escadas os velhinhos a aguardar a abertura das portas para o próximo espetáculo, todos guardados pelo olhar do consorte dourado do alto de seu trono. Descansamos, respiramos fundo, comemos morangos! Ao toque dos dedos pareceu-me o brilho dourado vir antes doutro lado e foram-se a grande indiferença e a dureza para darem lugar ao úmido apreço pelas mãos queridas, pelos beijos ansiados, pelos risos mais sonoros.
Veio uma estrela no fim da tarde e deixou-me no colo a solidão. Agarrei-a com as duas mãos e ao trazê-la junto ao peito abracei-a forte e queimei-me e tanto mais quanto feria-me a pele, tanto mais apertava até que, com o frio da noite já assentada, foi-se de mim num suspiro apaixonado.
Eu caí pelo lado, tonto a sorrir ao esquilo curioso, que desceu da árvore pra examinar aquela doce figura que eu fazia ali.
Pisquei o olho direito ao bichinho que, muito amistoso, deu boas vindas ao novo vizinho com um franzir de bigodes.

sábado, agosto 25, 2007

Não sonho mais

Estavamos, um colega que tambem trabalha no Museu de Ciencia e eu, quase a chegar a entrada do caminho subterraneo para a estacao de South Kensington quando fomos parados por um casal com sua penca de filhos para dar-lhes informacoes.
'Onde e' o Museu de Ciencia?' -E' esse predio aqui a sua direita, senhor. 'Oh, realmente!' dizia constrangido enquanto o pequenito se escondia atras de sua perna e ria pra mim como a desafiar-me e eu de volta, ria ao puto com uma simpatia que nao dou a toda gente.
Seguiram o seu caminho e tambem nos seguimos o nosso, mas por todo dia nao segui senao com aquela imagem no pensamento, afinal aquela suavidade arrancou-me pra fora das coisas praticas e de novo podia tocar as coisas sem que fosse com as maos e que beleza nao pude ver descrita no dia de sol e vento cheiroso que tivemos hoje.
Ganhou mais tempo a minha ponderacao e num minuto pareceu tolo considerar, considerar, considerar para afinal fazer a coisa errada, faco o que faria aquele puto, eu sorriria cheio de confianca em mim mesmo, a esperar que nao houvesse razao melhor que a grande generosidade do meu coracao.
Assim aturei muito bem o grupo barulhento de estudantes espanhois que infestou a galeria da navegacao espacial e com grande polidez pedi a um senhor alterado que moderasse sua voz ao corrigir o filho e ainda consegui ir alem e surpreendi-me a mim mesmo: dei ate' conselhos sentimentais ao bem bom Johnathan! Afinal que tipo de namorada se recusa a preparar o jantar a um homem dedicado como ele? A que nao se importa... e e' pra gente que nao se importa que foram feitas as guilhotinas: off with her head!
Tambem eu ca' no meu encontro como o menino sorridente decidi num rompante: 'da' ca' um beijo, amor, lembra que eu te amo, que eu nao sonho mais!'

sábado, agosto 04, 2007

Submersão sentimental

As grandes cidades do mundo talvez deem-se as maos nessa grande angustia do desconhecimento, um desconhecer que nao e' propriamente ignorancia, e' um facto da vida.
Desconhecem-se uns aos outros, desconhecem os caminhos inabituais, desconhecem, por pior que pareca, a si mesmos.
Vivemos aqui juntos, 7 milhoes de londrinos, sob a constante sugestao do prefeito da cidade para que passemos a andar de bicicleta e abandonemos os carros e o metro, achando piada do quanto o novo primeiro ministro bajula os americanos enquanto esnoba os franceses e alemaes... a espreita de algum arabe com olhos arregalados que queira explodir a si mesmo e a tantos quantos estiverem proximos a si, com essa estranha e curiosa pre-disposicao para apreciar humor negro e sarcasmo, com esse despeito pelos dias de sol e os grandes sorrisos com os copos de cerveja de 600 ml nas maos do lado de fora dos pubs a partir das 5 da tarde.
Curto imensamente o modo de vida dos britanicos, especialmente a sua capacidade de serem gentis sem que com isso significar que se importam, nem por isso... e' uma gentileza de estirpe, nao que significa respeito pela outra pessoa. Agrada-me o bom gosto no vestir, especialmente dos homens e das mulheres com mais de 25 anos... as mais novinhas vestem-se como as americanas e portanto, vestem-se como macacas de circo que vao andar naqueles triciclos pequeninos, com grandes bandanas de bolinhas na cabeca e calcas colantes sob as saias... nao chega a perturbar o ambiente de todo. E' bom tomar cerveja para acompanhar o file' de peixe frito e as batatas fritas, o prato nacional por excelencia, e gastar as preguicosas tardes de domingo com os amigos num pub aconchegante e belo como todos os pubs tradicionais sao.
Tanta imersao cultural e eu assim tao submergido, entre o antes e o agora e o depois, esse lapso tonto de acordar 'a tarde com a sensacao que perdeu-se um compromisso... mas nao ha' nada, ficou so' a sensacao e umas saudades com olhinhos tristes de orfa a mendigar moedinhas para um pedaco de pao, um beijinho com carinho, alguma palavra de afecto.
Cinza leve a vagar junto da brisa fria e constante, espectro morbido e jocoso do que um dia foi a minha louca fantasia em brasa, um deboche intimo e cruel, uma maldicao que lanco silenciosamente quando o odio me inflama discretamente antes de converter-se novamente em amor, com o alarde brutal da minha paixao... E repete-se ao infinito os versinhos queridos que me dizem tanto:

'Parte, e tu verás
Como o que era real, resta impreciso
Como é preciso ir por onde vais
Com razão, sem razão, como é preciso
Que andes por onde estás.'

Plena tarde de verao, beijos ao ar, moedas nas fontes da Trafalgar Square, pensamentos distantes 'a beira do Tamisa... tao quente submersao sentimental na capital do Reino Unido.

sexta-feira, agosto 03, 2007

Pedaço de céu

Ca' comigo eu lembrei dos sorrisos, dos cheiros, do vento que passava e da forma das arvores e no outro minuto, quando subitamente vi-me apartado de tudo... senti-me tao miseravel como qualquer mendigo da rua, mas sem o orgulho deles.
E' sempre a reproducao infinita de Cachito, uma sensacao como a que tinha quando meu avo fazia-me uma grande festa no cabelo ao me ver... e' sempre esse conforto maravilhoso que a distancia converte em numa saliva com gosto de fel que apaixona.

sexta-feira, julho 20, 2007

Legado de liberdade

A inundacao do metro de Londres essa manha deu-me oportunidade, para alem do esperado aborrecimento, para ir visitar o momumento ao Principe Albert no Hyde Park e afinal lembrar um tanto daquele homem que passou a vida como o marido de uma imperatriz, sem ser muito mais que isso. Nao que seja pouca coisa... nem por isso! Mas afinal, a Rainha Victoria nao foi uma mulher de temperamento facil, sabe-se ate' que nao aturava ninguem que a contrariasse nas minimas coisas, era mandona e muito rigida nas vontades, uma verdadeira soberana. Assim restou ao principe, seu esposo, figurar-lhe na vida, ser o acessorio indispensavel a foto oficial, sem entretanto participar ativamente daquilo, o tempo mais grandioso de toda a historia britanica.
O momumento em sua homenagem faz realmente uma bela figura, com o perdao do trocadilho, a justificar um grande amor, bela em toda sua grandeza, reluzente e viva. Logo em frente vem o grande anfiteatro, belo e majestoso.
A Rainha Victoria encheu Londres de belos monumentos, logo em frente ao Palacio de Buckingham ha' mesmo um monumento em honra a ela mesma que e' fantastico, mas a mim o mais belo e' este ao principe Albert, o mais significativo tanto mais porque a estatua dele e' dourada e reluz como o ouro, afinal deve ter sido um marido de ouro ou algo assim para justificar a homenagem, ou afinal ja' nao havia mais argumentos para o proximo monumento e num estalo alguem lembrou-se: 'claro, ainda temos o Principe Albert!'.
'A parte desses questionamentos menos interessantes, vejo como deve ser dificil ser principe de outro reino, como devem nascer no coracao duvidas, como devem nos corroer incertezas, como deve custar caro tanta tramoia... Levantar o cetro a dominio sem nenhum valor e aceitar homenagens que nao sao de modo algum devidas por ser afinal parte do cerimonial e ir levando comendas ao corpo e coroas na cabeca e ir a festas e sorrir a toda gente e nisso tudo nao haver nada de real para si, em nao realizar-se em nada disso, que pobre vida, que privacao corvarde que se escolhe para si!
Lembro-me assim do nosso Imperador Pedro I, que abdicou da coroa para o filhinho de 5 anos, que deixou para nunca mais ver, e que embrenhou-se numa luta sem certezas para garantir o trono portugues para a filha. Venceu mais pela forca do coracao e pelo amor que o povo que tinha do que por qualquer outra coisa, tao valente e corajoso o nosso Pedro que pouco mais de dez anos antes tinha nos dado independencia e contrariado amplamente o interesse de seu pais de origem.
Talvez diga-se que afinal tava a garantir a coroa para os filhos, que nisso nao havia amor nem ao Brasil nem a Portugal, mas acho que para alem desse imediatismo havia um homem que acreditava nos seus ideais e no valor da coroa que trazia sobre sua cabeca, um combatente honrado, um homem de temperamento forte e aventureiro, eis a marca dele sobre o nosso imaginario: antes de tudo, foi senhor de seu proprio coracao.
Nao me lembro de haver muitos monumentos em honra ao nosso Pedro I, na verdade ha' um muito belo no Rio de Janeiro, perto da Palacio da Boa Vista, mas pronto... nada se comparado ao Memorial ao Principe Albert. A diferenca e' mesmo que nao e' preciso monumento nenhum, por mais reluzente que fosse, para que lembrassemos de sua presenca e de seu legado.

quinta-feira, julho 12, 2007

A canção do amor demais

Assombra por vezes o aspecto que toma o ceu de um instante para o outro. Por vezes, mansamente azul, ja depois nublado de branco, cinza e negro.
Ventou assim numa tarde depois que cheguei de volta a Londres, estava no Queens Park, numa inscurcao para matar saudades e entao, como que de repente, a bela tarde de sol tornou-se num pressagio de diluvio e toda gente que la estava despreocupada, a dar de comer aos esquilos e a ver os filhos jogarem futebol, aos pobres namorados que enfim podiam partilhar um momento juntos, os velhos que ja' andavam cansados de ficar em casa, toda essa gente (tambem o antigo morador que veio matar saudades) foi obrigada a correr-se de la' e assim, vazio de gente, respirou o parque uma solidao muito curiosa, que eu vi so' de longe, mas que pareceu belissima.
Apartado e quieto, nao ficou lado outro sem sonoridade, de si para consigo, falava la' sua lingua, conversava o vento com as arvores, e e' bem capaz que os esquilos entre si tambem estivessem a dizer alguma coisa, uma harmonia que para nos visitantes pode parecer tao distante, mas que a intimidade conhece bem e talvez por isso nao se ressinta da falta dos que vem a passear, mesmo que o parque exista para eles, mesmo que com eles e' que ele seja mesmo parque, com si para consigo ele e' belo, ele compreende-se.
Por vezes eu o visitava para que pudesse perceber algo disso, para ter dele algum conselho talvez, mas nunca tive resposta.
Curiosamente naquela tarde em que me corri de la e depois olhei para tras eu percebi quao belas sao as arvores ao vento, quanto de amor ha' no cheiro daquelas flores e que ceu lindo ha' por cima, mesmo quando tudo e' nublado... o que e' verdadeiro e belo sempre permanece.

terça-feira, junho 26, 2007

Amarra teu coração ao meu


Guardião da entrada da igreja de Santo Adalberto, Cracóvia


LXXIX


De noite, amada, amarra teu coração ao meu
e que eles no sonho derrotem as trevas
como um tambor duplo combatendo no bosque
contra o espesso muro de folhas molhadas.

Noturna travessia, brasa negra do sonho
interceptando o fio das uvas terrestres
com a pontualidade de um trem descabelado
que sombra e pedras frias sem cessar arrastasse.

Por isso, amor, amarra-me ao movimento puro,
à tenacidade de que em teu peito bate
com as asas de um cisne submergido,

para que às perguntas estreladas do céu
responda nosso sonho com uma só chave
com uma só porta fechada pela sombra.


Pablo Neruda
in "Cem Sonetos de Amor"
Tradução de Carlos Nejar

Estava a passear pela Praça Maior da Cracóvia naquela fria tarde de domingo, a olhar para os prédios do entorno à velha praça medieval e a calar talvez mais fundo as lembranças e os sonhos, mas mais alto calou-me a figura de dois guardiões, que na humildade de seu segredo tinham toda a virilidade do mundo, eis que lá há duas estátuas de leão a guardar uma das entradas da igreja de Santo Adalberto.
Um, mais que o outro, tomou a minha atenção, tinha a cabeça entre as patas e parecia estar entre a paciência e a resignação, a conter todo o impulso de seu coração selvagem na calma espera que lhe desafiassem. Guardava, assim julgando por um primeiro e fugaz olhar, um jeito algo tímido e triste e que podia inspirar assaltos de desafiadores, lado outro, ainda assim era um leão e mesmo que casmurro e quieto por aquele tempo, era capaz de rasgar ferozmente a presa na queda, fazer sua alma fugir com um urro e em sua magestade guardar sempre a entrada da igreja de Santo Adalberto, subitamente não era mais uma estátua de leão, era um leão.
Impossível não compará-los com os quadro gigantescos leões de bronze a guardar a Coluna Nelson, na Trafalgar Square, Londres.
A famosa praça londrina só se completa pela figura daquelas feras, postas com a cabeça no horizonte e a lançar olhares ameaçadores, mas a mim não metiam medo nenhum e nem nenhum outro sentimento, afinal é possível que lhes falte qualquer coisa como um pouco de introspecção e até beleza, mas também de humildade. Preferi a simplicidade dos leões polacos.
Na minha infância havia um leão, eu o vi muitas, sempre que íamos passear no parque onde havia um pequeno zôo cá na minha terra.
Ele se chamava Golias e tinha péssimo humor e cheiro e teria sido comprado pela prefeitura de algum circo que tava a falir. Dele, dizia-se e pela cara de mau eu nunca contestei, que procurava meios de atacar os tratadores e lançava-lhes olhares cheios de ambição. Pobre leão que é culpado de querer comer carne fresca ao invés dos piores quartos de boi que saem do matadouro municipal!
Foi lá bem encarcerado, a ver natureza por todo lado e tendo a jaula junto à ribanceira. Era triste com longos olhos negros que pareciam sempre ter acabado de chorar e não poderia ser diferente, se aceitasse feliz aquilo não seria um leão.
Assim, na humildade do que podia ser feito, ele urrava e urrava muito alto para avisar a todos que ainda estavam lá, que não os subestimassem, que merecia carne fresca de primeira classe e não as ossadas que lhe arranjavam, que cuidassem bem das trancas da sua jaula e, no caso dessa falhar, das da porta de casa!
Já no início desse ano voltei ao zôo mas... qual-o-quê! Nem mais leão e nem mais cabritinhos monteses, acabaram com aquilo tudo... Gestão nova na prefeitura, onde não acharam que valia manter os bichos. Quando lá estive tinha se tornado apenas um jardim e berçário de mudas, estranhamente rodeado por celas fantasmagóricas dos antigos moradores.
Fiquei a me perguntar onde tinha ido o leão... que teria sido feito dele, se afinal tinha se libertado, voltado à carreira circense ou (pobre bicho) sido sacrificado... o que quer que fosse, era certo que manteve sua estirpe até o fim e houve muita coesão nesse pensamento.
Como se lá da Cracóvia uma estátua tivesse ganhado vida para reafirmar em atitude toda a transmutação daquela poesia, percebi ainda na Praça Maior que onde quer que esteja ou por mais difícil que tudo pareça, um leão é sempre um leão e pior para aqueles que acharem que não!

Que Deus nos ajude.

quarta-feira, junho 13, 2007

Bom dia, tristeza!

Lembra, Quelzinha?

Bem à maneira da gente que habituou-se a acordar muito cedo toda a vida e depois que isso não tem mais necessidade continua com o hábito, ligou o rádio a vizinha dona Margarida às habituais 5:40 horas da manhã.
Veio de lá o som de um hino que fez arrepiar todos os pêlos do corpo:
.
"Vamos todos cantar de coração,
A cruz de malta é o meu pendão!
Tu tens o nome do heróico português,
Vasco da Gama tua fama assim se fez!
(...)"

A vizinha anciã e eu partilhamos o amor pelo futebol, especialmente por esse clube cheio de qualidades notáveis e que mais agora no fim de semana deu-nos uma pequena alegria. Afinal o nosso Vasco da Gama, grandioso clube, vitorioso na terra e no mar, havia assumido a liderança do campeonato brasileiro no Sábado e numa homenagem singela, assim começou a sessão desportiva do primeiro noticiário da rádio Cidade FM.
Sorri e a pequena lembrança de alegria suavizou por um instante a anunciação do adeus que houve no fim de semana, quando houve os últimos concertos de outra instituição carioca da minha mais alta estima, os Los Hermanos.
Tocaram na Fundição Progresso, no boêmio bairro carioca da Lapa, na Sexta-feira e no Sábado, ambos os concertos com bilhetes esgotados com mais de duas semanas de antecedência.
Por serem as últimas apresentações da banda, gente de todo país compareceu, do norte ao sul, caravanas formaram-se e, digamos assim pela devoção dos fãs, peregrinaram à Cidade Maravilhosa. Cheios de pena mas também de ansiedade, foram cantando junto da banda os hinos do amor, da contemplação, da separação, do acaso, do horizonte distante que a gente quer tanto ver e que teima tanto em sumir da vista.
Levaram cartazes, choraram, gritaram: "Não parem, esqueçam isso de recesso, quem dá tempo é relógio!", como um namorado que não aceita a separação, mas é tudo inútil, sentença assinada. O fato é que cansaram-se daquilo. Agora é questão de minutos, chega a última música do último concerto: "Todo carnaval tem seu fim", dificilmente outra poderia ser mais apropriada. E foi o fim e brincamos de ser felizes.
Com o pensamento pleno do significado dessas coisas, refleti como foram maduros de escolher fazer o mais difícil mas que era o mais honesto com eles mesmos. Não deixei entretanto de ficar triste, de uma tristeza própria de quem se despede de um amigo que vai embora e Deus sabe se volta. Foram-se e levaram as guitarras consigo.
No Domingo de ressaca, fiz piada de tudo e nem considerei muito bem, mas à noite coisas se passaram e do infinito do mistério vieram sonhos maus, cheios de caretas e gente bêbada a chorar pelos cantos, de donzelas envelhecidas e piadas sem graça nenhuma, eu tentava me levantar da mítica mesa de bar onde era acompanhado por estranhas figuras e logo quando levantava para ajeitar meu belo fraque e assentar a cartola na cabeça, apanhavam-me com uma bengala gigante e davam-me uma dose dupla de whisky com gelo: "Vamos celebrar a tristeza, poeta!"
Quando amanheceu ao som do hino do Gigante da Colina eu fiquei algo consolado da angústia de dizer adeus, e com um sorriso surreal na cara, olhei deboxadamente para o teto do quarto e dei bom dia à tristeza.

terça-feira, junho 05, 2007

Um olhar, um encontro


Cá em cima da escrivaninha não pude deixar de ignorar a matinal, fortuita e curiosa posição do pequenino dragão da Cracóvia com cara de tonto e do belo anjinho de gesso londrino, todo pintado à mão, a olharem-se.
Essas coisinhas, que servem para lembrarmos dos lugares por onde passamos, que sempre curti ter à vista pelo presente que são de amigos queridos, excederam um bocado a sua natureza e me despertaram um sorriso novo.
Em parte, as expressões vivas são mérito da inspiração dos criadores para fazê-los indivíduos, mas a cena dos dois a se olhar criou um conjunto belo onde não houve participação voluntária de ninguém, ao menos acredito que a faxineira tenha refletido muito para colocá-los nessa posição.
Entre aqueles olhos que não guardam nem nunca guardaram nenhuma vida biológica, quanta presença de meiguice e de encanto ao voltar a maré alta da minha surpresa pelo inusitado.
Diante dessa cumplicidade, levantaram-se algumas lembranças do calabouço fundo! Quanto olhar retido na reflexão de um encontro falhado, na esperança de remissão de uma mágoa de amor, na último sorriso antes da partida, aquele olhar era o que via... Quando dois seres se olham eles também se encontram um no outro, eles encontram-se no despropositado de si mesmos.
Nesses olhos, nada há da dureza que desprendem o modo de olhar dos chichisbéus de mulheres, dos falsos chimangos, dos calabares e dos sinecuros, dos homens da sigla e da cifra: não há nenhuma falsa pureza, pois tudo quanto é legítimo não é forçado.
É assim que a vida por vezes concede alguns olhares lindos por puro acaso, o que os faz serem ainda melhores: uma gentileza inesperada, um canto melodioso, o ato de gratidão desinteressada e a carta de amor cheia de esperanças, tudo isso dão grandes e belos olhares de acaso e qual paixão não despertam! Olhares assim são pais ausentes de grandes loucuras!
Hoje, dessa maneira à minha frente, as inocentes miniaturas, a darem-se assim um olhar dos mais circunstanciais e surpreendentes, parecem caídos de amor, perdidos no mundo, doidos por um beijo ou mesmo por alguém que lhes diga: "vivam isso sem medos, sejam felizes!" Mas os pobrezinhos não podem fazer nada diante da sua condição de seres inanimados, mas o mais curioso de tudo é que mesmo os seres animados, quando deparam-se com um olhar assim, por vezes agem como os meus amiguinhos aqui na escrivaninha, não agem e, numa triste similaridade com eles, ficam um pouco mais inanimados.
Como me aborrece a falta de iniciativa, coloquei cada qual no seu canto, cada qual a olhar numa direção, cada qual na sua solidão e não há mais nenhuma expectativa, nenhum sonho partilhado, nenhum olhar, não há nada. De repente, não mais que de repente, são de novo apenas dois seres inanimados.

quarta-feira, maio 30, 2007

Coisa linda

Filipa e seus sequazes
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Fico a pensar no que consistem as publicações póstumas dos poetas que costumam chamar de "poesias coligadas" ou "poemas póstumos", esse nome é sempre bizarro, pois dá a entender que foram escritos depois da morte... enfim, fico a considerar esse tipo de publicação: se o poeta quisesse que viesse a público ele o teria feito em vida, então por que a sanha dos herdeiros em publicar os guardanapos escritos na adolescência?
À parte da ganância dos herdeiros de ter mais uns cobres no bolso à custa de trabalho nenhum, as obras publicadas postumamente costumam ser muito úteis aos estudiosos da obra do autor, porque servem para confirmar ou revelar o oposto de uma ideologia poética.
Carlos Drummond de Andrade teve seus poemas eróticos publicados postumamente e houve algum constrangimento por parte dos críticos que sempre defenderam a nobreza do seu estilo sóbrio e limpo de escrita, embora esse constrangimento não se justificasse muito, já que mesmo com tema controverso para alta poesia, ainda assim era alta poesia, com a habitual qualidade e inteligência deste grande poeta mineiro. Essa parte de sua obra só não havia sido publicada em vida porque Drummond era muito reservado e tímido, assim tinha pavores de ter de dar entrevistas sobre o livro, expondo sua intimidade.
Evidentemente que nem todo material que ficou inédito é bom, costuma acontecer mesmo o contrário, ou seja, são os poemas excluídos, os preteridos aos que foram ao prelo, o que nem por isso quer dizer que são ruins e aqui há uma sutileza maravilhosa: foram preteridos pelo autor, não pelos leitores.
A deliciosa descoberta das "Poesias Coligadas" de Vinicius tem movido todos os meus pensamentos já há uns meses e quanto mais leio, mais profundamente me encanto, aliás, esse poeta é como o meu pai: nunca me decepcionou e fez isso sem esforço nenhum.
A virtude desses poemas inéditos quando da morte do poeta é que refletem um Vinicius por vezes mais despojado de medos formais e absurdamente carinhoso e lírico, não que não fosse na obra prévia, mas nas coligadas há poemas que foram feitos para as amadas e que ele nunca considerou publicar porque eram muito pessoais, mas passado tanto tempo, todos os envolvidos nas suas sepulturas, é bom que tenhamos acesso a esse material. Outros poemas devem ter simplesmente ficado perdidos por muito tempo e acabaram ignorados de outras edições ou talvez ainda não parecessem adequados para ir em nenhuma das edições e cabe-lhes muito bem o conjunto de poesia coligada, já que o que as faz um grupo é sua condição de ter ficado de fora das livros publicados.
Há poemas que me emocionam sempre que leio e que já estão entre os meus preferidos, como o encantador "Redondilhas para Tati" e o introspectivo "Na esperança de teus olhos" que é uma coisa linda, e o doce e meiguinho "A primeira namorada".
Ainda no mês passado havia uma pendência judicial que impedia novas edições dos livros do grande Manuel Bandeira e pareceu-me mesmo uma dessas lides que tinham de ser resolvidas da noite para o dia, porque privar o povo da poesia é uma privação das mais duras de suportar e o Bandeira é muito querido, tanto que se forem aos sebos vai ser difícil achar algo dele: ninguém se desfaz dos livros. Agora imaginem o que é ser privado da poesia de um poeta desde sempre, nunca vier a conhecê-la? Seria tão triste quanto nunca ter conhecido alguém que seria certamente nosso amigo ou nunca ter dito à namorada como ela é linda... um encontro falhado com a poesia. Talvez só por isso eu ainda considere algo útil essas publicações póstumas, ao menos as do Vinicius, é ou não é, Coisa Sardenta?

segunda-feira, maio 21, 2007

Um coração a sangrar

"Os poderosos podem destruir uma, duas, ou até mesmo três flores, mas jamais deterão a primavera"
Che Guevara


Para mim é impossível olhar o mapa da América Latina sem lembrar da feliz alcunha que Eduardo Galeano usou para referir-se ao nosso continente: um coração eternamente a sangrar.
Nunca antes da leitura do clássico da literatura de jornalismo político, "As veias abertas da América Latina’, da autoria de Galeano, tinha percebido a grandeza e a robustez do mito que meu continente corajosamente encarnou e encarna: à dura missão de ter tomado para si o sonho iluminista de liberdade, igualdade e fraternidade não poderia nunca mensurar as vezes em que seu grito de horror face à injustiça fora impiedosamente sufocado no decorrer destes 5 séculos de tenaz existência.
Desde o Rio Grande até a Terra do Fogo, fomos marcados pela sina do sonho, da fantasia, da traição pelo covarde e da capitulação ao inimigo que nos ambiciona o corpo e as virtudes, mas mesmo depois de tantas mentiras, depois de tantas traições, de tantas lágrimas, seguimos irremediavelmente como adeptos do sonho, como se não houvesse para um latino a hipótese de desistir do seu sorriso e da sua esperança, o que certamente é difícil de perceber a um estrangeiro, mas que para nós faz sentido instintivamente.
Quando os movimentos de esquerda ganharam força na América Latina a partir do final dos anos 50 e principalmente nos anos 60, não havia propriamente um levante para se instaurar uma grande União Soviética latina, mas sim um desejo unânime de igualdade social e democracia efetiva, em substituição aos velhos sistemas de dominação política das aristocracias tradicionais, com suas eleições forjadas e seus governantes submissos a interesses particulares e dos estrangeiros, enquanto o interesse do povo latino-americano ficava à mercê das sobras que houvessem, a tentar a felicidade apenas com o surrealismo ocasional de suas vidas, o culto aos grandes futebolistas, as festas religiosas e com um pouco de sorte uma pequena querida a sorrir-lhes.
As grandes veias abertas da América Latina foram notadas pela juventude filha de sua influente classe média quando deparou-se com questões como desenvolvimento sustentável, recursos naturais e remessa de lucros para o estrangeiro, entre outras fontes de mazelas. Os recursos que faltavam ao Estado para promover inclusão social dos pobres, para investir em educação, para emprestar aos que sonhavam em ter seu negócio, ou mesmo para investir em infra-estrutura, como boas estradas e bons portos, escapava entre os dedos de uma mão que assinou indulgentemente generosas anistias fiscais para empresas estrangeiras explorarem o inesgotavelmente rico subsolo do nosso continente, uma mão que tomou suborno para censurar a imprensa e fechar partidos políticos, uma mão que foi apertada pelos seus senhores em cumprimento pela opressão da inteligência e da liberdade latino-americanas.
Houve, entretanto, quem prezava imenso pela nossa terra para encarar todos esses crimes e querer levar a vida como se nada estivesse a acontecer, houve gente que não se contentou em ouvir mentiras e ser covarde, houve gente que mereceu ser assim chamada.
Assim, houve luta armada contra as ditaduras e contra a opressão de maneira geral em Cuba, no México, na Argentina, no Chile, na Bolívia, no Brasil e em mais tantos outros lugares onde heróis anônimos resolveram gritar que nada daquilo estava certo e que era tempo de nos unirmos para fazermos valer nossa liberdade de decidir por nós mesmos, de pensarmos na nossa felicidade, para que pudéssemos sonhar com um futuro de prosperidade e mais que tudo, com um futuro de honradez política e social.
Muitas dessas lutas foram brutalmente sufocadas e mesmo que algumas vezes tenha havido sucesso nos seus propósitos, não é isso que fez umas maiores ou mais nobres que as outras. É sempre a coragem de sermos quem somos que nos faz livres, não um papel onde estão escritos direitos, ou nossos bens, ou a trama sofisticada de interesses que reúne pessoas que se chamam umas às outras de amigas.
Foi a covardia que nos assassinou muitas vezes. Mesmo que em qualquer campo da convivência humana sempre exista os que se protegem atrás das pedras e esperam passar a fera e outros que se lançam contra ela, porque não querem passar a vida a comer raízes e restos do chão e precisam mesmo de carne, não é sensato deixar escapar a lição de que aos fracos cabe precisamente a mediocridade e a submissão.
Hoje temos nossas jovens democracias cheias de uma ânsia imensa de recuperar o tempo perdido, de incluir os pobres nos grupos de consumo, de prover educação a todos e em todos os níveis, de integrar os países irmãos, de valorizar a nossa cultura e o nosso povo como melhores expoentes da nossa verdade, de tudo que temos para dar ao mundo, não mais o sangue das nossas veias abertas, mas sim o sorriso confiante e afetuoso que lançamos a um futuro quando as duras lições do passado serão lembradas apenas pelo estudo da história.
Um coração sempre apaixonado e corajoso em honra aos grandes leões da América Latina.

domingo, maio 06, 2007

Jeito juizforano de amar

"Flores no azul", Manuel Santiago, 1969, acervo do MMP

Íamos muito animados, um velho amigo de faculdade e eu, pelas ruas do Alto dos Passos, até que resolvemos ir ao Cine Alameda e para minha surpresa havia lá uma moça sentada junto às mesas da cafeteria que assim que nos viu saltou da cadeira para um abraço e um beijo cordial, nem mais e nem menos. Senti-me mal com aquilo a princípio, pela gentileza fria, mas depois percebi que não era por mal, era apenas como era para ser. Não havia mais nada naqueles olhos depois de 2 anos de um silêncio algo grosseiro que nos raspou dos ossos um do outro. Antes havia um mundo inteiro em qualquer banalidade onde colocasse os olhos e dedicasse um pensamento, uma palavra sua e havia certeza, um suspiro seu e havia então ainda uma esperança na doçura do mundo.
Numa tarde ordinária daquele tempo em que andamos juntos, resolvi visitá-la depois de deixar o campus e cheguei à sua casa num início de noite outonal, uma dessas encantadoras noitinhas de maio de Juiz de Fora. A sua mãe recebeu-me na porta e avisou: "ela queimou-se com água fervente, tem cuidado" . A namorada estava na sala a ver TV, os olhos algo vermelhos e na boca um beicinho ainda infantil a espelhar o tanto daquela dor continuada somada ao susto que levou. A queimadura não tinha sido séria, apenas um pouco de água espirou da panela de pressão e queimou-lhe superficialmente a pele do seio esquerdo. Naquela hora já havia tomado todos os cuidados, inclusive aplicado uma pomada sobre a parte ferida. Com o coração apertado de vê-la assim tão frágil, tão amedrontada, pedi-lhe para dar um beijo e ela sorriu-me assentindo, então beijei com todo cuidado para que aquilo não doesse mais. Não tardou, despedi-me e mais tarde liguei para conversar um pouco e dar boa noite. Dormi a pensar sempre como poderia fazer com que ela se sentisse melhor. Como se estivesse a arder o meu corpo inteiro, queimou de repente apaixonado o meu coração. No dia seguinte liguei para sua confeitaria favorita e pedi para fazerem a torta de nozes e avelãs que a deixava nas nuvens. Depois das aulas, que freqüentei sem nenhum expediente, fui correndo para a porta do seu colégio apanhá-la. Surgiu assim que a sineta tocou e ao ver-me abriu seu grande e generoso sorriso de surpresa e avançou junto com uma amiga na minha direção e beijou-me com uma exclamação grande do meu nome e fez-me uma festinha no cabelo. Acho que nunca antes desse momento tinha me dado conta do quanto dela já havia em mim, do quanto éramos ligados, não era mais essa treta de amor romântico, éramos os melhores amigos: eu cuidava dela e ela de mim. Fomos à confeitaria e paguei-lhe um pedaço da torta de nozes, conversamos docemente sobre qualquer tolice e foi maravilhoso vê-la de novo a moça equilibrada e bem temperada que sempre foi, ainda com a queimadura a incomodar, mas já senhora de si, independente dos meus cuidados, embora gostasse deles: eis a chave de tanta harmonia.
Nesse último encontro, vi uma moça mais madura e mais sedutora, mas a sorrir ao mundo o mesmo encanto de sua inquebrantável pureza e a deslumbrar como sempre com seu porte de princesa do Piemonte. Como pareceu duro tratá-la com a necessária frieza, mas não cabia nada mais que isso, não há nada além disso: nem amor, nem saudade, nem ressentimentos, mas ao mesmo tempo como há em cada qual tanto de cada um!
Aquela moça que ficou lá sentada era a minha grande amiga.

terça-feira, abril 24, 2007

Perdão apaixonado

O cego rabequista, José Rodrigues, 1855

Subia a Alferes Chiquinho com a costumeira disposição que me move nos domingos de manhã, à perspectiva de ter com os parentes o nosso almoço bento na casa da avó Adalgisa. Hábito imemorial, essa assembléia é no melhor estilo da minha família, com muita cortesia, assuntos amenos e sorrisos, bem à moda da minha avó, essa sábia anciã cheia de garbo e elegância.
Já perto do destino, avistei uma pequena figura na varanda, apoiada no balcão que mirava a rua e num instante encontrou-me e fez-me seu alvo, era a dona Ziza, claro. Acenei de longe e apressei-me para subir as escadas.
Já perto dela, pareci ler nos seus olhos: "malandro, vais nos deixar de novo!", mas não era isso, numa quase melancolia que não é nada típica dela, pareceram dizer-me "meu filho, será que te volto a ver depois dessa viagem?". Por certo era a mesma coisa, mas com impressões bem diferentes. "A sua bênção, avó", pedi como venho pedindo deste que aprendi a falar, e ela, generosa como sempre, deu-ma.
Naquele instante é que ficou mais claro como era cara a decisão de partir de novo, como havia um preço superior ao aparente e esse é justamente o fazer sofrer quem nos ama.
Eu por mim, resolvo-me muito bem com as minhas dores e saudades, porque compreendo as razões da minha empreitada, seus fundamentos, todo segredo da paixão que me move, já que não sou de desistir do que acredito, mas a eles não é assim tão claro, como não poderia deixar de ser, e consideram que uma carreira aqui é que valia, que há muitas oportunidades e que os bens precisam de alguém que lhes dê governo, mas o facto é que são todas excusas para não perderem o filho, o neto, o sobrinho, o amigo, o irmão.
Assim, gostava de poder pedir perdão aos avós, aos pais, aos irmãos, amigos, parentes, perdão ao pequenino afilhado que já agora aponta para tornar-se um homenzinho de bem, mas o que tem que ser, tem que ser, e o que tem que ser tem uma força incrível, como bem me disse um moçambicano quando estive no Algarve.
Amparados por vezes nas minhas palavras pontuais e amigas, foi quase desleal cativar os amigos de novo para agora deixar-lhes, foi mesmo uma trama intrincada oferecer aos parentes de novo um convívio que já era saudoso para em seguida tirar-lhes e por tudo isso, eu espero mesmo que me perdoem.
Eu, que sou um experto em partir, estou para experimentar em poucos dias a sensação de ser deixado, já que meu querido Daniel vai para Brasília, vai começar uma carreira no serviço público lá ou para onde quer que o mandem, ainda não se sabe. Certo é, entretanto, que aqui vai ficar um vazio imenso, que eu já consigo prever em todo lado onde costumamos andar e onde pode-se encontrá-lo, nessas horas talvez exista uma espécie de egoísmo que eu possa compreender, o de ter por perto quem se ama. Nenhum querer para si é tão próximo do amor de verdade, mas ainda assim não se justifica e eu sei que se gostamos mesmo de alguém, o bom é vê-lo feliz a fazer o que gosta e acredita, a estar com quem realmente ama, na terra que escolheu para si.
Assim, não foi pela falta de alegria da mãe ou as anedotas disfarçadas do pai que compreendi o alcance do meu crime, mas sim pelas palavras interditas da Dona Ziza e essa absurda solidão que significa ver partir quem nos faz ser quem somos.

sábado, abril 21, 2007

Liberdade



Hoje é o Dia de Tiradentes, o que vale dizer que é o dia de Minas Gerais. Eu, que antes de ser brasileiro, sou mineiro, tenho muito orgulho das Minas Gerais, da sua gente, das suas cidades, dos seus campos, dos seus ares de eterno outono apaixonado.
Nos versos de Guimarães Rosa, a mineiridade:

Ser Mineiro

Ser Mineiro é não dizer o que faz, nem o que vai fazer.
É fingir que não sabe aquilo que sabe,
É falar pouco e escutar muito,
É passar por bobo e ser inteligente,
É vender queijos e possuir bancos.
Um bom Mineiro não laça boi com embira,
Não dá rasteira no vento,
Não pisa no escuro,
Não anda no molhado,
Não estica conversa com estranhos,
Só acredita na fumaça quando vê fogo,
Só arrisca quando tem certeza,
Não troca um pássaro na mão por dois voando.
Ser Mineiro é dizer UAI,
É ser diferente e ter marca registrada, é ter história.
Ser Mineiro é ter simplicidade e pureza, humildade e modéstia,
Coragem e bravura, fidalguia e elegância.
Ser Mineiro é ver o nascer do sol e o brilhar da lua,
É ouvir o cantar dos pássaros e o mugir do gado,
É sentir o despertar do tempo e o amanhecer da vida.
Ser Mineiro é ser religioso, conservador,
É cultivar as letras e as artes, é ser poeta e literato,
É gostar de política e amar a liberdade,
É viver nas montanhas, é ter vida interior.
É ser gente .

Para honrar nossa história, devemos reverenciar aqueles que vieram antes de nós, que nos deram nossas terras, nossos costumes, mas sobretudo aqueles que moldaram pelo exemplo de vida e morte o nosso caráter de amor à liberdade e à justiça.
No dia de hoje devemos lembrar-nos de quem deu a vida para não negar sua fé de que somos um povo livre e soberano, de que ninguém deve decidir por nós e que o amor a um ideal é maior e transcende a própria vida.
"Numa manhã de sábado, 21 de Abril de 1792, Tiradentes percorreu em procissão as ruas engalanadas do centro da cidade do Rio de Janeiro, no trajeto entre a cadeia pública e o largo da Lampadosa, atual praça Tiradentes, onde fora armado o patíbulo. Executado e esquartejado, com seu sangue lavrou-se a certidão de que estava cumprida a sentença, e foi declarada infame sua memória. Sua cabeça foi erguida em um poste em Vila Rica, os restos mortais foram distribuídos ao longo do Caminho Novo: Cebolas, Varginha do Lourenço, Barbacena e Queluz, antiga Carijós, lugares onde fizera seus discursos revolucionários, arrasaram a casa em que morava e declararam infames os seus descendentes." In Wikipédia – A enciclopédia livre, http://pt.wikipedia.org/wiki/Tiradentes.
Tiradentes foi para a forca de cabeça erguida, de chin up, a mirar nos olhos seus julgadores covardes, convencido de que não morreria em vão.


Libertas quae sera tamen!

sábado, abril 14, 2007

Crônica histórico-passional para Gabriela


Situado no extremo ocidente do continente europeu, Portugal é a terra que foi bravamente defendida por Viriato contra os romanos no século II antes de Cristo, é a que foi tomada dos mouros por Afonso Henriques no século XII, o país que pioneiramente estabeleceu uma rota comercial para as Índias em 1498 com Vasco da Gama e, entre outros feitos notáveis, foi o país que descobriu o Brasil em 1500 numa expedição chefiada por Álvares Cabral e colonizou-o até 1822. Bem, isso acho que todos sabem bem, está nos livros de história e é provável que qualquer um que teve instrução saiba, mas existe um Portugal oculto, oculto nos sentimentos e no próprio Brasil, que não se alcança tão pragmaticamente.
Antes de revelá-lo, cumpre anotar que procurou-se (e procura-se) apagar o legado português no Brasil o quanto é possível. Seja na literatura, seja na música, seja nas leis e até na visão absurda de alguns de desnaturar o idioma, ou culpar eternamente Portugal pelas chagas nacionais, em tudo vê-se alguma submissão na presença portuguesa e uma ojeriza a tudo que seja português, uma impressão que sinto que vem se apagando pela grande aproximação que tem se operado entre os países e seus nacionais.
Há episódios que construíram essas diferenças entre os dois lados do atlântico, no que vale lembrar um importantíssimo que passou-se na minha terra: a inconfidência mineira. Portugal reprimiu a insurreição com mão de ferro, o líder Tiradentes foi esquartejado e partes do seu corpo foram espalhados pela estrada real, sendo que sua cabeça ficou exposta por muitos dias na praça central de Vila Rica, atual Ouro Preto. Sem o ouro brasileiro Portugal estaria em péssima situação com credores e com a economia interna, basta lembrar que foi o nosso ouro que financiou a reconstrução de Lisboa, destruída por um terremoto na metade do século XVIII. Os brasileiros, evidentemente, não engoliram nada bem aquilo, daí os conflitos. Na época da independência também houve problemas. Após o regente Pedro ter feito o Brasil independende e transformado-o logo num império, surgiram conflitos pelo seu interesse na política ultramarina, já que era herdeiro do trono português e havia temor de que unificasse as coroas e com isso o Brasil voltasse a condição de colônia. Entrou para a história a noite das garrafadas, quando os brasileiros expulsaram um grupo de portugueses de um bordel do Rio e os moradores das casas próximas todos foram lançando garrafas nos lusitanos e mandando que voltassem para a terra deles.
Foram cenas circunstanciais que não dizem nada do que realmente passou-se na relação cultural entre as nações que para mim ainda parecem uma só em muitos sentidos, sem méritos de submissão ou qualquer contexto político.
É evidente que o Brasil criou valores próprios e em muitas coisas, realmente muitas, superou largamente Portugal, mas parece-me que é justamente nas coisas em que há afinidades que estão as virtudes.
Dá-nos a história exemplos incansáveis dessas virtudes: a resistência aos invasores romanos e mouros e espanhóis fez perpetrar uma cultura de fé na ressureição da pátria, em tudo a fé nesse amor que nada pode destruir a esperança, assim como episódios de coragem incondicional, como o cerco do Porto nas guerras constitucionalistas quando o povo dessa cidade ficou sitiado por vários meses por tropas miguelistas e resistiu para fazer partir de lá a vitória final do direito legítimo...
Num dos momentos mais trágicos da história portuguesa, quando da captura do jovem rei Dom Sebastião em África, houve uma consternação geral sobre o que seria do país, já que o herdeiro do trono era espanhol e com a unificação das coroas, fez Portugal parte de Espanha, de 1580 a 1620. Acreditava-se que o rei conseguiria regressar e chegaria numa manhã de nevoeiro para libertar Portugal, entretanto, isso nunca se verificou. Nesse ano de 1580 também compadecia Camões que escreveu um poema no qual dizia que morria junto com o seu país. O futuro, entretanto, fez a redenção de ambos, mas é fora de questão que foi um episódio extremamente marcante no modo de ser do português e marcou ainda mais a cisma com os espanhóis que perdura até hoje.
Portugal cresce também nas letras, em Camões, em Gil Vicente, em Bocage, em Castelo Branco, Eça de Queirós, mais recentemente também em Florbela, Pessoa e Eugénio de Andrade: esse fabuloso portuense de adoção! Foi no rastro deles que seguiram os nossos primeiros poetas e romancistas e de onde descende a nossa literatura para hoje haver uma comunhão muito sadia, além de mútuo respeito, entre os países.
Do gênio português, feito no arquétipo da saudade, do amor ao belo e da devoção à Deus, há um tanto imenso que temos também, essencialmente a questão do amor apaixonado e da introspecção, ambos ligados à saudade, à ilusão e ao sonho, todos componetes típicos do poema 'Mar Portuguez' de Pessoa, compõe-se dos mesmos elementos a intimidade sentimental do brasileiro. Claro que houve contribuições de outros países, isso é evidente, por exemplo, no modo brasileiro de falar português: é mais musical, no que foi alterado do século XIX em muito pelos imigrantes italianos, já que o Brasil foi o país que mais recebeu estrangeiros dessa nacionalidade no mundo. Há também presença de culturas não européias, como a indígena e a africana, mas não consigo perceber com o mesmo entusiasmo dos sociólogos a decisiva e marcante contribuição delas para o caráter nacional, há sim uma participação, mas sempre marginal se comparadas ao incomensurável legado lusitano.
Nesse passo, encontra-se Portugal aqui quando se abre a boca para dizer ‘bom dia’, assim como nos momentos de aperto ou alegria quando aflora a fé ao santo de devoção, há Portugal nas ruas antigas e estreitas, nas praças, nos prédios antigos, nas igrejas, mas encontra-se Portugal sobretudo quando olhamo-nos no espelho e enxergamos ainda no nosso olhar aquela esperança corajosa dos antepassados quando para cá vieram, nas suas palavras de saudade e amor, na sua inquebrantável fidelidade e bravura, quanta nobreza herdamos: há um imenso Portugal no coração!
Assim, Gabi, fez-se nosso antigo enredo e inescapável destino, quase historiadora.

segunda-feira, abril 09, 2007

Chocolate suíço



Fez-me lembrar a Corte Suíça, em Westminster, Londres, um presente de aniversário que ganhei: uma caixa de finos chocolates suíços. Ainda não cheguei a comer deles porque isso do aniversário coincidir com a páscoa fez com que o cheiro do chocolate chegasse mesmo a enjoar... mas acho que são deliciosos, após umas semanas vou provar daquilo.
Conhecida pelo chocolate de boa qualidade, pelos relógios precisos, pela neutralidade e pelos bancos, a Suíça é muito querida dos britânicos. Em 1991 um marco com os brasões de todos os cantões suíços, além de mais um que representa a bandeira do país, foi colocado numa das entradas da praça Leicester para homenagear os 700 anos de independência do país, daí em diante esse largo passou a se chamar Swiss Court. Quanto a bandeira da suíça, vale revelar que é uma velha conhecida minha: tentem imaginar fazer um exame de desenho da bandeira do Brasil com o céu austral no lábaro aos 8 anos e vão perceber a minha inveja das crianças suíças.
É pela Corte Suíça que se tem a mais bela entrada da praça Leicester, um sítio cheio de cinemas, teatros e bistrôs, muito concorrido por cineastas, escritores e artistas plásticos, além dos estudantes e turistas, claro! Junto a esse marco gastei muitas horas a conversar com os amigos, usei como ponto de encontro e mesmo quando estava com a minha bike parava por lá para sentir as minhas saudades.
Numa dessas conheci uma garçonete grega que esperava pela irmã ali, iriam comemorar juntas o aniversário dela. Percebi daquela vez que, ao contrário do que se dá com os ingleses – não duvidem disso! – os gregos não prezam lá muito pela pontualidade, um horário estabelecido pode se atrasar até em 1 hora e meia e ainda será aceitável.
A nossa conversa foi sobre os países de origem, sobre Platão e a Acrópole, sobre Ipanema e Chico Buarque, até ela falar que era seu aniversário, o que me deu uma grande impressão e me fez sentir aliviado de não ter a perspectiva de passar o meu no estrangeiro, onde certamente ninguém se importaria com isso e também por fazer doer mais a ausência de quem se ama e em quem se ama. Sorte dela que ainda tinha ali a irmã e juntas iam vencendo as tramóias da vida de um imigrante, onde todo amor é tirado quando se sai do nosso país e nenhum é recebido quando se chega ao estrangeiro.
Quando vi que ela já estava exausta de esperar pela irmã, convidei-a para tomar uma cerveja num bistrô da praça e afinal vi que ela ficou feliz, teve significado para ela o dia de seus anos e por isso também eu fiquei muito feliz. Naquele dia ela completara 21 anos e era seu primeiro aniversário longe dos pais e amigos.
Hoje, assim de repente ao lembrar desse episódio, percebi a sorte de desfrutar um dia como esse, por ter por perto a família e amigos muito queridos e para que quem me ama tivesse esse argumento para declarar-se sem mais pudores.
Thank you all.

segunda-feira, abril 02, 2007

Coelhinho da páscoa

Coelha Juka e suas meias mágicas. All rights reserved! = )

Já montaram na praça Coronel Pacheco de Medeiros o bazar de roupas velhas para ajudar às casas de caridade, especialmente os abrigos para idosos, nas festas de páscoa.
O bazar tinha lá a moça toda empolgada a mostar umas roupas puídas, doadas por não serem mais queridas, como se fossem do estilista mais famoso e o pessoal que se aproximava procurando alguma pechincha até se deixava contagiar com aquela encenação exagerada, era mesmo como uma atriz de comédia que não espera nem um pouco ser levada a sério, era engraçada a vendedora do bazar! Os estudantes, mais ao longe, ao meu lado, riam-se a valer e também eu não pude conter muito bem.
Acho bem que procurem fazer algo, eu visitei já algumas casas de caridade e a vida que os necessitados levam é muito sofrida. Sofrem pela falta de conforto onde vivem, sofrem pela humilhação de terem de viver lá, por vezes sofrem com quem, ao invés de cuidar, maltrata, mas sobretudo sofrem pela solidão.
Vem a páscoa e vem os ovinhos de chocolate, toda gente se empolga! Eu pessoalmente fiquei muito animado com o lançamento do chocolate 'diamente negro' em forma de diamante... achei demais! Dentro dos ovos por vezes mais bombons, festa geral da pirralhada. Nisso é que me ocorreu que os velhinhos vão ter um grande jantar na sexta-feira da paixão, mas eu aposto que o que gostariam mesmo era de ganhar cada um um grande ovo de chocolate... isso sim, sentir-se parte, não se sentir alijado dessa doce celebração.
Já é pena que a caridade seja circunstancial e é tanto pior que ela não atinja o seu fim. Assim, eu proponho aqui que todo dinheiro que se arrecade nas campanhas de caridade de páscoa seja convertido em ovos de chocolate! Acho que é bom para os necessitados poder também comer chocolate, que nesse momento do ano em que lembramos que Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na cruz para nos salvar, é preciso ter em mente que o propósito foi o de nos incluir, incluir os pecadores no reino de Deus, eis então que a ressureição e a elevação de Cristo aos céus é a aceitação do pacto por Deus, é quando Ele nos readmite como filhos. Eis a grande inclusão que se deve recordar da páscoa.
Assim, meus amigos, quando estiverem a dar as suas vorazes dentadas nos ovinhos de chocolate no próximo dia 8 de abril (uma data muito bela, por sinal), lembrem-se por um instante que seja dos velhinhos solitários nos abrigos, das crianças órfãs que sonham em ganhar pais, nos chefes de família que não tem emprego e não podem colocar comida dentro de casa... pensem nas misérias do mundo, pensem em como todos esses miseráveis gostariam de ter nas mãos um delicioso mimo trazido pelo coelhinho da páscoa para poderem se sentir parte do mundo que pode consumir esses bens, para que por um instante alguma páscoa, no que vale dizer alguma esperança, possa alcançá-los.
Assim, que a senhora vendedora do bazar da praça faça muitas palhaçadas e venda todas as roupas usadas e arranje mais: nenhuma boca sem chocolate na páscoa!

terça-feira, março 27, 2007

O poema encontrado

Trouxe potentes versos de lirismo e sentimentalidade pensada, a condição de intimidade e de desejo ainda a desprender fumaça, ainda a convocar à sua verdade, a lança afiada contra o meu pescoço: eis o meu poema que encontrei por acaso. Escrito não sei bem quando, tinha me esquecido dele tão completamente que quando li pareceu um alienígena entre os escritos. Estava errado. Não se pode nunca fugir dos próprios versos.
Assim também não fugi dos teus olhos. Nunca me deixaste ir e eu também nunca quis ir de ti. Ficou assim o desejo de amor: à mercê dos factos da vida, sendo cruelmente objecto de comparação com outros valores... posto à balança como um pedaço de carne embalada no plástico - no mais cretino dos julgamentos não há culpado nenhum... há contingências que nos pedem respostas e temos de dá-las.
Vagando pela magnífica constelação que se encarnou nos teus olhos, eu conheci os mundos que criaste na tua ternura, tornei-me o teu sol para aquecer e iluminar e não me intimidei com a responsabilidade, não vale ter timidez quando a esfinge lança o enigma.
Assim percebeste os meus sonhos, as minhas aflições, beijaste-me pelo minuto que vale a vida e encaixaste o teu corpo morno como parte do mundo material que se comunica com meus pensamentos: enfim era gente de novo, tinha de novo propósito, via no mundo alegria e queria dar-te tudo. Da minha vez também percebi bem os teus sonhos de menina e amarguei como minhas as tuas aflições querendo apaixonadamente para mim as farpas que rasgariam a tua carne, sem saber das tantas que a minha ausência lhe impingiria, sem nunca mencionar as dores de saber-me de alguma maneira o teu algoz.
Cresceste em mim, pequena flor cheia de perfume, com o rubror da paixão. Floreceste quando eu disse que te amava e quando o meu abraço conseguiu guardar-te inteira.
Tu me guardaste entre as tuas coisas queridas. Eu morei ali muito bem, lutando para nunca te ferir com a minha indissociável solidão e tu magistralmente me respeitaste como nenhuma outra. Permitiste que eu calasse o meu remorso e a minha saudade inúteis, deste-me o teu amor sem pedir confidências e naturalmente dei-te o meu.
Vivemos assim nossa cândida troca de afinidades, de mínimas impressões, da minha condução e da tua obediência, da alegria simples pelas coisas mais simples... da infinita complacência que sempre houve entre nós, amiga minha. Com que lealdade eu te preferi à qualquer outra...
Eis então que encontro o poema, como um cálice que transborda, ele não se contém... das profundezas de onde eu quis tanto tê-lo destruído - a tola esperança de querer ver algum sentido na ausência, na saudade e na separação - ele surgiu para substituir a língua vulgar que se fala nas esquinas e dizer-nos em verso.
Desconsolo, angústia, medo... não há porquê destes sentimentos agora. Não é preciso martirizar o pensamento com perguntas hipotéticas, nem recorrer à saídas fugidias que não levam a lugar nenhum... é preciso querer um coração calmo e disposto à humildade para que tudo não seja ainda mais difícil, para que saibamos que caminho tomar, para decidirmos juntos.
De qualquer forma, o amor sempre fica, como ficam os nossos sorrisos na memória e é assim que quero-te sempre... amada.

terça-feira, março 20, 2007

Não foi em vão

A minha prima Elza devolveu-me o meu volume do "Romanceiro da Inconfidência", de Cecília Meireles, para minha grande alegria. Não que a Elzinha fosse ficar com o livro para sempre, claro que não, mas é bom rever os amigos e esse um é um amigo e tanto.
Assim se lê contra-capa: "é um dos mais belos livros de poesia da literatura brasileira. Seus admiraráveis versos, dotados de tanta densidade dramática, fazem dele um poema de poderoso sentido coletivo. Desentranhado da história e regado pela sensibilidade apurada de Cecília Meireles." Bem, depois duma descrição dessas ficava difícil não comprar o livro! Se bem que do que é seu não se fala mal, mas mesmo assim sabia que o auto-elogio não era pra vender, era pra valer mesmo.
Em consideração ao tema, é sempre bonito ler boa leitura sobre a Inconfidência Mineira, tema pelo qual tenho mto carinho, afinal, foi uma revolução que se deu na minha terra e que lançou luzes para todo o país e para sempre. A lição da coragem contra a tirania, da honra contra a vilania, do herói que fez-se assim sem matar, apenas pela postura de luta pelo ideal, essa povoa o imaginário e os sentimentos do povo mineiro com muita intensidade.
Na poesia fica ainda mais bonita a história do Tiradentes e de seus sequazes na tenaz empreitada de fazer da terra do ouro uma terra independente, assim também é escrachada com mais vigor, a ponto de termos vergonha pelos outros, a traição de Joaquim Silvério, o traidor. Ainda hoje é comum chamar a um traidor de Joaquim Silvério dos Reis, inclusive é uma espécie de grave chingamento, pela sutileza histórica do nome. Os mitos permanecem vivos entre nós e são mesmo a nossa própria identidade.
Imagino a indignação que moveu aqueles homens a ponto de tramarem uma revolução para libertar Minas Gerais de Portugal, o que equivaleria a ter para si todo o ouro que os portugueses levavam com a derrama (a cobrança de 25% de tudo o que era encontrado nas minas), além de terem poder para conduzir com liberdade a política da terra, o que equilvaleria a instaurar a democracia e abolir a escravidão, fazer reforma agrária e promover o conhecimento como valor superior a uma fé fanática, estavam inspirados pelos ideais iluministas que varreram as mentes do mundo de então.
Embuídos de tantos ideias, foram avante encontrar o seu destino e é pena terem sido traídos e impedidos de fazerem real o sonho, era mesmo curioso se Portugal tivesse perdido o Brasil naquela altura, de certeza que as coisas não ficariam muito bem lá no Reino, sempre dependente da riqueza da sua mais abastada colônia. E por aqui era a oportunidade de começarmos mais cedo uma história ditada por nós mesmos, mas não vale lamentar, é preciso ver que os feitos grandiosos são engendrados de tentativas assim: sinceras.
Hoje em dia, deparamo-nos com muita gente que faz as releituras da história e vêem a Inconfidência como uma mentira, mas o dizem por opinões e conclusões infundadas antes de o fazerem pelos factos, o que torna uma tolice, uma grande tolice desacreditar por desacreditar como fazem. Deviam antes ler o "Romanceiro da Inconfidência" e aprenderem que os sonhos valem a vida porque dão sentido a ela, como bem sabiam aqueles que nos deram o nosso país, e por serem de todo coração justos e honestos é que não foram, bem como não são nunca, em vão.

quinta-feira, março 15, 2007

Dia da mulher

Passou-se há pouco o dia da mulher, dia 8 de março. Eu nunca gostei desse dia, não por a mulher não merecer, mas porque acho que é muito pouco um só. Nesse mesmo raciocínio, todos os outros são nossos, são dias do homem, o que serviria apenas para demonstrar um brutal machismo: 364 X 1.
Brincadeiras ocasionais à parte, o 8de março é homenagem às operárias americanas que, por protestarem por condições de trabalho e salário através de uma greve, foram trancadas, portas e também janelas, e queimadas vivas na própria fábrica onde dia a dia despendiam de 12 a 16 horas de labuta para ganharem o pão. Isso no longínquo ano de 1857.
Talvez aí o início de um processo que culminaria na revolução feminina dos anos 1960 e com o alcance de condições iguais entre os sexos.
À parte dessa história política toda, eu curto o dia da mulher porque ele representa o dia em que devemos lembrar com ainda mais carinho de todas as mulheres que fazem parte da nossa vida.
Como eu seria se nunca tivesse tido a candura da minha avó, ou a alegria da minha mãe, ou doçura e compreensão das minhas amigas e namoradas? Não seria o mesmo, com certeza, não sei se mais ou menos sensível ou doce, porque isso é da natureza humana, não de um gênero, mas sem elas eu certamente seria menos feliz, isso não há dúvida.
Alegrei-me da vez que beijei quem me amava de todo coração, e foi também inesquecível quando me abraçaram e choraram sem ter medo do que os outros poderiam pensar ou dizer. Foi a vida propriamente o olhar de amor infinito e dedicação que uma ou duas vezes eu pude ver nos olhos da mulher. É a lembrança que vem fazendo valer todos os sofrimentos o beijo na testa que sempre ganhei da avó por ser bom menino e por ter coragem. É propriamente a minha fé em Deus a certeza dela de que Jesus morreu na cruz para nos salvar e que assim vale respeitar a todos e tentar amar a todos. É propriamente a beleza do mundo o sorriso generoso e sempre jovem da minha mãe, é a semente de toda a minha rigorosa e clássica noção do belo.
Sem amor, sem carinho, sem fé, sem beleza, que triste e duro lugar seria o mundo... e mais, como viver sem o cheiro do cabelo delas, sem a maciez da pele, sem os olhos poderosíssimos a nos atirar torpedos, sem a infinita fragilidade que não deve nunca ser confundida com fraqueza? Impossível considerar.... mas por vezes é a abstinência que nos mostra mais claramente o valor das coisas, daí vale o exercício! Afinal, nem tão irreal assim é essa perspectiva, haja visto a quantidade de mulheres que querem ser homens no comportamento, o que é, para além de feio, muito triste.
Que não seja preciso ficarmos sem as belas, doces, amabilíssimas mulheres que nos fazem ser quem somos para só depois irmos chorar! É por isso que é sempre justo e necessário dar de volta às mulheres tudo que elas nos dão e em nada faltar-lhes, especialmente no amor e na confiança.
Mulheres do mundo: perseverem no carinho, na pureza e na doçura que orbita no seu mito que cá nos cantos perseveramos na crença de um mundo menos bruto, malicioso e hostil.

sábado, fevereiro 10, 2007

Vilania das vilanias

Há alguns anos, quando era membro ativo do meu capítulo, havia uma preocupação grande em formar os neófitos nos princípios da ordem, mais que tudo, alertá-los para as vicissitudes do mundo, dar-lhes armas não para se defenderem delas, mas para combaterem-nas e destruí-las.
Assim foi que, quando tive a felicidade de tomar posse como mestre-conselheiro, decidi instalar no capítulo um grupo de estudos da história templária e sua principiologia aplicada à Ordem De Molay. Isso porque os princípios da ordem, apesar de muito abrangentes e marcantes para formação de um rapazinho, deixam de fora princípios outros que são bons de serem aprendidos na tenra idade em que se toma paixão pelos ideais que vão dar o norte do resto da vida. Cabe a observação que isso aplica-se apenas aos cavalheiros, ou seja, quem se pauta pelo que acredita e assim se conduz, não aos hipócritas e demagogos do mundo, que vivem pela promoção da opressão e do medo.
Pois bem, dito isso, veio a escolha do nome, que pela tradição iniciática, deveria trazer a inspiração de seu propósito, 'corpo filosófico virtude suprema' pareceu excelente, não fosse o fato de que na nomenclatura maçônica o termo 'corpo filosófico' aplica-se a um de seus graus, o que nos evidentimente desconhecíamos. Azar o nosso, que não pudemos fazer o grupo de estudos funcionar com aquele nome, mas a parte da 'virtude suprema' foi uma grande lição na vida capitular de todos nós, isso porque a mais alta das virtudes para a liderança virtuosa é a humildade, a ausência do seu antônimo, o egoísmo.
Isso ensinou-nos a vida templária em muitos sentidos, quer pelo voto de pobreza dos monges, quer pela fé num ideal acima dos interesses particulares, mas principalmente pelo exemplo de lealdade e tolerância do último grão-mestre daquela ordem e patrono da nossa, Jacques de Molay.
É interessante notar que o amor filial, a reverência pelas coisas sagradas, a cortesia, o companheirismo, a fidelidade, a pureza e o patriotismo coroam uma vida juvenil limpa e honrada em direção à plenitude adulta, entretanto, é a humildade que freia as paixões da vaidade, é ela que nos lembra nossa condição de fragilidade e da relativadade das relações sociais.
Humildade para viver, essencialmente, na selva de indiferença e egoísmo em que vem se convertendo o nosso mundo. Humildade para celebrar, precisamente, a amizade pura, a finalidade maior da vida depois do encontro com Deus. Humildade para amar, incondicionalmente, quem com humildade nos ama, sem os mesquinhos interesses de outros sentimentos que podem se transvestir, mas que não são jamais o amor, ao mesmo tempo que são, certamente, inimigos de qualquer humildade. No amor, pela intensidade e importância que tem na vida, a intromissão do egoísmo é imensamente mais danosa que noutros sentimentos.
Grande vilão que é, o egoísmo se transveste nos ciúmes, na carência, no jogo de cenas, onde o que se quer do outro é alguém que nos dedique seu tempo e preocupações, alguém que nos diga como somos especiais e únicos, alguém que tenhamos orgulho de exibir como nosso, não pelo amor a ele, mas pelo que os outros vão pensar de nos virem com ele, alguém a quem não se queira dar nada, nem mesmo respeito, em paga por um amor incondicional. Desta maneira um amor impuro draga energias de quem nele crê por vezes anos a fio até que quem é vítima desse doentio comportamento, resolve libertar-se, fazer-se livre do castelo de ilusões que ele construiu associado a alguém que nada queria construir, mas sim usar. Esse sim o cancro do coração, aquele que faz alguém capaz de transfigurar de virtude o que é vício e para alimentá-lo levar consigo nesse jogo covarde os puros sentimentos dos outros.
Quem assim age, evidentemtne, nunca foi tocado pelo brilho de qualquer amizade, eis que acha-se melhor que os outros, eis que acredita-se acima e merecedor de alegrias mesmo que elas importem na desgraça alheia, pouco importa o que sentem os outros, pois o que vale é o seu umbigo, eis o centro do universo de gente assim... o quinhão ruim que alimentam com pus e mentiras e que é o grande responsável por essa gente ser privada de uma vida de paz e felicidade, sendo premiados com a triste companhia interesseira e fugaz de seus pares ou por fim com a solidão.
Aos neófitos dizíamos sempre para serem puros de pensamentos, palavras e ações, mas que não permitiessem que os fizessem de tolos, que a virtude do seu coração é que o levaria os outros a serem bons também, mas talvez não estivessem completamente protegidos à partir apenas dos ensimentos templários para combater quem lhes mente com sorrisos e um afecto tão traiçoeiros.
Em tudo é má a falta de humildade em quem tem outras virtudes, mas no amor é certamente a maior das crueldades, a vilania das vilanias.

quarta-feira, janeiro 31, 2007

Rever-te

A burocracia é uma coisa detestável, não há dúvida, essencialmente por sua faceta incoerente. Vejam, por exemplo, a falta de razão ao se ter que a transferência de prontuário da Carteira Nacional de Habilitação enquanto permissão seja impossível! O que vale a dizer que se a habilitação é por uma unidade da federação, só é possível tirar a CNH definitiva nessa mesma federação, pouco importando se o titular mudou-se, se foi ao estrangeiro, se arrebentou-se... a burocracia não tem sentimentos! Em respeito a burocracia estive em Vitória por uns dias.
Viagem adiada... repensada, tudo com muita indisposição pela imposição burocrática, não poderia nunca mensurar como estava errado quanto à validade da viagem.
Na manhã de um meio de semana, bem cedo, chegava de novo na ilha de Vitória, a mesma uma vez defendida por Maria Ortiz contra os holandeses com tanta coragem há quase 400 anos.
Pareceu-me tão linda a cidade naquele dia, tão cheia de luz, tão brutalmente diferente de Londres em todos os sentidos pela sua exuberante beleza, que me levou para 2 anos atrás, quando também eu partilhava daquilo. Já ali senti-me feliz sem nenhuma razão especial.
Fui apanhar documentos na minha antiga casa, e ouvi de novo o latido da cadelinha Pituxa da dona Maria do Carmo, de novo o sorriso da matrona para mim, um grito dos fundos, de uma conhecida e familiar voz aguda, era o Matias: "Afinal quem é vivo sempre aparece!", de novo a dona Ideíde com os olhos marejados, "Ah meu filho, que saudades imensas...!" ... foi fogo que voltasse movido em muito pela questão da CNH, mas dum instante para o outro aquilo ficou em segundo plano. Na boa casa da Praia do Canto, remanesciam as flores de açucena e o cheiro perene de Domingo fresco, uma brisa marinha chegava à varanda junto comigo, senti-me em casa ao rever o sorriso do meu querido Matias.
Parti para visitar os amigos e os lugares, para dizer de surpresa que queria uma cerveja no bar do Derlei, de novo os quiosques da praia de Camburi com um nome de mulher escrito na parede, de novo a ciclovia à beira-mar que eu tanto amei como amiga dos meus domingos de manhã, de novo a minha praia de Santa Helena, quieta e introspectivia em cada fragmento do laranja do seu mar de pôr-do-sol, de novo a Curva da Jurema e as rodas de samba do Dionicão, de novo o Jardim da Pena e a Enseada do Suá, de novo o campus da UFES, de novo o centro de Vitória e o Palácio Anchieta, de novo o porto e o Penedo, de novo o parque Moscoso e a Vila Rubim, de novo ao fundo o bom e velho Mestre Álvaro.
Que alegria inesperada poder rever quem nos ama e quem amamos, como quis e pude, que bom poder abraçar, poder dizer o que se pensa livremente e ser bem percebido e aceito... mesmo depois de tudo, mesmo depois de tanto tempo, como remanesce vivo e puro o que é verdadeiro, liberdade que se ganha pela compreensão e pelo respeito.
Como ao alcance da mão, aqui e ali e em todo canto, podia sentir de novo o rapaz que eu fui ali, através dessa gente tão boa do Espírito Santo e de novo visitar-me, relembrar-me, sorrir-me, finalmente.
Em três dias fica pronta a CNH definitiva, disse-me a senhorita que atende os titulares em troca de permissão. Já nem tinha tanta importância. Mais valeu a jornada em si do que o seu propósito - bendita burocracia.

quinta-feira, janeiro 11, 2007

Cá no coração do menino

Cheguei de volta ao meu país num dia quente de dezembro. Recebi o calor como um beijo de paixão e senti-me algo feliz depois de muito tempo. Revi os pais, os amigos queridos e os parentes... eles choraram e me abraçaram sorrindo e fiquei talvez um pouco constrangido... talvez desacostumado de ser amado.
Da janela do meu quarto, de novo a antiga e querida vista da Pereira do Vale e longe o rio Glória que enquanto menino eram o que eu conhecia, junto da doce certeza de que seria um novo país o que estaria além dessa minha pátria em miniatura.
Que imenso é o nosso mundo! Como são diferentes as pessoas, os costumes, as línguas! Como muda o gosto da cerveja de acordo com o país e como as moças tem diferentes maneiras de olhar e sorrir mesmo que insinuando sempre a mesma coisa!
Londres persevera na sua sina de pólo multicultural com destemor, mesmo sem contar mais com a minha prestimosa contribuição! De certeza, houve inquietação entre os turistas noruegueses e as garçonetes gregas do Soho, preocupação entre os colegas polacos de Ealing e os futebolistas ingleses aussies e argentinos do Queen's Park, grande ausência da alegria de viver entre os turcos jogadores de bilhar do Lancaster Hotel, choro convulsivo entre os queridos fellas brasucas e tugas de Kensal Rise e Maida Vale. Mas certamente outros virão e me substituirão com talento, de modo que em poucos meses (ai de mim! em semanas) já não haverá rastro na memória deles de que estive por lá. Já eu aqui não me esqueço de nada.
Assaltam-me as lembranças das longas e frias madrugadas, errando entre as ruas do centro da capital da Grã-Bretanha, procurando razão e motivo num céu sem estrelas e, entre os velhos prédios de pedras mudas aos apelos de que desaparecessem dali de repente, quanto fatalismo nos beijos lançados no ar e quantos cacos no chão dos caminhos que eu tomei! Já não se repetem as manhãs de nevoeiro em que eu me esforçava, indo de ônibus, trem, metrô... até finalmente alcançar o meu college e mais cedo nessas mesmas manhãs quando abria os olhos e do teto branco do quarto não me vinha nenhuma razão plausível, mas ainda assim eu continuava.
Também houve surpresinhas pequeninas que me deram uns sorrisos, como foi jantar a curiosa sopa de batatas, pimentão e pimenta do reino, além de outros condimentos misteriosos, carinhosamente preparada pela minha doce Katzia, sem saudades da grande mãe Rússia? Como não sentir falta de ouvir Andrew cantando Beatles com sotaque irlandês no banho e argumentando sobre a legitimidade do IRA com os olhos a brilhar? Ou do Milan convidando todo mundo para ir no estádio do Arsenal no fim de semana sem saber onde era? Ou das piadas muçulmanas do turco Yatek quando notava meus longos pensamentos indo a lugar nenhum? E quanto aos porres de cerveja e whisky em Piccadilly junto do meu querido amigo Pecoits? E por fim, já perto de voltar ao Brasil, a maravilhosa viagem pelo continente, até a Cracóvia e até o fundo revolto dos corações irremediavelmente apaixonados!
Cá no coração do menino, saudades de tudo de bom que ficou para trás.