quarta-feira, maio 30, 2007

Coisa linda

Filipa e seus sequazes
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Fico a pensar no que consistem as publicações póstumas dos poetas que costumam chamar de "poesias coligadas" ou "poemas póstumos", esse nome é sempre bizarro, pois dá a entender que foram escritos depois da morte... enfim, fico a considerar esse tipo de publicação: se o poeta quisesse que viesse a público ele o teria feito em vida, então por que a sanha dos herdeiros em publicar os guardanapos escritos na adolescência?
À parte da ganância dos herdeiros de ter mais uns cobres no bolso à custa de trabalho nenhum, as obras publicadas postumamente costumam ser muito úteis aos estudiosos da obra do autor, porque servem para confirmar ou revelar o oposto de uma ideologia poética.
Carlos Drummond de Andrade teve seus poemas eróticos publicados postumamente e houve algum constrangimento por parte dos críticos que sempre defenderam a nobreza do seu estilo sóbrio e limpo de escrita, embora esse constrangimento não se justificasse muito, já que mesmo com tema controverso para alta poesia, ainda assim era alta poesia, com a habitual qualidade e inteligência deste grande poeta mineiro. Essa parte de sua obra só não havia sido publicada em vida porque Drummond era muito reservado e tímido, assim tinha pavores de ter de dar entrevistas sobre o livro, expondo sua intimidade.
Evidentemente que nem todo material que ficou inédito é bom, costuma acontecer mesmo o contrário, ou seja, são os poemas excluídos, os preteridos aos que foram ao prelo, o que nem por isso quer dizer que são ruins e aqui há uma sutileza maravilhosa: foram preteridos pelo autor, não pelos leitores.
A deliciosa descoberta das "Poesias Coligadas" de Vinicius tem movido todos os meus pensamentos já há uns meses e quanto mais leio, mais profundamente me encanto, aliás, esse poeta é como o meu pai: nunca me decepcionou e fez isso sem esforço nenhum.
A virtude desses poemas inéditos quando da morte do poeta é que refletem um Vinicius por vezes mais despojado de medos formais e absurdamente carinhoso e lírico, não que não fosse na obra prévia, mas nas coligadas há poemas que foram feitos para as amadas e que ele nunca considerou publicar porque eram muito pessoais, mas passado tanto tempo, todos os envolvidos nas suas sepulturas, é bom que tenhamos acesso a esse material. Outros poemas devem ter simplesmente ficado perdidos por muito tempo e acabaram ignorados de outras edições ou talvez ainda não parecessem adequados para ir em nenhuma das edições e cabe-lhes muito bem o conjunto de poesia coligada, já que o que as faz um grupo é sua condição de ter ficado de fora das livros publicados.
Há poemas que me emocionam sempre que leio e que já estão entre os meus preferidos, como o encantador "Redondilhas para Tati" e o introspectivo "Na esperança de teus olhos" que é uma coisa linda, e o doce e meiguinho "A primeira namorada".
Ainda no mês passado havia uma pendência judicial que impedia novas edições dos livros do grande Manuel Bandeira e pareceu-me mesmo uma dessas lides que tinham de ser resolvidas da noite para o dia, porque privar o povo da poesia é uma privação das mais duras de suportar e o Bandeira é muito querido, tanto que se forem aos sebos vai ser difícil achar algo dele: ninguém se desfaz dos livros. Agora imaginem o que é ser privado da poesia de um poeta desde sempre, nunca vier a conhecê-la? Seria tão triste quanto nunca ter conhecido alguém que seria certamente nosso amigo ou nunca ter dito à namorada como ela é linda... um encontro falhado com a poesia. Talvez só por isso eu ainda considere algo útil essas publicações póstumas, ao menos as do Vinicius, é ou não é, Coisa Sardenta?