domingo, maio 06, 2007

Jeito juizforano de amar

"Flores no azul", Manuel Santiago, 1969, acervo do MMP

Íamos muito animados, um velho amigo de faculdade e eu, pelas ruas do Alto dos Passos, até que resolvemos ir ao Cine Alameda e para minha surpresa havia lá uma moça sentada junto às mesas da cafeteria que assim que nos viu saltou da cadeira para um abraço e um beijo cordial, nem mais e nem menos. Senti-me mal com aquilo a princípio, pela gentileza fria, mas depois percebi que não era por mal, era apenas como era para ser. Não havia mais nada naqueles olhos depois de 2 anos de um silêncio algo grosseiro que nos raspou dos ossos um do outro. Antes havia um mundo inteiro em qualquer banalidade onde colocasse os olhos e dedicasse um pensamento, uma palavra sua e havia certeza, um suspiro seu e havia então ainda uma esperança na doçura do mundo.
Numa tarde ordinária daquele tempo em que andamos juntos, resolvi visitá-la depois de deixar o campus e cheguei à sua casa num início de noite outonal, uma dessas encantadoras noitinhas de maio de Juiz de Fora. A sua mãe recebeu-me na porta e avisou: "ela queimou-se com água fervente, tem cuidado" . A namorada estava na sala a ver TV, os olhos algo vermelhos e na boca um beicinho ainda infantil a espelhar o tanto daquela dor continuada somada ao susto que levou. A queimadura não tinha sido séria, apenas um pouco de água espirou da panela de pressão e queimou-lhe superficialmente a pele do seio esquerdo. Naquela hora já havia tomado todos os cuidados, inclusive aplicado uma pomada sobre a parte ferida. Com o coração apertado de vê-la assim tão frágil, tão amedrontada, pedi-lhe para dar um beijo e ela sorriu-me assentindo, então beijei com todo cuidado para que aquilo não doesse mais. Não tardou, despedi-me e mais tarde liguei para conversar um pouco e dar boa noite. Dormi a pensar sempre como poderia fazer com que ela se sentisse melhor. Como se estivesse a arder o meu corpo inteiro, queimou de repente apaixonado o meu coração. No dia seguinte liguei para sua confeitaria favorita e pedi para fazerem a torta de nozes e avelãs que a deixava nas nuvens. Depois das aulas, que freqüentei sem nenhum expediente, fui correndo para a porta do seu colégio apanhá-la. Surgiu assim que a sineta tocou e ao ver-me abriu seu grande e generoso sorriso de surpresa e avançou junto com uma amiga na minha direção e beijou-me com uma exclamação grande do meu nome e fez-me uma festinha no cabelo. Acho que nunca antes desse momento tinha me dado conta do quanto dela já havia em mim, do quanto éramos ligados, não era mais essa treta de amor romântico, éramos os melhores amigos: eu cuidava dela e ela de mim. Fomos à confeitaria e paguei-lhe um pedaço da torta de nozes, conversamos docemente sobre qualquer tolice e foi maravilhoso vê-la de novo a moça equilibrada e bem temperada que sempre foi, ainda com a queimadura a incomodar, mas já senhora de si, independente dos meus cuidados, embora gostasse deles: eis a chave de tanta harmonia.
Nesse último encontro, vi uma moça mais madura e mais sedutora, mas a sorrir ao mundo o mesmo encanto de sua inquebrantável pureza e a deslumbrar como sempre com seu porte de princesa do Piemonte. Como pareceu duro tratá-la com a necessária frieza, mas não cabia nada mais que isso, não há nada além disso: nem amor, nem saudade, nem ressentimentos, mas ao mesmo tempo como há em cada qual tanto de cada um!
Aquela moça que ficou lá sentada era a minha grande amiga.