terça-feira, abril 24, 2007

Perdão apaixonado

O cego rabequista, José Rodrigues, 1855

Subia a Alferes Chiquinho com a costumeira disposição que me move nos domingos de manhã, à perspectiva de ter com os parentes o nosso almoço bento na casa da avó Adalgisa. Hábito imemorial, essa assembléia é no melhor estilo da minha família, com muita cortesia, assuntos amenos e sorrisos, bem à moda da minha avó, essa sábia anciã cheia de garbo e elegância.
Já perto do destino, avistei uma pequena figura na varanda, apoiada no balcão que mirava a rua e num instante encontrou-me e fez-me seu alvo, era a dona Ziza, claro. Acenei de longe e apressei-me para subir as escadas.
Já perto dela, pareci ler nos seus olhos: "malandro, vais nos deixar de novo!", mas não era isso, numa quase melancolia que não é nada típica dela, pareceram dizer-me "meu filho, será que te volto a ver depois dessa viagem?". Por certo era a mesma coisa, mas com impressões bem diferentes. "A sua bênção, avó", pedi como venho pedindo deste que aprendi a falar, e ela, generosa como sempre, deu-ma.
Naquele instante é que ficou mais claro como era cara a decisão de partir de novo, como havia um preço superior ao aparente e esse é justamente o fazer sofrer quem nos ama.
Eu por mim, resolvo-me muito bem com as minhas dores e saudades, porque compreendo as razões da minha empreitada, seus fundamentos, todo segredo da paixão que me move, já que não sou de desistir do que acredito, mas a eles não é assim tão claro, como não poderia deixar de ser, e consideram que uma carreira aqui é que valia, que há muitas oportunidades e que os bens precisam de alguém que lhes dê governo, mas o facto é que são todas excusas para não perderem o filho, o neto, o sobrinho, o amigo, o irmão.
Assim, gostava de poder pedir perdão aos avós, aos pais, aos irmãos, amigos, parentes, perdão ao pequenino afilhado que já agora aponta para tornar-se um homenzinho de bem, mas o que tem que ser, tem que ser, e o que tem que ser tem uma força incrível, como bem me disse um moçambicano quando estive no Algarve.
Amparados por vezes nas minhas palavras pontuais e amigas, foi quase desleal cativar os amigos de novo para agora deixar-lhes, foi mesmo uma trama intrincada oferecer aos parentes de novo um convívio que já era saudoso para em seguida tirar-lhes e por tudo isso, eu espero mesmo que me perdoem.
Eu, que sou um experto em partir, estou para experimentar em poucos dias a sensação de ser deixado, já que meu querido Daniel vai para Brasília, vai começar uma carreira no serviço público lá ou para onde quer que o mandem, ainda não se sabe. Certo é, entretanto, que aqui vai ficar um vazio imenso, que eu já consigo prever em todo lado onde costumamos andar e onde pode-se encontrá-lo, nessas horas talvez exista uma espécie de egoísmo que eu possa compreender, o de ter por perto quem se ama. Nenhum querer para si é tão próximo do amor de verdade, mas ainda assim não se justifica e eu sei que se gostamos mesmo de alguém, o bom é vê-lo feliz a fazer o que gosta e acredita, a estar com quem realmente ama, na terra que escolheu para si.
Assim, não foi pela falta de alegria da mãe ou as anedotas disfarçadas do pai que compreendi o alcance do meu crime, mas sim pelas palavras interditas da Dona Ziza e essa absurda solidão que significa ver partir quem nos faz ser quem somos.