terça-feira, dezembro 26, 2023

Vovô Miano

Vovô Miano com cerca de 68 anos de idade

Mesmo depois da família formada e os filhos encaminhados, a Cristalina concebida e, desde cedo, bem gerida pelo tio Zezé, o vovô Miano não chega a se aposentar propriamente. Manteve-se sempre ativo e, mesmo, inquieto.
Nesta fase de sua vida, estava cada vez mais à mercê dos seus dos problemas de saúde, com gestos de bondade, afeto e imensa capacidade criativa alternados por surtos de alguma insanidade.
Usava a sua inegável inteligência para tocar a sua sanfoninha vermelha de oito baixos, desenvolvia fechaduras intrincadas, concertava charretes, fabricava balões e fogos de artifício para as festas e ensaiava o seu grupo de quadrilha com esmero.
É dessa época a maior parte das histórias que chegaram sobre ele. Algumas são anedotas, outras ilustram os seus problemas de saúde e um crescente desequilíbrio mental, todas mostram uma pessoa muito inteligente e corajosa, mas que acabava por causar problemas.
Ainda no tempo da rapadura Santa Cruz, o vovô Miano tinha comprado muitas terras ali por perto. O sítio no São Carlos foi para o meu avô Toninho tomar conta, já o sítio da Fazenda Boa Vista foi para o tio Pedrinho, e na região de Santa Bárbara próximo ao tio Zé Bamburral, também tinha terras. O tio Zezé tinha ficado ali mais perto dele. Era habitual que fosse sozinho de charrete visitar os filhos, mesmo sofrendo de uma espécie de demência ocasional, voltando para casa cheio de mantimentos que lhe eram oferecidos. 
Numa dessas visitas à casa do tio Zezé, ao ver uma erva de passarinho a tomar conta do cimo da laranjeira, trepou lá para cima para arrancá-la. Apavorada, a tia Leni gritou: "Senhor Miano, o senhor vai cair daí de cima!", ao que Miano respondeu: "Não tem perigo. Estou amarrado em mim e nos galhos", retirando toda a erva de passarinho da laranjeira. Era destemido e muito confiante nas suas próprias capacidades.
Calculo que seja também desse tempo em que tinha momentos de lucidez, alternados por momentos em que a doença atacava, que a sua auto-confinaça excessiva podia sair de controle. 
Aqui vale recordar a famosa travessia da ponte com a Dona Dorvina, mãe da tia Miriam e sogra do tio João. Em uma ida de charrete à Miradouro, acompanhou-lhe a Dona Dorvina. Na volta para a Santa Cruz, o vovô Miano decide voltar pela saída da Rua Santo Antônio, atravessando a ponte dos Marianos, seus primos. Acontece que a tal ponte, além de muito alta, com pedras lá embaixo, estava em péssimo estado, cheia de buracos, de onde se via o rio embaixo. O cavalo ficou com medo, e resolveu não avançar. Diante do impasse, Miano virou-se para a pobre senhora e perguntou: "Dona Dorvina, vamos se astrever?" E sem que ela pudesse responder, desceu o chicote no animal, que partiu em disparada, com a charrete vacilando entre os buracos, até que resvalou e quase caiu lá embaixo, ficando com a roda presa do lado da ponte e os dois arragados à charrete. Depois de muita aflição, foram socorridos pelo primo Pedro Mariano e graças a Deus, não aconteceu nada de mais.
Infelizmente, às vezes esses rompantes custavam caro, tomando proporções absurdas. Em uma outra viagem de charrete, mais uma vez para visitar os filhos, novamente atacado pela demência precoce, e possivelmente atacado espiritualmente por obsessores, aconteceu o triste episódio com a Dona Ana Bahia, que foi contado pelo primo Zé Paulo:

Certa vez, ao passar em frente à entrada da fazenda do senhor Olegário Matta, Miano resolve se insinuar para a dona Ana Escala, conhecida como Ana Bahia, que tinha um sítio em cima do barranco. A mulher o repreendeu, mas Miano insistiu com aquela conversa. Dona Ana Bahia então contou para o seu marido e combinaram que na próxima vez que ele viesse com aquela falta de respeito ele daria um susto no vovô. No outro dia, ele indo lá no tio Zezé resolveu parar na dona Ana, quando ele tentou agarra-lá, o marido saiu com um revólver na mão pensando que isso o assustaria. Miano, no entanto, arrancou uma faca da cintura e partiu para cima do homem que, para não atirar pois sabia da sua demência, deu uma coronhada na cabeça dele que o deixou atordoado. Marido e mulher trancaram-se dentro de casa até que ele se refizesse e fosse embora, assim aconteceu. A seguir, ele parou no ribeirão próximo à casa do tio Zezé, lavou o sangue da camisa, colocou o chapéu para tampar o machucado. Chegou no tio Zezé justificou que estava muito calor, almoçou e voltou pra casa. Na hora da janta, a vovó queria que ele tirasse o chapéu como era de costume, ele se negou dizendo que teve uma visão e falaram pra ele ficar direto com chapéu. Dormiu com ele e fez suas refeições por um bom tempo... Uma noite a vovó sentiu um cheiro estranho e tirou o chapéu dele enquanto dormia, ele estava com uma ferida imensa toda infeccionada. Os filhos apertaram, e daí ele contou a história.

Assim, Miano era ao mesmo tempo um homem muito capaz e muito responsável com seus negócios e bom para os seus filhos e família em geral, mas ao mesmo tempo, dado a atos de insanidade muitas vezes imprevisíveis. Fosse como fosse, nunca deixou de ser justo e de querer fazer o bem.
Como referido, assim que ganhou mais dinheiro com as rapaduras, tratou logo de encaminhar os filhos. Além disso, também ajudava os irmãos mais novos, nunca se negando a apoiá-los no que iam precisando, mas nada de excessivo. A divisa do vovô Miano que o meu pai mais gosta mostra mesmo esse seu lado prudente: "O homem tem que ser bão. Porque o bão-bão arrebenta no chão!"
A mudança da Fazenda Santa Cruz para Miradouro mostra mesmo isso. Como conta o primo Zé Heitor, no contexto de abundância de dinheiro gerada ainda pela rapadura Santa Cruz, o tio José Natálio, vendo o tio Zezé a trabalhar muito já naquela época, dirigindo os negócios de seu pai, e encaminhando os irmãos, mas sem nada ter de seu propriamente, (pois estava destacado na Fazenda Santa Cruz), sugeriu ao seu cunhado Miano: "O senhor devia dar alguma coisa ao Zezé, ele trabalha muito, tem encaminhado os irmãos, mas ele mesmo não tem nada no seu nome. Quero comprar a casa na praça Santa Rita à tia Carolina, daí desmanchamos e cada um faz a sua casa". 

Praça Santa Rita ainda com a casa da tia Carolina (à esquerda), depois comprada a meia pelo tio Zé Natálio e vovô Miano

O vovô Miano concordou, mas ao dar a sua metade do terreno ao tio Zezé, propôs-lhe que fizesse uma casa de dois apartamentos, com o dele por cima: foi bão! E assim foi feito. Acredito que isso tenha decorrido aí pelo final dos anos de 1940.
Concluída a obra, mudaram-se para Miradouro e as viagens para a Fazenda Santa Cruz eram feitas de charrete, ou trolley, uma espécie de charrete de quatro rodas, com duas poltronas.

A Praça de Santa Rita de antigamente, com a sua primeira casa de dois andares, construída pelo tio Zezé

Mais ou menos na altura em que Miano e Sinhá mudam-se para Miradouro, também é concluída a primeira fase da construção da rodovia Rio-Bahia, que teve e ainda teria grande impacto sobre a vida da família.
A rodovia começa a ser construída em 1939, sendo concluída em 1949. 

À inauguração, a Rio-Bahia chamava-se BR-4

Originalmente, a Rio-Bahia aproveitou as estradas regionais que haviam sido abertas pelos primeiros povoadores da Zona da Mata e mesmo pelos tropeiros. Essas estradas seguiam os princípios de penetração do território pelas bandeiras: o seguimento do curso dos rios. Foi assim que a rodovia atravessava a Fazenda Santa Cruz na sua parte mais baixa, havendo ali um grande percurso mais junto ao rio. 
Caminhões na Rio-Bahia sem pavimentação a atravessar a Fazenda Santa Cruz. Em destaque, a venda do tio Albertinho

Nos anos de 1950, a Rodovia começa a ser pavimentada com asfalto, construindo-se também muitas pontes e viadutos. É feita também a sua transposição para uma parte mais elevada, de modo a promover um percurso mais eficiente, com menos curvas, o que implicava em abrir caminho por entre montanhas, por vezes, de rochas, e construir grandes viadutos.
Foi ainda antes dessa obra de pavimentação, no tempo da transposição dos primeiros trechos, nos anos de 1940 que muitas terras do vovô Miano são desapropriadas pelo Governo Federal, sem que pagassem qualquer indemnização. Há um requerimento dele à Secretaria Geral de Viação e Obras em 1942 a pedir uma compensação, tendo sido indeferido. A fazenda Santa Cruz foi cortada em três partes, inclusivamente prejudicando os canaviais. Esse verdadeiro abuso gerou-lhe muita consternação, e na minha opinião, pode lhe ter agravado a doença. De todas as formas, o vovô Miano tinha uma grande birra com essas obras na Rio-Bahia.
Uma das anedotas que se conta na família é justamente por conta dessa mutilação da Fazenda Santa Cruz. Conta o primo Zé Heitor que o vovô Miano costumava fazer a viagem entre a fazenda e Miradouro de charrete, indo pelo meio da estrada no tempo em que era de terra. Depois da pavimentação, quis manter esse hábito, colocando a charrete não na sua mão de direção, mas mesmo ao meio. Além disso, a charrete ia devagar se comparada aos caminhões, gerando uma imensa fila atrás do vovô. Como a Rio-Bahia recém pavimentada não tinha acostamento, ele costumava responder às buzinadas dizendo o seguinte: "Muito bonito, cortam as minhas terras todas, não me dão nada, e depois eu não tenho o direito de usar a estrada?" Errado completamente, ele não estava! "Os pneus dos seus caminhões não se machucam indo pelo acostamento de terra, mas o Buíque meu cavalo se machuca, ele não pode andar ali".
Miano adorava levar as netas para passear de charrete. Mesmo sendo um bocado forreta, às vezes fazia-lhes a vontade, como quando a prima Neneis (Maria Inês) da tia Helena fez uma birra querendo um copo de canudinho, e o avô teve que o comprar. Por vezes, ele gostava de comprar muitas coisas bonitas para colocar na cristaleira de casa, como conta a prima Maita (Maria Rita).
Também quando nasciam os netos que já não viviam em Miradouro, os avós faziam questão de visitar, aliás, gostavam muito de viajar e traziam lembranças para os filhos. A prima Leni dá-nos um testemunho muito tocante desse amor paternal: 

Ele e vovó Sinhá viajavam muito, conheceram várias cidades históricas e quando voltavam sempre traziam lembranças para os filhos.
Quando nascia algum dos meus irmãos, vovô e a vovó iam de charrete até onde morávamos para abençoar o neto.
Quando as netas faziam sete anos ele mesmo furava as orelhas e dava uma argolinha de ouro para elas.
(...)
Ele era muito caprichoso e adorava tirar fotos da família, por isso hoje temos tantas fotos.
Eu tive o prazer de conviver com ele e nunca me esqueço do carinho que ele tinha por nós.

Acredito que muito do empenhamento do vovô Miano com os foguetes e os balões era porque queria engrandecer as festas dos filhos e netos, assim como as festas de Santa Rita. 
Gostava muito das festas, aliás. Na Fazenda Santa Cruz manteve por muitos anos um grupo de quadrilha que ensaiava com muito esmero, sendo dos mais destacados. Tinha também uma sanfoninha vermelha de oito baixos e a tocava muito bem! Por vezes, no entanto, as invenções dele davam errado.
Foi numa festa de Santa Rita, ao que me parece, que um foguete estourou na sua mão direita. Ele foi acudido pelo tio Zezé, mas ficou sem a metade dos dedos daquela mão. 
Em uma outra ocasião, em uma festa no Gavião, na fazenda do senhor Tatá Pereira, para celebrar as bodas de ouro de uma cunhada, encomendaram ao vovô Miano um balão. Ele chegou cedo e procurou caprichar o melhor que podia, produzindo um enorme balão. Na hora de levantar vôo, o balão não queria subir, e então o vovô fez um levezinho com o pé na base do balão, que lá foi subindo. Para o seu azar, no entanto, um vento forte levou o balão para debaixo dos ramos de uma mangueira, onde ele se incendiou, causando grande alvoroço. Em meio àquela situação, o vovô foi bem humorado: "De modos que o balão não subiu, mas teve muita graça!"
Em outra ocasião, para que a neta Marilene, no seu anivesário de 7 anos, coroasse Nossa Senhora, o vovô Miano ficou uma semana inteira na casa da tia Hilda preparando um imenso balão. O balão ficou lindíssimo, mas não saiu do chão. O vovô ficou arrasado, mas era persistente, como conta a prima Leni. Muitos outros dos seus balões subiram e fizeram as festas em que ele trabalhou muito mais bonitas.
Aliás, ele fazia questão de preparar os foguetes e balões quando uma filha ou neta sua fosse coroar Nossa Senhora, inclusivamente, preparando as asas de anjinho que elas iriam usar na cerimônia. Com todo o cuidado, tirava as penas aos patos, depois tirava-lhes a pele, dissecando com formol. Esticava e punha a secar para serem usadas no acabamento. Depois colava com todo o capricho um pano branco, e depois colava cada uma das penas, formando um arranjo lindíssimo e que fazia muita vista a toda a gente.
Infelizmente, nem só de momentos felizes foi feita essa fase de sua vida. Em 1953, o impulso de luxúria do vovô Miano voltou a causar problemas. 
Contou-me o primo Paulo Afonso que, ao receber a sua cunhada Adelaide em casa na Praça Santa Rita, o vovô insinuou-se para ela. A tia Adelaide foi logo contar para a sua irmã, a vovó Sinhá, que ficou muito magoada e partilhou o ocorrido com toda a família. Sendo gravemente repreendido pelos filhos, Miano sentiu-se culpado. De forma a desculpar-se com a sua família, resolveu convidar a todos para uma missa e um almoço da Fazenda Santa Cruz. É justamente por conta dessa história triste que hoje temos a maior parte das nossas fotos de família antigas.

Miano e Sinhá com sua grande família imediata na festa de 1953

A partir do início dos anos 1960 a saúde do vovô Miano deteriora-se mais gravemente. Até essa época, ele manteve o seu cavalo em Miradouro em um pasto no morro do Cruzeiro, sendo que a charrete vermelha ficava numa casinha que servia de garagem na Rua do Quiabo. 
O Buíque recebia todos os dias uma cuia de fubá, que era levada até o cocho por um dos netos. O meu primo José Paulo ficava com a incumbência dessa tarefa, já que morava em Miradouro com os avós na altura. Mas entre a Praça Santa Rita e o pasto no Cruzeiro, eram muitas as tentações de brincadeiras! O fubá do Buíque ia para algum bueiro, e depois o Zé Paulo voltava para casa feliz e contente com a cuia vazia. O seu azar foi que uma das famílias da Conferência, bairro próximo ao do Cruzeiro, era ajudada com alimentos pela vovó Sinhá, e um senhor dessa família chamado Zé Branco, ao ver o sucedido, delatou o Zé Paulo. A partir daí, a relação dos dois azedou um bocado, especialmente por conta da situação de saúde do vovô Miano, incapaz de compreender e relevar a atitude de uma criança e, ainda por cima, um neto seu.
Mas essas cismas exageradas não eram exclusivas do Zé Paulo. Ele cismava também, agora sem qualquer razão, com alguns dos meninos da tia Manzica, nomeadamente com os primos Isaías, Maria Helena e com o Heitor, mas nesta última fase ele já estava muito doente.
Quanto a essas "cismas" (à falta de outro nome mais bonito), basta referir que em uma noite em que o Zé Paulo dormia na casa dos avós, o vovô Miano entrou sorrateiramente no seu quarto e começou a esganá-lo. Chega a vovó Sinhá aflita: "Miano, o que você está fazendo?" - "Estou tirando este infeliz deste mundo!" - "Miano, é o seu neto! O Zé Paulo!" E com muito custo, largou da garganta do menino.
Depois disso, o meu primo foi pernoitar na casa da prima Rita de Cássia, e o Silvério (que dormia lá), passou a dormir na casa dos avós. Mas à hora do almoço, almoçavam todos juntos... Daí, na cabeceira da mesa, o vovô Miano tamborilava os cotocos de dedos da mão direita, e resmungava olhando para os dois netos: "Sô Silvério é bão, bão, bão... Zé Burraldo é mau, mau, mau..."
Outras tramóias, já na fase final de sua vida, em que a sua condição de saúde deteriorou-se ainda mais, também devem ser recordadas. Como a lembrada pela prima Leni, quando o vovô Miano se escondeu atrás de uma porta e quando passa o Heitor com uma furúnculo inflamado no braço que tinha de estar sempre levantado, leva um tapa violento do avô na ferida, que estava escondido atrás de uma porta... 
Há uma outra história com o Heitor que foi trágica e cômica ao mesmo tempo. Estavam vários netos no quarto ao lado do dele: a Marilene da tia Hilda, Heitor, Joaquim, Maria Helena, Maria do Rosário e Marilene, estando o Heitor deitado na cama em frente à porta, de pijama. O Joaquim, que também não era muito fácil com ele, de repente fechou a porta. Daí o vovô Miano cismou e trancou por fora com uma tranquinha existente. O Joaquim tentou abrir e viu que estávamos trancados e bateu na porta. Entretanto, o vovô foi na cozinha e pegou uma faca, abriu a porta e a primeira possível vítima era o Heitor, já que estava deitado na cama. O vovô foi para cima dele, que ficou segurando a sua mão enquanto ele mordia a língua e empurrava a faca. Até que Sinhá chegou e falou a ele: "Miano, você vai matar o seu neto Miano! Dá-me essa faca, Miano!" Ele por fim entregou a faca e saiu arrastando o chinelo e assoviando do jeito dele.
São recordações trágicas de um fim de vida que de certa forma marcou muito esses seus netos, infelizmente, de uma forma negativa. No entanto, não se pode deixar de lembrar que por grande parte de sua vida, e principalmente quando a doença não o atacava, o vovô Miano foi um pai e um avô muitíssimo amoroso e dedicado, como é recordado por muitos de seus netos ainda hoje.
Seus erros e acertos são testemunhos de uma vida intensa, em que a vontade de fazer e acontecer, se por um lado dava imensa força de realização e satisfação pelo uso da sua grande inteligência, por outro lado o conduzia a excessos em que os vícios tiravam o melhor dele.
Rezemos a Deus para que tenha misericórdia de sua alma. Ele também chamou por Deus na sua vida! E que o Nosso Senhor também olhe por nós, seus descendentes, onde muito do vovô ainda vive. 
Para terminar, deixo essa memória do primo Heitor que muito me emociona:

Em um domingo Sinhá acordou e ele havia sumido. Conhecendo um pouquinho os hábitos dele, eu saí e fui procurá-lo. Encontrei-o na igreja assistindo a missa no fundo. Estava em pé, vestido de paletó e gravata, cueca, meia e calçava os chinelos. O guarda-chuvas estava pendurado no banco. Em respeito à situação clínica dele, às pessoas não tinham nenhuma reação ao fato. Cheguei ao lado dele, peguei em sua mão e disse que a missa havia terminado e que a Sinhá me tinha mandado buscá-lo. Ele fez o sinal da cruz e saiu comigo para casa no jipe do tio Lico.

segunda-feira, dezembro 25, 2023

Cristalina como a verdade

Em 1946, Miano estava com o estoque de rapaduras a melar e chamar as vespas e abelhas a um convívio que zunia a prejuízo. Em tempos, o maior produtor de rapaduras da região, de onde auferiu muito dinheiro e comprou muitas terras, agora via-se em apuros.
Para além do restabelecimento do comércio mundial de açúcar depois do fim da 2.ª Guerra Mundial, os outros fazendeiros da região, vendo o sucesso de Miano, também se tinham posto a fazer rapaduras. O que antes se vendia sem dificuldades, agora se acumulava e gerava incertezas. Mesmo assim, Miano recusava-se a baixar os preços.
Desde 1930, mais ou menos com a idade de 16 anos, o tio Zezé tomava a frente na produção das rapaduras. Ele sempre foi um homem muito consciente da realidade e preocupado com o bem das pessoas próximas a ele. Constantemente dizia ao pai que aí por onde ia, a rapadura Santa Cruz não tinha futuro, mas Miano teimava em insistir que tinha rapaduras excelentes e que se iriam vender. No fundo, ele sabia que precisava de uma mudança de curso.
Conta o primo Paulo Afonso, assim como o primo Zé Paulo, que um familiar que morava fora, vindo visitar a família e vendo a situação de Miano, deu-lhe a sugestão de derreter as rapaduras, fermentar e fazer dela cachaça. Já o primo Heitor, por ter ouvido a história da tia Manzica, diz que a sugestão partiu do deputado João Bello, de Carangola, que era do mesmo partido que o vovô Miano, o antigo Partido Republicano Mineiro.
Seja como for, o vovô Miano achou boa a ideia. Era turrão, mas não era tolo! Percebeu que a saída para as rapaduras meladas tinha potencial como negócio para além do improviso. Teve a coragem de mudar quando viu uma saída, e não simplesmente mudar por mudar.
Tomada a decisão, era preciso encontrar um alambique. Tio Zezé conseguiu o equipamento com o primo Pedro Mariano Alves Pereira, seu primo do lado do tio Neca Mariano e que morava do outro lado do rio, e assim estava montado o engenho com o alambique, aproventando-se as instalações usadas anteriormente para a rapadura Santa Cruz.
O dia da inauguração tem duas histórias interessantes. 
Conta a prima Lolinha, que um dia à noite, presumo eu que nas vésperas dessa inauguração, o vovô Miano tinha sumido. O tio Zezé foi à procura dele "miando", como se diz na família, ou seja, chamando "Miano, Miano, Miano!", pois os filhos mais velhos não o chamavam pai, ou à vovó Sinhá mãe, já que não foram ensinados. Depois de muita confusão, veio a vovó Sinhá dizer que Miano tinha ido à Mãe-D'água, a fonte onde se ia buscar água limpa e de que os netos todos guardam memórias maravilhosas. Lá cortara algumas folhas de pita, levou-as ao alpendre da casa, e agora estava lá a fazer versos para a cachaça. Miano não ficou conhecido por ser poeta, como seu irmão Afonso, mas era muito esperto. Sabia que um negócio bem sucedido começava por uma boa promoção!
Assim, no dia da inauguração propriamente, onde deve ter lido o poema feito na folha de pita, houve também uma festa onde se ofereceu a Cristalina para degustação. Vieram à Fazenda Santa Cruz muitas pessoas importantes, inclusivamente o deputado João Bello. Ao brindar com a cachaça, ele teria dito: "Cristalina ela, né?" E daí teria ficado o nome, como contou ao primo Heitor a tia Manzica. 
Logo após o início da fabricação, utilizando o sistema de fermentação com fubá que lhe dava um traço distintivo, tendo o fabrico o acompanhamento de Miano para que fosse tudo muito bem feito, como era sempre do seu gosto, a cachaça consegue ter uma ótima aceitação.

Rótulos da Cristalina, sendo o primeiro desenhado pelo vovô Miano, que nele inseriu as suas iniciais como marca: MGP

Assim como se tinha passado com o sucesso da rapadura Santa Cruz, os resultados que Miano alcança com a cachaça Cristalina logo despertam a cobiça de outros fazendeiros.
Conta o primo Zé Paulo que Olegário Matta montou logo o seu alambique. Bem depois, na época do tio Zezé, João Montezano também começou. Por último, quando a prima Terezinha do tio Pedrinho casou-se com Antônio Pimenta, este último e Dadinho Bicalho passaram a fabricar cachaça à meia. 
Nada disso adiantou muito. A qualidade superior da Cristalina, com aroma, cor e sabor claramente distintivos, foi sempre dominante em todos os mercados da região.
Desde a inauguração dessa fábrica, aí por volta de 1947, o tio Zezé foi sempre o principal responsável pela sua gestão e condução da operação. O primo Zé Paulo conta que se lembra das tropas de burros do tio Zezé levando cachaça para Santa Bárbara e Monte Alverne. Já para Vieiras, São Francisco do Glória, Miradouro, Varginha, Santo António do Glória e Muriaé, o transporte era feito por caminhão.

Antigo caminhão do tio Zezé que era usado na distribuição da Cristalina

A Cristalina foi uma ótima fonte de dinheiro e possibilitou ao vovô Miano encaminhar bem os seus filhos e viver com algum conforto, mesmo frente às muitas limitações daquela época e de ter uma família tão numerosa.
Foi um movimento corajoso de Miano, que preferiu mudar a ver perder o que tinha, chamando atenção novamente que só resolveu fazer essa mudança quando viu uma solução. Mesmo que a ideia não tivesse sido dele, ele sabia que era possível fazer da cachaça um bom produto, associando a ela as suas próprias qualidades como empreendedor: exigência com a qualidade e a responsabilidade de ser bom cumpridor, que já era a sua fama.
No entanto, a Cristalina também teve os seus momentos difíceis. Logo naqueles primeiros tempos, o padrinho do primo Maninho acidentalmente provocou um incêndio na fábrica que destruiu quase tudo, tendo sido preciso serrar às pressas as vigas de madeira para que o fogo não se alastrasse para a casa.
Ao longo do tempo, e mais sensivelmente desde quando o vovô Miano fica acamado em 1962, o negócio passa para o tio Zezé, que o mantém com grande brio até a morte de seu pai em 1967. Depois desse momento, o tio Zezé assume por completo a Cristalina, mantendo a empresa durante toda a sua longa vida de trabalho e dedicação incansável à família.

Fábrica Santa Cruz no final dos anos de 1970

O primo Zé Paulo conta que na década de 1980, enquanto tinha uma linha de transporte de leite entre Monte Alverne e Muriaé, depois de fazer as suas entregas, transportava a cachaça para o tio Zezé nas latas de leite para fugir da fiscalização. Já naquele tempo exigências legais exageradas e desproporcionadas estrangulavam os pequenos negócios com regulamentações cada vez mais complexas e dispendiosas, para além de impostos sempre crescentes que, a descontar dos proveitos, faziam os lucros sempre menores e o negócio mais arriscado.

Silvério (2.º da esq. para a dir.) e Maninho (5.º na mesma ordem) e outros trabalhadores da fábrica

Depois do tio Zezé, a Cristalina passou para o meu querido primo Silvério que por muitos e muitos anos manteve a produção e distribuição da cachaça com muita dignidade, assim como a memória da nossa família na sede da Fazenda Santa Cruz.
Cristalina nas garrafas originais das suas 3 gerações

Já na sua velhice, depois de toda uma vida a lutar contra as muitas dificuldades que são impostas aos pequenos produtores, o primo Silvério teve de encerrar a atividade aí por volta de 2012, ainda distribuindo a cachaça envelhecida.
A Cristalina para nós não é só uma cachaça, é parte da história da nossa família. Para mim, particularmente, para além de uma aguardente de cana de açúcar tipicamente mineira e de grande distinção, é um sinônimo de perseverança, seriedade, sacrifício e superação.

Duas pessoas maravilhosas: tio Zezé e tia Leni no engenho da Fábrica Santa Cruz