segunda-feira, dezembro 25, 2023

Cristalina como a verdade

Em 1946, Miano estava com o estoque de rapaduras a melar e chamar as vespas e abelhas a um convívio que zunia a prejuízo. Em tempos, o maior produtor de rapaduras da região, de onde auferiu muito dinheiro e comprou muitas terras, agora via-se em apuros.
Para além do restabelecimento do comércio mundial de açúcar depois do fim da 2.ª Guerra Mundial, os outros fazendeiros da região, vendo o sucesso de Miano, também se tinham posto a fazer rapaduras. O que antes se vendia sem dificuldades, agora se acumulava e gerava incertezas. Mesmo assim, Miano recusava-se a baixar os preços.
Desde 1930, mais ou menos com a idade de 16 anos, o tio Zezé tomava a frente na produção das rapaduras. Ele sempre foi um homem muito consciente da realidade e preocupado com o bem das pessoas próximas a ele. Constantemente dizia ao pai que aí por onde ia, a rapadura Santa Cruz não tinha futuro, mas Miano teimava em insistir que tinha rapaduras excelentes e que se iriam vender. No fundo, ele sabia que precisava de uma mudança de curso.
Conta o primo Paulo Afonso, assim como o primo Zé Paulo, que um familiar que morava fora, vindo visitar a família e vendo a situação de Miano, deu-lhe a sugestão de derreter as rapaduras, fermentar e fazer dela cachaça. Já o primo Heitor, por ter ouvido a história da tia Manzica, diz que a sugestão partiu do deputado João Bello, de Carangola, que era do mesmo partido que o vovô Miano, o antigo Partido Republicano Mineiro.
Seja como for, o vovô Miano achou boa a ideia. Era turrão, mas não era tolo! Percebeu que a saída para as rapaduras meladas tinha potencial como negócio para além do improviso. Teve a coragem de mudar quando viu uma saída, e não simplesmente mudar por mudar.
Tomada a decisão, era preciso encontrar um alambique. Tio Zezé conseguiu o equipamento com o primo Pedro Mariano Alves Pereira, seu primo do lado do tio Neca Mariano e que morava do outro lado do rio, e assim estava montado o engenho com o alambique, aproventando-se as instalações usadas anteriormente para a rapadura Santa Cruz.
O dia da inauguração tem duas histórias interessantes. 
Conta a prima Lolinha, que um dia à noite, presumo eu que nas vésperas dessa inauguração, o vovô Miano tinha sumido. O tio Zezé foi à procura dele "miando", como se diz na família, ou seja, chamando "Miano, Miano, Miano!", pois os filhos mais velhos não o chamavam pai, ou à vovó Sinhá mãe, já que não foram ensinados. Depois de muita confusão, veio a vovó Sinhá dizer que Miano tinha ido à Mãe-D'água, a fonte onde se ia buscar água limpa e de que os netos todos guardam memórias maravilhosas. Lá cortara algumas folhas de pita, levou-as ao alpendre da casa, e agora estava lá a fazer versos para a cachaça. Miano não ficou conhecido por ser poeta, como seu irmão Afonso, mas era muito esperto. Sabia que um negócio bem sucedido começava por uma boa promoção!
Assim, no dia da inauguração propriamente, onde deve ter lido o poema feito na folha de pita, houve também uma festa onde se ofereceu a Cristalina para degustação. Vieram à Fazenda Santa Cruz muitas pessoas importantes, inclusivamente o deputado João Bello. Ao brindar com a cachaça, ele teria dito: "Cristalina ela, né?" E daí teria ficado o nome, como contou ao primo Heitor a tia Manzica. 
Logo após o início da fabricação, utilizando o sistema de fermentação com fubá que lhe dava um traço distintivo, tendo o fabrico o acompanhamento de Miano para que fosse tudo muito bem feito, como era sempre do seu gosto, a cachaça consegue ter uma ótima aceitação.

Rótulos da Cristalina, sendo o primeiro desenhado pelo vovô Miano, que nele inseriu as suas iniciais como marca: MGP

Assim como se tinha passado com o sucesso da rapadura Santa Cruz, os resultados que Miano alcança com a cachaça Cristalina logo despertam a cobiça de outros fazendeiros.
Conta o primo Zé Paulo que Olegário Matta montou logo o seu alambique. Bem depois, na época do tio Zezé, João Montezano também começou. Por último, quando a prima Terezinha do tio Pedrinho casou-se com Antônio Pimenta, este último e Dadinho Bicalho passaram a fabricar cachaça à meia. 
Nada disso adiantou muito. A qualidade superior da Cristalina, com aroma, cor e sabor claramente distintivos, foi sempre dominante em todos os mercados da região.
Desde a inauguração dessa fábrica, aí por volta de 1947, o tio Zezé foi sempre o principal responsável pela sua gestão e condução da operação. O primo Zé Paulo conta que se lembra das tropas de burros do tio Zezé levando cachaça para Santa Bárbara e Monte Alverne. Já para Vieiras, São Francisco do Glória, Miradouro, Varginha, Santo António do Glória e Muriaé, o transporte era feito por caminhão.

Antigo caminhão do tio Zezé que era usado na distribuição da Cristalina

A Cristalina foi uma ótima fonte de dinheiro e possibilitou ao vovô Miano encaminhar bem os seus filhos e viver com algum conforto, mesmo frente às muitas limitações daquela época e de ter uma família tão numerosa.
Foi um movimento corajoso de Miano, que preferiu mudar a ver perder o que tinha, chamando atenção novamente que só resolveu fazer essa mudança quando viu uma solução. Mesmo que a ideia não tivesse sido dele, ele sabia que era possível fazer da cachaça um bom produto, associando a ela as suas próprias qualidades como empreendedor: exigência com a qualidade e a responsabilidade de ser bom cumpridor, que já era a sua fama.
No entanto, a Cristalina também teve os seus momentos difíceis. Logo naqueles primeiros tempos, o padrinho do primo Maninho acidentalmente provocou um incêndio na fábrica que destruiu quase tudo, tendo sido preciso serrar às pressas as vigas de madeira para que o fogo não se alastrasse para a casa.
Ao longo do tempo, e mais sensivelmente desde quando o vovô Miano fica acamado em 1962, o negócio passa para o tio Zezé, que o mantém com grande brio até a morte de seu pai em 1967. Depois desse momento, o tio Zezé assume por completo a Cristalina, mantendo a empresa durante toda a sua longa vida de trabalho e dedicação incansável à família.

Fábrica Santa Cruz no final dos anos de 1970

O primo Zé Paulo conta que na década de 1980, enquanto tinha uma linha de transporte de leite entre Monte Alverne e Muriaé, depois de fazer as suas entregas, transportava a cachaça para o tio Zezé nas latas de leite para fugir da fiscalização. Já naquele tempo exigências legais exageradas e desproporcionadas estrangulavam os pequenos negócios com regulamentações cada vez mais complexas e dispendiosas, para além de impostos sempre crescentes que, a descontar dos proveitos, faziam os lucros sempre menores e o negócio mais arriscado.

Silvério (2.º da esq. para a dir.) e Maninho (5.º na mesma ordem) e outros trabalhadores da fábrica

Depois do tio Zezé, a Cristalina passou para o meu querido primo Silvério que por muitos e muitos anos manteve a produção e distribuição da cachaça com muita dignidade, assim como a memória da nossa família na sede da Fazenda Santa Cruz.
Cristalina nas garrafas originais das suas 3 gerações

Já na sua velhice, depois de toda uma vida a lutar contra as muitas dificuldades que são impostas aos pequenos produtores, o primo Silvério teve de encerrar a atividade aí por volta de 2012, ainda distribuindo a cachaça envelhecida.
A Cristalina para nós não é só uma cachaça, é parte da história da nossa família. Para mim, particularmente, para além de uma aguardente de cana de açúcar tipicamente mineira e de grande distinção, é um sinônimo de perseverança, seriedade, sacrifício e superação.

Duas pessoas maravilhosas: tio Zezé e tia Leni no engenho da Fábrica Santa Cruz