quinta-feira, fevereiro 11, 2010

Para o Fernando Carvalho


O tão curto convívio que eu tive com o Fernando Carvalho não é proporcional à minha admiração por ele, ainda hoje.

"O que tem que ser, tem que ser e o que tem que ser tem uma força imensa", eis as palavras dele que hoje eu compreendo melhor, bem melhor... Ou então naquela brincadeira privada ao ver meu ar triste na partida, tão bem sabia ele o que eu sentia, que quis brincar: "A Saudade está aqui!".

Por vezes penso na brutalidade de ter sido expluso da terra dele, ainda adolescente, e vir morar na terra dos pais e dos avós, mas que era até então estranha, penso nas suas inúmeras memórias de Moçambique, no seu sotaque moçambicano, aquele português africano cantado e com as vogais altas e alongadas que eu, pessoalmente e com todo o respeito, acho muito engraçado.

Penso por vezes na coragem de desposar uma moça da sua terra, é capaz que por busca e encontro das suas origens, mas tenho convicção, própria e pelos da casa dele, que o fez de todo coração, e esses longos anos têm provado a certeza da sua escolha, mais que a escolha da sua certeza.

Penso nos apertos daquela juventude adulta, penso na linda filhinha que Deus lhe deu tão cedo na vida, penso nas preocupações, penso, sobretudo, no grande e imenso coração desse bravo homem.

Ainda novo tomou a decisão de emigrar para a Suíça, mas o fez sozinho. Em Portugal ficou a mulher e a sua filha ainda pequena. E é aí que eu fico a tentar ver onde ia o seu pensamento naqueles primeiros anos, que julgo eu devem ter sido mais difíceis, quer pela adaptação ao país estranho e à língua estranha, quer pelas próprias misérias que envolvem o se encaixar numa sociedade estrangeira. Mas seguiu em frente, só na Suíça, mas não só no seu sentimento.

Mais tarde teve mais uma filha, uma alegria e também uma companhia para a mulher e a filha mais velha, mas também mais uma responsabilidade, certamente. Concebida nesse vai-e-vem Suíça-Portugal, Portugal-Suíça...

Dia a dia, mês a mês, ano a ano, uma vida inteira! Quem mais é capaz de sacrificar tanto de si mesmo, de dar da própria carne o comer dos outros que ama, de instrumentalizar-se completamente pela felicidade de outros que nem o convívio pode ter!

São todas ideias demasiado odiosas para um individualista, mas aqui tratamos de uma unidade colectiva que atende pelo nome de família, é bem assim. E por isso mesmo cabe aquele precioso ditado que diz que "quem corre por gosto não cansa".

Mais do que dramatização cruel que poderia ver no Fernando Carvalho um escravo que só umas poucas semanas por ano tem o direito de gozar da felicidade que no resto do ano é privado, como no exercício masoquista que apenas serve para que fique a saber melhor aquilo que não pode ter, trata-se, no entanto, de realizar-se como homem, de fazer-se vivo, de completar-se inteiramente, pois nada há de mais maravilhoso que viver o amor.

E por essa grande e nobilíssima virtude, pelo seu grande desprendimento e fidelidade ao ideal, mas sobretudo por esse imensurável amor, esse amor vencedor e glorioso, eu consigo compreender bem que o Fernando Carvalho é muito feliz e que deveriam haver muitos mais homens como ele, ao invés dessa multidão de infelizes egoístas a bater as cabeças nos postes das ruas.

terça-feira, fevereiro 02, 2010

Vai bugiar, meu menino

Queria que as palavras tivessem sempre o peso certo da expressão interior. Que não se desperdiçasse adjetivos, que não se guardasse uma homenagem justa, que não se calasse a verdade pelo medo, que silenciasse o abuso que vem à fora para nada, a não ser para chatear... Mas talvez essa equação exata não fosse a melhor.
As palavras estão à disposição de todos, os loucos e os sábios. E assim temos de ver nos entrar pelos ouvidos coisas escabrosas, ou ficar à expectativa de um conforto que não é dado.
Acho bem que é nesse espaço entre o excesso e a falta que se encontra o mistério de viver em sociedade.
Criaturas curiosas e bugiadoras que somos, no interior mais secreto, esse ficar sem saber aguça, esse saber o que não interessa até distrái.
Como um longo e doce passeio pela margem do rio, onde as suas serenas águas passam indiferentes à cidade e aos carros, fico à espera de alguma mensagem, de saber como foi e o que esperam do que vai vir na sua viagem até a foz da Figueira, viagem que é tão boa, bem eu sei.
Mas o rio nada diz que ouvidos como os meus possam ouvir. Vão dizer: é a água a passar, tolo! Não... enganam-se muito os que assim pensam. Há ali pormenores, há ali cores, há ali gente e há ali, portanto, história. O rio sabe, melhor que ninguém, como as coisas são. Está ali a passar a séculos imemoriais e mansamente espera e segue, sem nada dizer do que sabe.
Por vezes confunde-me a sua perene inconstância... é sempre novo a cada novo momento, mas no caminho que segue, na margem que toca, nas gentes que banha e de quem arrasta o pensamento, é sempre o mesmo rio.
Mas na generalidade, os mistérios não assumem essa forma fluvial, antes, estão nas pessoas. Muitas poderiam até ver no rio, antes desse mistério que tudo sabe e nada revela, um óbvio que são obrigadas a tolerar, como os portugueses fazem todos os dias em relação ao seu mentiroso Primeiro Ministro. As pessoas preferem outras pessoas, eis uma verdade imutável.
Mas qual o mistério que há em nós? O que guardamos que nos torna interessantes aos outros? E mais, talvez até mais importante, qual o nosso óbvio repetido e aceito que aborrece, que se intromete pelos olhos e ouvidos dos outros e nos faz o cansativo lugar comum?
Se é o rio testemunha silenciosa, sabe bem que a convicção e a fé, em Deus ou mesmo em um ideal, conduzem as vidas das pessoas que realmente importam, como o fluxo do rio conduz os barcos que na superfície se arriscam.
Nada mais somos do que o exercício das nossas bugiações. A externação do que pensamos e sentimos. Com essa forma de influenciar os outros e se deixar influenciar por eles, fazemos o mundo em que vivemos.
Ao contrário do rio, que tudo sabe, mas nada diz, nós, que temos a pretensão de que sabemos, ao menos podemos falar, comunicar, fazer perceber, a dizer, maravilhar ou aborrecer.
E em alguma medida, essa é a vida que se tem para viver.