O tão curto convívio que eu tive com o Fernando Carvalho não é proporcional à minha admiração por ele, ainda hoje.
"O que tem que ser, tem que ser e o que tem que ser tem uma força imensa", eis as palavras dele que hoje eu compreendo melhor, bem melhor... Ou então naquela brincadeira privada ao ver meu ar triste na partida, tão bem sabia ele o que eu sentia, que quis brincar: "A Saudade está aqui!".
Por vezes penso na brutalidade de ter sido expluso da terra dele, ainda adolescente, e vir morar na terra dos pais e dos avós, mas que era até então estranha, penso nas suas inúmeras memórias de Moçambique, no seu sotaque moçambicano, aquele português africano cantado e com as vogais altas e alongadas que eu, pessoalmente e com todo o respeito, acho muito engraçado.
Penso por vezes na coragem de desposar uma moça da sua terra, é capaz que por busca e encontro das suas origens, mas tenho convicção, própria e pelos da casa dele, que o fez de todo coração, e esses longos anos têm provado a certeza da sua escolha, mais que a escolha da sua certeza.
Penso nos apertos daquela juventude adulta, penso na linda filhinha que Deus lhe deu tão cedo na vida, penso nas preocupações, penso, sobretudo, no grande e imenso coração desse bravo homem.
Ainda novo tomou a decisão de emigrar para a Suíça, mas o fez sozinho. Em Portugal ficou a mulher e a sua filha ainda pequena. E é aí que eu fico a tentar ver onde ia o seu pensamento naqueles primeiros anos, que julgo eu devem ter sido mais difíceis, quer pela adaptação ao país estranho e à língua estranha, quer pelas próprias misérias que envolvem o se encaixar numa sociedade estrangeira. Mas seguiu em frente, só na Suíça, mas não só no seu sentimento.
Mais tarde teve mais uma filha, uma alegria e também uma companhia para a mulher e a filha mais velha, mas também mais uma responsabilidade, certamente. Concebida nesse vai-e-vem Suíça-Portugal, Portugal-Suíça...
Dia a dia, mês a mês, ano a ano, uma vida inteira! Quem mais é capaz de sacrificar tanto de si mesmo, de dar da própria carne o comer dos outros que ama, de instrumentalizar-se completamente pela felicidade de outros que nem o convívio pode ter!
São todas ideias demasiado odiosas para um individualista, mas aqui tratamos de uma unidade colectiva que atende pelo nome de família, é bem assim. E por isso mesmo cabe aquele precioso ditado que diz que "quem corre por gosto não cansa".
Mais do que dramatização cruel que poderia ver no Fernando Carvalho um escravo que só umas poucas semanas por ano tem o direito de gozar da felicidade que no resto do ano é privado, como no exercício masoquista que apenas serve para que fique a saber melhor aquilo que não pode ter, trata-se, no entanto, de realizar-se como homem, de fazer-se vivo, de completar-se inteiramente, pois nada há de mais maravilhoso que viver o amor.
E por essa grande e nobilíssima virtude, pelo seu grande desprendimento e fidelidade ao ideal, mas sobretudo por esse imensurável amor, esse amor vencedor e glorioso, eu consigo compreender bem que o Fernando Carvalho é muito feliz e que deveriam haver muitos mais homens como ele, ao invés dessa multidão de infelizes egoístas a bater as cabeças nos postes das ruas.