quarta-feira, janeiro 31, 2007

Rever-te

A burocracia é uma coisa detestável, não há dúvida, essencialmente por sua faceta incoerente. Vejam, por exemplo, a falta de razão ao se ter que a transferência de prontuário da Carteira Nacional de Habilitação enquanto permissão seja impossível! O que vale a dizer que se a habilitação é por uma unidade da federação, só é possível tirar a CNH definitiva nessa mesma federação, pouco importando se o titular mudou-se, se foi ao estrangeiro, se arrebentou-se... a burocracia não tem sentimentos! Em respeito a burocracia estive em Vitória por uns dias.
Viagem adiada... repensada, tudo com muita indisposição pela imposição burocrática, não poderia nunca mensurar como estava errado quanto à validade da viagem.
Na manhã de um meio de semana, bem cedo, chegava de novo na ilha de Vitória, a mesma uma vez defendida por Maria Ortiz contra os holandeses com tanta coragem há quase 400 anos.
Pareceu-me tão linda a cidade naquele dia, tão cheia de luz, tão brutalmente diferente de Londres em todos os sentidos pela sua exuberante beleza, que me levou para 2 anos atrás, quando também eu partilhava daquilo. Já ali senti-me feliz sem nenhuma razão especial.
Fui apanhar documentos na minha antiga casa, e ouvi de novo o latido da cadelinha Pituxa da dona Maria do Carmo, de novo o sorriso da matrona para mim, um grito dos fundos, de uma conhecida e familiar voz aguda, era o Matias: "Afinal quem é vivo sempre aparece!", de novo a dona Ideíde com os olhos marejados, "Ah meu filho, que saudades imensas...!" ... foi fogo que voltasse movido em muito pela questão da CNH, mas dum instante para o outro aquilo ficou em segundo plano. Na boa casa da Praia do Canto, remanesciam as flores de açucena e o cheiro perene de Domingo fresco, uma brisa marinha chegava à varanda junto comigo, senti-me em casa ao rever o sorriso do meu querido Matias.
Parti para visitar os amigos e os lugares, para dizer de surpresa que queria uma cerveja no bar do Derlei, de novo os quiosques da praia de Camburi com um nome de mulher escrito na parede, de novo a ciclovia à beira-mar que eu tanto amei como amiga dos meus domingos de manhã, de novo a minha praia de Santa Helena, quieta e introspectivia em cada fragmento do laranja do seu mar de pôr-do-sol, de novo a Curva da Jurema e as rodas de samba do Dionicão, de novo o Jardim da Pena e a Enseada do Suá, de novo o campus da UFES, de novo o centro de Vitória e o Palácio Anchieta, de novo o porto e o Penedo, de novo o parque Moscoso e a Vila Rubim, de novo ao fundo o bom e velho Mestre Álvaro.
Que alegria inesperada poder rever quem nos ama e quem amamos, como quis e pude, que bom poder abraçar, poder dizer o que se pensa livremente e ser bem percebido e aceito... mesmo depois de tudo, mesmo depois de tanto tempo, como remanesce vivo e puro o que é verdadeiro, liberdade que se ganha pela compreensão e pelo respeito.
Como ao alcance da mão, aqui e ali e em todo canto, podia sentir de novo o rapaz que eu fui ali, através dessa gente tão boa do Espírito Santo e de novo visitar-me, relembrar-me, sorrir-me, finalmente.
Em três dias fica pronta a CNH definitiva, disse-me a senhorita que atende os titulares em troca de permissão. Já nem tinha tanta importância. Mais valeu a jornada em si do que o seu propósito - bendita burocracia.

quinta-feira, janeiro 11, 2007

Cá no coração do menino

Cheguei de volta ao meu país num dia quente de dezembro. Recebi o calor como um beijo de paixão e senti-me algo feliz depois de muito tempo. Revi os pais, os amigos queridos e os parentes... eles choraram e me abraçaram sorrindo e fiquei talvez um pouco constrangido... talvez desacostumado de ser amado.
Da janela do meu quarto, de novo a antiga e querida vista da Pereira do Vale e longe o rio Glória que enquanto menino eram o que eu conhecia, junto da doce certeza de que seria um novo país o que estaria além dessa minha pátria em miniatura.
Que imenso é o nosso mundo! Como são diferentes as pessoas, os costumes, as línguas! Como muda o gosto da cerveja de acordo com o país e como as moças tem diferentes maneiras de olhar e sorrir mesmo que insinuando sempre a mesma coisa!
Londres persevera na sua sina de pólo multicultural com destemor, mesmo sem contar mais com a minha prestimosa contribuição! De certeza, houve inquietação entre os turistas noruegueses e as garçonetes gregas do Soho, preocupação entre os colegas polacos de Ealing e os futebolistas ingleses aussies e argentinos do Queen's Park, grande ausência da alegria de viver entre os turcos jogadores de bilhar do Lancaster Hotel, choro convulsivo entre os queridos fellas brasucas e tugas de Kensal Rise e Maida Vale. Mas certamente outros virão e me substituirão com talento, de modo que em poucos meses (ai de mim! em semanas) já não haverá rastro na memória deles de que estive por lá. Já eu aqui não me esqueço de nada.
Assaltam-me as lembranças das longas e frias madrugadas, errando entre as ruas do centro da capital da Grã-Bretanha, procurando razão e motivo num céu sem estrelas e, entre os velhos prédios de pedras mudas aos apelos de que desaparecessem dali de repente, quanto fatalismo nos beijos lançados no ar e quantos cacos no chão dos caminhos que eu tomei! Já não se repetem as manhãs de nevoeiro em que eu me esforçava, indo de ônibus, trem, metrô... até finalmente alcançar o meu college e mais cedo nessas mesmas manhãs quando abria os olhos e do teto branco do quarto não me vinha nenhuma razão plausível, mas ainda assim eu continuava.
Também houve surpresinhas pequeninas que me deram uns sorrisos, como foi jantar a curiosa sopa de batatas, pimentão e pimenta do reino, além de outros condimentos misteriosos, carinhosamente preparada pela minha doce Katzia, sem saudades da grande mãe Rússia? Como não sentir falta de ouvir Andrew cantando Beatles com sotaque irlandês no banho e argumentando sobre a legitimidade do IRA com os olhos a brilhar? Ou do Milan convidando todo mundo para ir no estádio do Arsenal no fim de semana sem saber onde era? Ou das piadas muçulmanas do turco Yatek quando notava meus longos pensamentos indo a lugar nenhum? E quanto aos porres de cerveja e whisky em Piccadilly junto do meu querido amigo Pecoits? E por fim, já perto de voltar ao Brasil, a maravilhosa viagem pelo continente, até a Cracóvia e até o fundo revolto dos corações irremediavelmente apaixonados!
Cá no coração do menino, saudades de tudo de bom que ficou para trás.