quinta-feira, julho 28, 2005

Dóceis simulações

Bathing, Monet Posted by Picasa
Isso de pintar abstrações pode ser defensável sob vários aspectos estéticos, de outro tipo de sensibilidade ou conforme se queira defender, entretanto não há abstração que seja tão sutil quanto os retratos para mostrar a realidade pretensamente como ela não é, fingindo que a retrata como é.
O quadro Bathing de Monet transmite-me isso: acho que não vou encontrar no mundo beira de cais com reflexos tão lindos.
Assim como os reflexos das pessoas que Monet pintou tão magistralmente não foram nunca reflexos de ninguém, há várias outras simulações que acabam por bastar a si mesmas, como dos atores que figindo que se amam conseguem emocionar as donas de casa, ou dos treinamentos de incêncio para quebrar o tédio das aulas de geometria analítica e finalmente o açúcar como substituto às autênticas alegrias para liberar as substâncias orgânicas que acalmam e trazem conforto.
Não me sai da cabeça o famoso 'Mito da Caverna' de Platão ao falar desse assunto. O grande filósofo grego viu a maioria da humanidade condenada a uma infeliz condição. Imaginou (no Livro VII de "A República", um diálogo escrito entre 380-370 a.C.) todos presos desde a infância no fundo de uma caverna, imobilizados, obrigados pelas correntes que os atavam a olharem sempre a parede em frente. O que veriam então? Supondo a seguir que existissem algumas pessoas, havendo ainda uma escassa iluminação vindo do fundo do subterrâneo, disse que os habitantes daquele triste lugar só poderiam enxergar o bruxuleio das sombras daqueles objetos, surgindo e se desafazendo diante deles. Era assim que viviam os homens, concluiu ele. Acreditavam que as imagens fantasmagóricas que apareciam aos seus olhos (que Platão chama de ídolos) eram verdadeiras, tomando o espectro pela realidade. A sua existência era pois inteiramente dominada pela ignorância (agnóia).
Na mesma medida, nossa exposição continuada às simulações pode cegar, fazer com que se tome por verdadeiro algo que, na origem, é simulado. Isso explica muita coisa, como por exemplo, por que algumas mulheres não podem ser amadas, mesmo que alguém queira amá-las: na verdade nunca receberam amor verdadeiro e não suspeitam do que seja. Quando finalmente lhe oferecem esse sentimento ela não pode reconhecê-lo, pois só recebera simulações, como os homens acorrentados no fundo da caverna não reconheceriam como um homem se vissem sua figura normalmente, mas apenas se visse a sua sombra.
Dá arrepios pensar nos efeitos provocados pela ignorância acompanhada do vício de uma simulação, mas está mais presente do que se imagina, como na cortesia dos comerciantes, recepcionistas de hotel e taxistas, ou nos sorrisos de um político em campanha, ou na face contraída de quem acusa ou defende num tribunal com paixão pela vitória, antes de ser pela justiça: todos simulam e nós apreciamos suas simulações, pois são parte integrante do nosso modo de vida, que inclusive, no aspecto do trato social, deixam as coisas mais dóceis.
Entretanto, parafrasendo meu professor de literatura ao falar dos escritores engajados numa literatura sem conteúdo, há que saber se prefere-se as remelas ou os olhos. Na mesma medida há que saber se é suficiente dar 'bom dia' às sombras, ou às pessoas que são suas donas, saber se prefere-se os reflexos na água simulados numa pintura ou ir junto a margem olhar para o próprio reflexo e compreender a beleza de descobrir-se e ao mundo.

terça-feira, julho 26, 2005

O que vou deixar

Herdar é tão comum quanto respirar se formos comparar a vida na sociedade ocidental com a vida biológica, lembrando que para respirar, claro, é preciso ar e para herdar, mais claro ainda, é preciso ter o que deixar.
Há os que herdam bens, acho que é a espécie de herança mais ordinária. Mas também há os que herdam outras coisas de valor, como um nome famoso ou um sentimento.
Isso de deixar sentimentos como herança parece-me mais bonito que deixar aos herdeiros outras coisas. É claro que há sentimentos maus, como paixões cegas, obsessões fundadas em convicções erradas, medos, pudores ridículos, e mais tanta coisa que listar não vale a pena. Outrossim, há ótimos sentimentos a deixar, como a paciência, que seguramente não é lá da minha natureza, mas que herdei de meu pai e aprendi o grande valor dessa virtude; a humildade, a belíssima condição de perceber que a única coisa realmente perene é nosso desejo de nos unir a Deus; o amor que não impõe condições, não é do tipo doente passional, um amor tão suave, tão verdadeiramente bom e doce que dá como único destino a paz; a compaixão, virtude tão esquecida pelas pessoas egoístas que se esforçam pelas ruas, sem ver que um rompante de vento, para usar linguagem metafórica, seria suficiente para tirar-lhes o conforto e a segurança e igualá-los aos pobres pedintes de quem diariamente sentem asco e desprezam.
Mais que tudo, vale dizer, queria deixar aos herdeiros que tiver, o meu grande cuidado. Não puramente uma precaução medrosa com tudo, longe de ser isso. Digo do cuidado com quem se ama. Se querem algo de mim, que levem esse sentimento tão completo que é cuidar de quem se ama com desprendimento, na medida certa de não idolatrar, mas na margem de dar de si toda esperança, mesmo a que não se tem, toda a confiança, que merece com louvor, todos os sorrisos e boa disposição em fazer sorrir. É mesmo uma boa herança, mas acho que ainda tenho algo a acrescentar ao meu espólio.
Talvez também fosse bom deixar os meus poemas de afeto, algum sobre aventura, certamente cheio de metáforas brilhantes sobre coragem, talvez fosse boa a herança de um verso rimado e feliz! É isso mesmo que me deixaria contente em deixar: rima e felicidade pois, como na vida civil não há herança de dívidas, também na vida poético-social não pode haver poesia de ressentimentos, nem sobre desgraças ou morte que tenha mesmo grande valor, esses poemas não servem para herança.
Ficarão os cheios de paz e, certamente pelo fato de que as paixões espalham-se como um cheiro de comida para quem tem fome, também os poemas cheios de paixão e amor servirão a outros para inspirarem-se, elevarem-se e experimentarem o sabor da intensidade da vida que, se por um lado custa caro, já que envolve completamente e acaba por cegar às vezes, também serve para nos mostrar a beleza íntima de quem se ama.
Por fim, assinando o meu testamento, colocaria como condição essencial que tudo fosse esbanjado ao máximo: nada de acumular, aplicar, esperar rendimentos!
Que o que eu deixe sirva para salvar os olhos dos meus herdeiros do fim triste que tem os que pouco amam, pouco suspiram, pouco acreditam e pouco desejam deixar semelhante herança.

terça-feira, julho 19, 2005

Além de uma cela digna

Talvez, se não fosse preciso ter medo, poderia-se sonhar com planos possíveis para os sentimentos delicados e plenos que nos é permitido sentir.
Acusam a união federal de captar mais de trinta por cento das riquezas que produzimos para impostos, mas talvez mais voraz que o fisco seja o medo. Ao medo pagamos mais da metade do nosso valor e, por tantas vezes quanto é possível sonhar, é capaz que se pague mais!
Se fosse uma relação matemática, seria fácil ver que a vida custa caro demais, já que os momentos realmente plenos e sem privações são muito poucos em relação aos de aperto, tristeza, humilhação e dor e uns sem pudor de desagradar a moral da sociedade, diriam que tirar a própria vida seria mesmo mais prático. Nós, entretanto, somos daqueles bichos que amam o sofrimento, tanto quanto somos capazes de amar ao trabalho e a todos os sacrifícios que somos subordinados: suicídio não fecha bem a história, o melhor é deixar-se abater pela vida. Há ainda outro elemento: o não saber do destino, a esperança de tudo reverter-se. Esses sentimentos, entre tantos outros, são de uma potência incrível e revigoram as energias e estímulos.
O bom seria ir além da condição de gente, como os do oriente acreditam: iluminar-se, chegar junto ao que é divino, saber a verdade das coisas, não saber o que é, mas que é.
Essa serenidade espiritual que afasta os demônios, típica dos santos, costuma ser percebida também nos exércitos em guerra.
Repórteres que acompanham soldados já relataram que em momentos de grande tensão, as personalidades individuais cedem lugar para um estado de atenção e de concentração que foi muito eficiente para que escapassem dos riscos de morrer em batalha, já que, segundo os repórteres "não demonstraram medo, afobamento ou preocupação com a prórpria vida em especial. Não chamaram por seus medos pessoais nem crenças. Permaneceram em alerta, tomando decisões que foram obedecidas sem questionar pelos subordinados, que depois revelaram-se corretas".
Talvez nesses instantes esses homens tenham se iluminado precisamente porque negaram o seu eu para ser um todo uniforme, o que os unia passou a ser mais forte do que o que os diferenciava. Nesse instante o medo perdeu, ali não se pagou esse detestável tributo à personalidade e esses felizes soldados tiveram mais que uma cela digna que chamar de vida, tiveram o presente de alcançar a natureza divina de tudo.
Pois, ao que é divino, não importam as coisas do mundo, não importam as pessoas, não importam as aspirações de grandeza, nem as necessidades, as paixões tornam-se tolas e mesmo os sentimentos resumem-se no sentimento de plenitude da paz, da liberdade, essa humildade própria do que é santo.
Talvez o mais curioso de tudo é que justamente quando alcançaram essa condição provisória de santos, quando finalmente ficou submersa a personalidade, junto das ambições e preocupações ordinárias, justamente ali quando morrer seria heróico, os santos provisórios não morreram, foram santos para salvarem-se e poderem ser abatidos pela vida.

sexta-feira, julho 15, 2005

Biscoito de Polvilho

Quem já provou dos biscoitos de pouvilho feitos em casa sabe do que vou falar a seguir: uma iguaria, coisa fina, da fineza que é própria do que resume um sabor, um significado e até uma saudade! Lembro do meu pai contando que seu dia mais feliz como cozinheiro foi ainda na juventude, quando, talvez por iluminação divina, combinou de uma maneira magistralmente arbirtrária os ingredientes do biscoito caseiro, tendo como resultado da fritura da massa, o biscoito de polvilho mais saboroso que já fora experimentado pela sua estirpe.
Esse mito fez com que eu tivesse na guloseima algo como uma fascinação. Foi fácil, deste modo, ceder à sugestão da minha vizinha, dona Sueli, que comprasse um pacote de polvilho doce para que ela me fizesse o tal biscoito. Aconselhou o doce, pois o azedo era indisposto! Santa sabedoria dos velhinhos octogenários! A dona Sueli tinha já os seus 84, mas conservava o bom humor e a lucidez, também o amor às coisas de cozinha, dona de hotel que fora, e de restaurante também, trata-se, portanto, de uma empreendedora reformada, assim me parece pelo seu senso de iniciativa e constante esperança em tudo.
Cheguei com o pacote em sua cozinha e entreguei-lhe com satisfação, mas a dela foi maior: que doçura a maneira como os velhos se alegram com as coisas pequenas, uma humildade que não nos foi legada pelos pais, infelizmente.
Determinada a ser julgada sozinha e receosa, evidentemente, de que eu atrapalhasse o seu emprenho em fazer o seu famoso biscoito, fiquei só observando, fazendo-lhe companhia enquanto amassava o polvilho, os ovos, o leite, a manteiga, acho que a receita leva isso, não me perguntem...
A dona Sueli sabe decorado e muito bem essas receitas, tanto que deve ser até enfadonho para ela lembrar-se de algo que cozinha há mais de 70 anos! Mas é provável que cada vez que faça o biscoito lembre-se de algo que o acompanhou no passado, como eu com o prodígio do meu pai!
Dizendo-lhe que naquela noite o programa era encher a pança de biscoito e ir dormir, ela começou a questionar sobre namoros e coisas assim e é claro que não lhe dei confiança, mas fui gentil.
Da mesma forma que com o prazer de fazer a sua receita, dona Sueli começou a discorrer longamente sobre o amor, das facetas, das paixões, das coisas más e boas e eu, empolgado em ver alguém tão idoso falar disso, fui dando confiança e acabei por perguntar se no casamento fora feliz. Já sabia que o esposo era falecido. Ela parou um instante e fitou-me friamente: "dei-lhe um tiro na barriga" disse com o olhar petrificado.
Minha primeira reação foi pensar que estava brincando, mas falava muito sério. Daí fui perguntando o que tinha acontecido, alguma razão teria para aquilo e de fato havia: a cólera da mulher que além de traída, fora ofendida. Perdeu a razão e meteu um tiro no agressor adúltero! Mas o que acabou com esse um não foi esse tiro, morreu muitos anos depois. Vale acrescentar que se sentia tão culpado por aquilo que retirou a denúncia contra a esposa na delegacia, disse-lhes "foi minha culpa, provoquei isso".
Dona Sueli tinha se casado por imposição do pai. Amava a outro.
Ficou pronto o nosso biscoito, comi e fui dormir. Mas não sem antes agradecer à minha cozinheira: pela primeira vez na vida comi uma receita de biscoito de polvilho que além dos ingredientes normais levou lágrimas de paixão de uma velhinha de 84 anos.

terça-feira, julho 12, 2005

Trouxeste a chave?

Na versão americana de "Vanilla Sky" o protagonista e seu psiquiatra, no subconsciente do primeiro, sobem por um elevador que parece que não vai parar nunca. Sobem como se estivessem na Torre de Babel que foi concluída, num prédio que projeta sua sombra sobre a curvatura da terra, como um ponteiro imenso de relógio à passagem do sol. Quando finalmente chegam, olham o horizonte com o vento na cara: é a hora da verdade.
Se cenas assim são marcantes no cinema, imaginem na vida. O cinema consegue tratar da coisa de uma maneira mais poética e fotográfica, como nesse filme. Mas mesmo um simples camponês, nos confins da Moldávia, escuta do seu destino aquela pergunta: "trouxeste a chave?". Podia ser engraçado imaginar o camponês respondendo ao destino que não tinha chave nenhuma e pensar no que resonderia de volta o destino, mas digamos que não ter a chave significa exatamente não saber o que fazer com a própria vida. Encarando a coisa ainda sob essa metáfora, seria como se o destino se desincumbisse da tarefa de existir pelo camponês. Com a pergunta sobre a chave, na verdade, lança um terrível "agora é contigo, meu amigo supersticioso". Se o camponês não quisesse aceitar, o destino daria de ombros, se fosse um bom gozador ainda desejaria um bom proveito, com aquele risinho de absoluta auto-confiança. Mas deixemos essa metáfora, já que não sou profeta oriental e nem autor de literatura barata pra enveredar por aí. A crise no peito fala mais diretamente, rompe com o seu universal e rude: trouxeste a chave?
Essa mesma chave abre alguns portões relevantes, o que eu pessoalmente mais prezo é do do mundo das palavras, onde estão todos os poemas que esperam ser escritos, segundo a "Procura da Poesia" de Carlos Drummond. A mesma decisão é que molda os poemas.
Não há vida mais heróica e ao mesmo tempo mais miserável do que a de um poeta de vocação, um verdadeiro poeta, como considero Camões, Bocage, Baudelaire, Verlaine, Rimbaud, William Blake, Florbela Espanca, Castro Alves e Vinicius de Moraes, gente que tinha algo apenas parecido com sangue nas veias, mas que não era sangue, gente que tinha algo como músculos, pele e ossos, mas também não era exatamente isso: eram poetas e tinham os bolsos cheios de chaves.
Ler esses poetas é como tentar roubar suas chaves. Mais de uma vez sonhei com alguns deles tentando me ensinar alguma coisa tola de se fazer, como segurar um copo de cerveja, costurar uma camisa rasgada por faca, tocar a superfície quieta da água sem perturbá-la e mesmo coisas fantásticas, como domar búfalos e conduzir um exército em guerra. Acho que com tudo isso diziam em código: "aí estão as tuas chaves! Pega e vai ter com teus poemas." Há uma grande verdade nisso, pois para haver algo que mereça o nome de poesia, há que se encarar o mundo e as coisas do mundo com alguma coragem e tirar delas, ainda assim, a sua sutileza, o seu histórico de paixão e contrariedades, para só então materializar a perturbadora presença do poema reclamão, doido para ir ao papel. Aí então é preciso força, pois não há poesia sem habilidade para despregar do sono imemorial as palavras, sem sensibilidade para juntar os músculos dos braços num empenho de desafogar o verso preso ao limbo, ao inconsciente, ao desejo inadmitido. Os portões do despertar têm sua chave de ouro. Sem chaves, não há poesia.

sexta-feira, julho 08, 2005

Amélias do meu Brasil

O samba "Ai, que saudades da Amélia" não é só esse hino da submissão feminina como gritam os tontos desse país, antes disso, é uma linda declaração de amor. Na letra o sambista reclama com sua mulher, diz que não sabe o que é consciência, diz que tudo que ver quer, e diz que boa era a Amélia, que passava fome ao seu lado e dizia a ele "meu filho, o que se há de fazer?", ou seja, sente saudades de um amor que era mesmo bonito por ser simples e honesto. Então coloco no subjuntivo para provocar e para me intrigar: não seria melhor se as mocinhas do Brasil fossem mais boazinhas e compreesivas, se tivessem mais persistência em não ter a menor vaidade?
Olha que não tou aqui simplesmente acusando e dizendo, "olha que tolas temos como mulheres nesse país de araque", nem por isso, meus amigos, há mocinhas por essas terras que são a própria doçura encarnada, mulheres finas e ternurentas como sonhou o nosso Álvares de Azevedo nas noites mais insanas, quando ainda se achava que a noiva casta era o sinônimo da esposa santa!
Digo simplesmente que há gente complicando muito as coisas, e vou ser justo afinal: não é só do lado das mocinhas e seus sorrisos e ambições, também, e em maior grau, os rapazinhos têm interesses vários quando colocam os olhos numa mulher. Se acaso deixam-se apaixonar, bom, aconteceu. A moça solta um grande grito: finalmente aconteceu! Noves fora, resta concluir forçosamente que toda gente parece correr em sentidos opostos, quando a grande inteligência pra um amor dar certo é que ambos imitem os cavalos de corrida: corram os dois no mesmo sentido.
Falo aqui da ambição do homem, já que sou um e conheço o suficiente para não falar muita bobagem. As da mulher, bom, elas não são de esconder tanto quanto nós escondemos, basta olhar nos seus olhos e já se vê do que se trata.
Não é lindo apaixonar-se por uma moça que prove aos outros o quanto o homem seduz bem? Linda e simpática, aos amigos inteligentes é também consciente das dores do mundo e articulada, à mãe é a filha de Beltrano! Ao pai tem lindos olhos! Balzac é que estava certo, trata-se da comédia humana, mas não percamos o foco, senão levamos bomba do leitor! Vamos lembrar que o que parece bom hoje pode ser mau amanhã!
Acontece justamente isso com o homem que casa-se com uma moça linda e apenas isso. Fato é que o rapaz foi um tolinho, não ouviu o poeta: "uma mulher tem que ter qualquer coisa além da beleza" e reparem na generosidade: qualquer coisa. Infelizmente a grande parte das beldades não tem nada além da beleza e essa é sua desgraça e de quem as ama, a sua gritante pobreza. Quando o marido se dá conta do mau negócio, acaba desfazendo o matrimônio, ou pela decadência na aparência da esposa ou por ter perdido mesmo a paciência.
Outros há que se casam por amor passivo à doce e romântica namorada que já não ama com paixão, mas tem o seu respeito e mais que isso, tem sua amizade. Esses casamentos são os melhores e nesse grupo, creio eu na minha modéstia barata, estão as Amélias, já que os homens gostam dessa disposição da mulher aos seus caprichos. Falta só uma coisinha simples: paixão e uma pitada de falta de razão. Para um homem ambicioso de vida, ingredientes fundamentais, aliás, sua fonte de sua desgraça e perdição.
Se essa doce Amélia souber a mágica de instigar amor e paixão, bom, então caminhamos para a frente: despertando amor, desmontam o que há de mau no homem. Temos a amada, humilde e louca de amor, cercada do que ela dá, querida e adorada. Há uma delícia em se amar mulheres assim, ficam as marcas dos seus dentes (rastros da sua nunca ignorada passagem) e a graça do riso vai demolindo o tempo subjuntivo: não há essa conjugação para elas, só certezas. Também uma medida boa dos medos, portanto, também desaparece: sobra uma mulher de verdade.

Velhas senhoras

Les vielles femmes, Henri Cartier-Bresson Posted by Picasa
Hoje ouvi de novo a querida Rita Pavone, conhecida no Brasil por ter gravado originalmente a "dameti un martelo" e olhe lá, mas sua voz que dá a impressão de ser muito aguda, só que não é, é linda, de fato linda justamente por isso.
Imaginei, pensando nela e na injustiça de não ser reconhecida, que eu tenho na cabeça uma imagem sua jovem, mas Rita hoje não é mais jovem, deve já ser uma senhora de 50 e alguns anos. Em seguida, veio à mente essa foto acima de Cartier-Bresson: "les vielles femmes" ou "as velhas senhoras" e também o seu truncado olhar de reprovação a tudo que não lhe agrada, sentença que dói só de imaginar.
É engraçado a contradição aparente que as senhoras lançam aos olhos atentos a esses símbolos, como se não fossem mulheres aptas ao amor, à aventura, ao riso e à desventura: as velhas senhoras parecem matronas perpetuamente ligadas a censurar e a reprimir, sem fertilidade, sem riso, sem saúde. Não são poucas as censoras idosas que na minha infância ralhavam comigo por qualquer bobagem, como da vez que tive uma dúvida de interpretação da bíblia no velho testamento. Perguntei à professora de catecismo se, já que Deus tinha ordenado à Noé e sua família para crescer e se multiplicar, tinha mandado que todos fizessem muito sexo, já que só assim é que os bebês vêm ao mundo e que, logo, o sexo não seria assim tão mal, já que estaríamos obedecendo diretamente ao Altíssimo, mas a minha professora, uma senhora que quase setenta anos, disse que eu estava subvertendo tudo e, na minha inocência, não compreendia o mal que havia no sexo feito de maneira lasciva. A pobrezinha não percebeu que não disse nunca que seria por diversão, mas justamente para reprodução, de todo jeito ficou muito sem jeito e brava, indo conversar com mamãe na outra vez que me levou à aula. Sou forçado a reconhecer, em outra medida, que mesmo as mais severas e tristes velhas senhoras guardam um jeito mais inocente, essa professora quando ruborizou com a minha observação prova essa delicadeza, em casa, por exemplo, muitas foram as vezes que vi minhas avós aprontarem-se para casamentos e festas com essa alegria inocente e pura, cheias de carinho ao distribuírem seus sorrisos formidáveis.
Hoje, porém, concluí que esse modelo está totalmente falido, a geração de coroas a que pertence Rita Pavone desbancou para sempre o mito da "velha senhora", já que as novas velhas são mesmo como as mulheres novas de agora, viveram a liberação sexual, a revolução feminina, não praticam a religião como suas mães e avós, enfim, são tão jovens no comportamento como qualquer mocinha de vinte anos, com a vantagem de saber que os sonhos são mais saborosos se forem mais práticos e que os homens se apaixonam pelo que não podem ter.
Não se vêem pelas ruas senhoras de xales pretos às costas e óculos fundos com touquinhas e sorrisos de gentileza, as senhoras modernas não são assim tão clássicas, vestem outras roupas, têm o próprio carro, não são feitas de tolas nos contratos com a mesma facilidade e talvez seja verdade que o nosso Cartier-Bresson tenha capturado um olhar extinto nos dias de hoje, talvez não exista no mundo mais essa matrona má e cheia de rancor, pronta a censurar com apóio de sua irretocada contuda moral e religiosa, não foi-se esse tempo e esse comportamento.
Imaginei agora a senhora Rita Pavone com seu martini na mãozinha direita, junto ao parapeito de algum transatlântico comentando com uma amiga que lindos jovens estavam na disco noite passada: assim são nossas novas velhas senhoras.

domingo, julho 03, 2005

Só para raros

"... Minha vida fora penosa, transtornada e infeliz, conduzindo à destruição e ao niilismo, fora amargurada pelo sal de todo destino humano, mas havia sido rica, orgulhosa e senhorial; uma vida soberba até mesmo na miséria. E anida que o resto do caminho até o ocaso fosse inteiramente desfigurado, o cerne dessa vida fora nobre, tinha feição e estirpe, não girara em torno das moedas, mas em torno das estrelas."

Hermann Hesse, O lobo da estepe
O primeiro amigo que fiz por aqui não é como eu esperava (um brinde à vida!). O vizinho que estudava filosofia na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais partilha comigo alguma estranheza aos costumes e jeitos daqui.
As disussões, entretanto, não restaram nas fronteiras das nostalgias pelas montanhas nobres que foram nosso berço comum, caminham animadas comumente pela cerveja para combater o calor a temas como o existencialismo, inatismo da personalidade, angústia pela razão, música popular e, evidentemente, poesia.
Sua triste e apática figura lembra o de um refugiado de guerra que sofre pela fome e pela humilhação e os traços ora frágeis, ora agressivos parecem marcas que se fixaram após terem expressado todas as expressões e sido assim o espelho físico de todas as torturas que seu jovem espírito sofreu. De início, essa sua débil figura foi o prenúncio de verniz intelectual estilizado e subestimei pretensiosamente o alcance de suas idéias, tomando-o por um desses que gostam de dizer que estudam filosofia, viajam a congressos da juventude comunista e em segredo conspurcam uma natureza pobre e arbitrária, emoldurada por suas baforadas entorpecidas. Enganei-me, felizmente.
Os óculos que trazia na cara não eram uma peça de seu figurino, mas a ferramenta que usava para ler, para auxiliar os olhos míopes a conversar com os seus mestres, partilhando deliciosamete as idéias avassaladoras da rica filosofia do fim do século XIX e do século XX. Isso vi não pelos livros espalhados em seu quarto e que trazia sempre à mão, mas pelo vigor com que defendeu, certa vez, que a moral cristã era um mal que a sociedade usava para seu conforto, um conforto burguês, mais ou menos igual ao que dizia Nietzsche. Idéia que eu, pessoalmente, considero agressiva, mas que mostrou também que o vizinho trazia na alma uma tristeza e uma agústia que eram filhas da sua consciência clara do mundo e das coisas.
Daquela discussão em diante, ambos ganhamos confiança para trocar essas impressões, ele declarando-se descrente das instituições e dos sistemas ordenantes, eu partilhando minha angústia do superficialismo dos sentimentos e da pequenez das vontades e objetivos que era o normal, ambos nos sentindo, de fato, pessoas alijadas do mundo burguês, e emprego essa palavra no seu pior sentido: um mundo de aparências, conveniências, culto à posse e egoísmo endeusado a ponto de ser considerado normal não ser solidário.
Fomos a um clube de serviço para universitários no sábado, como o que eu freqüentava em Juiz de Fora, e argumentando com o vizinho que também no meio da sociedade de valores pequenos e mesquinhez há muita gente que não se deixa abater, que é persistente e que nós mesmos não temos de nos atormentar, temos sim de viver com plenitude a vida misteriosa que teremos antes de morrer e ter por cima uma lage e embaixo, definitivamente, a solidão.
Discrente do meu otimismo, disse seguidas vezes o seu costumeiro "será?" e eu ri intimamente e por fora dizendo que sim, que temos a grandessíssima vantagem de não viver vidas tolas e inúteis e que nos esperava um destino cheio de surpresa (talvez a coisa mais certa de se dizer de algum destino). Lembrei-lhe ainda que essa liberdade, se custava o tormento de amargurar-se com a feiura do mundo e com angústias existenciais, permitia-nos rir muito mais que as outras pessoas e secretamente, no mínimo, gargalhar das circunstâncias do acaso e mesmo debochar das pessoas que se elevam acima dos outros, desconhecedores da nossa condição de macacos muitíssimo inteligentes, mas ainda macacos.
Não lhe convenci, no fundo talvez pretendesse convencer a mim mesmo novamente e cada vez mais dessa idéia, mas ele também lembrou-se que muitas vezes tentou ver esse prêmio como um consolo por ter partido do mundo das idéias simplistas e da alienação e me disse isso. Disse enfim, talvez para que finalmente ele sorrisse: "vivemos uma realidade que é só para raros", ao que ele respondeu que os loucos são raros, daí foi minha vez de sorrir.

sexta-feira, julho 01, 2005

Rivais na miséria

A avenida Nossa Senhora da Penha também é chamada reta da Penha, num apelido ou talvez porque sendo bem reta, vê-se no horizonte elevado o mosteiro de Nossa Senhora da Penha, ainda não descobri a origem precisa. Movimentada e pulsante, é uma das artérias mais importantes do tráfego automobilistíco de Vitória, congregando também o setor de serviços e o comércio: tudo muito bem organizado e funcionando.
Um olhar quebrou essa imagem, talvez pela minha piedade burguesa, mas acho que antes disso pela estranheza melancólica da situação.
Saindo de uma das padarias dessa avenida, no ponto em que ela serve para separar os bairros de Santa Helena e Praia do Canto, tinha em mente o sonho conformado de um banho quente e de descanso, sem lançar-me a questões existenciais, nem pensamentos profundos, agia, evidentemente, de maneira mais mecânica, nem por isso tinha a percepção do mundo alienada.
O relógio marcava 21:40 horas e e fiquei olhando a avenida após pagar pelo delicioso café com creme e esfirras com que acabara de me deliciar. O café foi um estimulante, suspeito bastante, eficaz para perceber aquela cena quando, ao aproximar-se o caminhão do departamento de limpeza urbana, apressaram-se simultaneamente o padeiro com um pequeno saco de pães velhos e uma família de indigentes que na calçada acompanhava esses gestos como que se tivera esperado por eles longas horas e também com aqueles gestos e olhares que precedem a execução das coisas rotineiras que não se faz por prazer. Com passo determinado e sem desviar o olhar um único instante, o padeiro entregou nas mãos de um dos lixeiros o pequeno saco, e veio ao encontro dos dois o pai da família de pedintes com olhar atônito e quase desesperado. O padeiro, depois de ter entregue os pães, voltou ao seu posto, certamente tendo obedecido ordens de um patrão que não desejava mendigos em frente à sua padaria, mesmo que perto das 10 horas da noite, à espera de uma possível e ansiada refeição que não podia ser comprada como fora o convencimento do padeiro através de seu salário. O lixeiro, por sua vez, tomou para si os pães na cabina do caminhão e deu ordem ao motorista de partir, mas antes de subir, agarrado pelo braço pelo chefe da família, trocaram olhares que foram de gelar a alma: o pedinte arregalava os olhos e contraía a face, numa mistura de súplica e horror, o lixeiro, porém, tinha os olhos baixos, semicerrados, olhando placidamente a cena que parecia repugnar totalmente e por um momento, olhando a sua volta, percebeu que eu assistia a tudo e de dentro do saco de pães, tirou três ou quatro, passando-os abruptamente às mãos do indigente. Logo que o caminhão partiu os filhos e a mulher foram correr pra junto do pai, que beijando a cabecinha dos filhos, distribuía o seu prêmio. Provavelmente acostumado a receber olhares de repugnância, aquele do lixeiro não lhe comoveu nada, na verdade estava feliz, tinha dado de comer à família.
Aos meus olhos, mais que piedade, ficou aquele olhar paralizante do lixeiro, homem de ordenado pequeno, que conhece as durezas e dificuldades da vida, com um ímpeto feroz de negar alguns pães velhos a uma família de famintos, de deixar àquele pai pedinte um olhar cheio de desprezo e de pretensão, alheio à máxima de que a pobreza compartilhada é menos pobre.
Os olhos do lixeiro, naquela noite, foram o grande absurdo de haver soberba e rivalidade entre o pobre e o miserável, foram a miséria de compaixão que é dona do mundo e, então, a avenida Nossa Senhora da Penha tornou-se verdadeiramente cosmopolita.