Hermann Hesse, O lobo da estepe
O primeiro amigo que fiz por aqui não é como eu esperava (um brinde à vida!). O vizinho que estudava filosofia na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais partilha comigo alguma estranheza aos costumes e jeitos daqui.
As disussões, entretanto, não restaram nas fronteiras das nostalgias pelas montanhas nobres que foram nosso berço comum, caminham animadas comumente pela cerveja para combater o calor a temas como o existencialismo, inatismo da personalidade, angústia pela razão, música popular e, evidentemente, poesia.
Sua triste e apática figura lembra o de um refugiado de guerra que sofre pela fome e pela humilhação e os traços ora frágeis, ora agressivos parecem marcas que se fixaram após terem expressado todas as expressões e sido assim o espelho físico de todas as torturas que seu jovem espírito sofreu. De início, essa sua débil figura foi o prenúncio de verniz intelectual estilizado e subestimei pretensiosamente o alcance de suas idéias, tomando-o por um desses que gostam de dizer que estudam filosofia, viajam a congressos da juventude comunista e em segredo conspurcam uma natureza pobre e arbitrária, emoldurada por suas baforadas entorpecidas. Enganei-me, felizmente.
Os óculos que trazia na cara não eram uma peça de seu figurino, mas a ferramenta que usava para ler, para auxiliar os olhos míopes a conversar com os seus mestres, partilhando deliciosamete as idéias avassaladoras da rica filosofia do fim do século XIX e do século XX. Isso vi não pelos livros espalhados em seu quarto e que trazia sempre à mão, mas pelo vigor com que defendeu, certa vez, que a moral cristã era um mal que a sociedade usava para seu conforto, um conforto burguês, mais ou menos igual ao que dizia Nietzsche. Idéia que eu, pessoalmente, considero agressiva, mas que mostrou também que o vizinho trazia na alma uma tristeza e uma agústia que eram filhas da sua consciência clara do mundo e das coisas.
Daquela discussão em diante, ambos ganhamos confiança para trocar essas impressões, ele declarando-se descrente das instituições e dos sistemas ordenantes, eu partilhando minha angústia do superficialismo dos sentimentos e da pequenez das vontades e objetivos que era o normal, ambos nos sentindo, de fato, pessoas alijadas do mundo burguês, e emprego essa palavra no seu pior sentido: um mundo de aparências, conveniências, culto à posse e egoísmo endeusado a ponto de ser considerado normal não ser solidário.
Fomos a um clube de serviço para universitários no sábado, como o que eu freqüentava em Juiz de Fora, e argumentando com o vizinho que também no meio da sociedade de valores pequenos e mesquinhez há muita gente que não se deixa abater, que é persistente e que nós mesmos não temos de nos atormentar, temos sim de viver com plenitude a vida misteriosa que teremos antes de morrer e ter por cima uma lage e embaixo, definitivamente, a solidão.
Discrente do meu otimismo, disse seguidas vezes o seu costumeiro "será?" e eu ri intimamente e por fora dizendo que sim, que temos a grandessíssima vantagem de não viver vidas tolas e inúteis e que nos esperava um destino cheio de surpresa (talvez a coisa mais certa de se dizer de algum destino). Lembrei-lhe ainda que essa liberdade, se custava o tormento de amargurar-se com a feiura do mundo e com angústias existenciais, permitia-nos rir muito mais que as outras pessoas e secretamente, no mínimo, gargalhar das circunstâncias do acaso e mesmo debochar das pessoas que se elevam acima dos outros, desconhecedores da nossa condição de macacos muitíssimo inteligentes, mas ainda macacos.
Não lhe convenci, no fundo talvez pretendesse convencer a mim mesmo novamente e cada vez mais dessa idéia, mas ele também lembrou-se que muitas vezes tentou ver esse prêmio como um consolo por ter partido do mundo das idéias simplistas e da alienação e me disse isso. Disse enfim, talvez para que finalmente ele sorrisse: "vivemos uma realidade que é só para raros", ao que ele respondeu que os loucos são raros, daí foi minha vez de sorrir.