terça-feira, julho 26, 2005

O que vou deixar

Herdar é tão comum quanto respirar se formos comparar a vida na sociedade ocidental com a vida biológica, lembrando que para respirar, claro, é preciso ar e para herdar, mais claro ainda, é preciso ter o que deixar.
Há os que herdam bens, acho que é a espécie de herança mais ordinária. Mas também há os que herdam outras coisas de valor, como um nome famoso ou um sentimento.
Isso de deixar sentimentos como herança parece-me mais bonito que deixar aos herdeiros outras coisas. É claro que há sentimentos maus, como paixões cegas, obsessões fundadas em convicções erradas, medos, pudores ridículos, e mais tanta coisa que listar não vale a pena. Outrossim, há ótimos sentimentos a deixar, como a paciência, que seguramente não é lá da minha natureza, mas que herdei de meu pai e aprendi o grande valor dessa virtude; a humildade, a belíssima condição de perceber que a única coisa realmente perene é nosso desejo de nos unir a Deus; o amor que não impõe condições, não é do tipo doente passional, um amor tão suave, tão verdadeiramente bom e doce que dá como único destino a paz; a compaixão, virtude tão esquecida pelas pessoas egoístas que se esforçam pelas ruas, sem ver que um rompante de vento, para usar linguagem metafórica, seria suficiente para tirar-lhes o conforto e a segurança e igualá-los aos pobres pedintes de quem diariamente sentem asco e desprezam.
Mais que tudo, vale dizer, queria deixar aos herdeiros que tiver, o meu grande cuidado. Não puramente uma precaução medrosa com tudo, longe de ser isso. Digo do cuidado com quem se ama. Se querem algo de mim, que levem esse sentimento tão completo que é cuidar de quem se ama com desprendimento, na medida certa de não idolatrar, mas na margem de dar de si toda esperança, mesmo a que não se tem, toda a confiança, que merece com louvor, todos os sorrisos e boa disposição em fazer sorrir. É mesmo uma boa herança, mas acho que ainda tenho algo a acrescentar ao meu espólio.
Talvez também fosse bom deixar os meus poemas de afeto, algum sobre aventura, certamente cheio de metáforas brilhantes sobre coragem, talvez fosse boa a herança de um verso rimado e feliz! É isso mesmo que me deixaria contente em deixar: rima e felicidade pois, como na vida civil não há herança de dívidas, também na vida poético-social não pode haver poesia de ressentimentos, nem sobre desgraças ou morte que tenha mesmo grande valor, esses poemas não servem para herança.
Ficarão os cheios de paz e, certamente pelo fato de que as paixões espalham-se como um cheiro de comida para quem tem fome, também os poemas cheios de paixão e amor servirão a outros para inspirarem-se, elevarem-se e experimentarem o sabor da intensidade da vida que, se por um lado custa caro, já que envolve completamente e acaba por cegar às vezes, também serve para nos mostrar a beleza íntima de quem se ama.
Por fim, assinando o meu testamento, colocaria como condição essencial que tudo fosse esbanjado ao máximo: nada de acumular, aplicar, esperar rendimentos!
Que o que eu deixe sirva para salvar os olhos dos meus herdeiros do fim triste que tem os que pouco amam, pouco suspiram, pouco acreditam e pouco desejam deixar semelhante herança.