A avenida Nossa Senhora da Penha também é chamada reta da Penha, num apelido ou talvez porque sendo bem reta, vê-se no horizonte elevado o mosteiro de Nossa Senhora da Penha, ainda não descobri a origem precisa. Movimentada e pulsante, é uma das artérias mais importantes do tráfego automobilistíco de Vitória, congregando também o setor de serviços e o comércio: tudo muito bem organizado e funcionando.
Um olhar quebrou essa imagem, talvez pela minha piedade burguesa, mas acho que antes disso pela estranheza melancólica da situação.
Saindo de uma das padarias dessa avenida, no ponto em que ela serve para separar os bairros de Santa Helena e Praia do Canto, tinha em mente o sonho conformado de um banho quente e de descanso, sem lançar-me a questões existenciais, nem pensamentos profundos, agia, evidentemente, de maneira mais mecânica, nem por isso tinha a percepção do mundo alienada.
O relógio marcava 21:40 horas e e fiquei olhando a avenida após pagar pelo delicioso café com creme e esfirras com que acabara de me deliciar. O café foi um estimulante, suspeito bastante, eficaz para perceber aquela cena quando, ao aproximar-se o caminhão do departamento de limpeza urbana, apressaram-se simultaneamente o padeiro com um pequeno saco de pães velhos e uma família de indigentes que na calçada acompanhava esses gestos como que se tivera esperado por eles longas horas e também com aqueles gestos e olhares que precedem a execução das coisas rotineiras que não se faz por prazer. Com passo determinado e sem desviar o olhar um único instante, o padeiro entregou nas mãos de um dos lixeiros o pequeno saco, e veio ao encontro dos dois o pai da família de pedintes com olhar atônito e quase desesperado. O padeiro, depois de ter entregue os pães, voltou ao seu posto, certamente tendo obedecido ordens de um patrão que não desejava mendigos em frente à sua padaria, mesmo que perto das 10 horas da noite, à espera de uma possível e ansiada refeição que não podia ser comprada como fora o convencimento do padeiro através de seu salário. O lixeiro, por sua vez, tomou para si os pães na cabina do caminhão e deu ordem ao motorista de partir, mas antes de subir, agarrado pelo braço pelo chefe da família, trocaram olhares que foram de gelar a alma: o pedinte arregalava os olhos e contraía a face, numa mistura de súplica e horror, o lixeiro, porém, tinha os olhos baixos, semicerrados, olhando placidamente a cena que parecia repugnar totalmente e por um momento, olhando a sua volta, percebeu que eu assistia a tudo e de dentro do saco de pães, tirou três ou quatro, passando-os abruptamente às mãos do indigente. Logo que o caminhão partiu os filhos e a mulher foram correr pra junto do pai, que beijando a cabecinha dos filhos, distribuía o seu prêmio. Provavelmente acostumado a receber olhares de repugnância, aquele do lixeiro não lhe comoveu nada, na verdade estava feliz, tinha dado de comer à família.
Aos meus olhos, mais que piedade, ficou aquele olhar paralizante do lixeiro, homem de ordenado pequeno, que conhece as durezas e dificuldades da vida, com um ímpeto feroz de negar alguns pães velhos a uma família de famintos, de deixar àquele pai pedinte um olhar cheio de desprezo e de pretensão, alheio à máxima de que a pobreza compartilhada é menos pobre.
Os olhos do lixeiro, naquela noite, foram o grande absurdo de haver soberba e rivalidade entre o pobre e o miserável, foram a miséria de compaixão que é dona do mundo e, então, a avenida Nossa Senhora da Penha tornou-se verdadeiramente cosmopolita.