segunda-feira, junho 27, 2005
Pequeno Poema de Amor
Imerso no pesadelo da morte de meu tio Roberto Valério, voltava subitamente para casa após a trágica manhã, quando, na faculdade de direito, fui informado de seu "grave acidente".
4 horas de viagem e a angústia e a solidão do mundo inteiro num olhar para as pastagens, culturas de milho, casas de lavradores longe, longe... Então já duvidava que fosse meu tio, seria mesmo meu pai? Não diriam pois poderia ficar louco... daí disseram que se acidentara gravimente o meu tio! Mas chegando à cidade natal, corri à casa da avó paterna e ela confirmou com resignação a morte do meu tio materno.
Depois em casa, espectros de gentes vagavam olhando o chão imóvel como se ele se mexesse e o grande amor da minha raça à família estava esgotando paulatinamente a razão de todos. Sentei-me no sofá abatido por esse mal, imaginei o morto e imaginei o quanto significava sua morte: "um muito, um muito" repetia o pensamento reverberando a conclusão mais certa em vista da jovem família que ele constituíra.
Mas então, elevado à grande crina da loucura, da demência em revolta, da cólera pelo injusto, surgiu à minha lembrança a figura dela e de seu sorriso incomensuravelmente lindo: minha avó Nina. Logo o luto pelo meu tio foi rivalizando com a piedade pelo sofrimento da mãe do morto e como se o meu corpo fosse segurado por mãos imensas e quentes, suspirei um alívio doce e a ardência nos olhos passou devagarinho, disse seu nome de novo, pensei nela e de novo era o menininho que vagava à tarde pela sua casa com cheiro de amor.
A veemência com que ralhava comigo quando aprontava alguma estrepolia, não era nem de longe tão marcante quanto a doçura dos seus olhares, a precisão dos seus gestos e a grande beleza do seu sorrir de alegria: Nina, pensei mais uma vez, minha mãezinha, mais que mãe de minha mãe. Uma mulher que tão útil ao mundo que exerceu a maternidade a tantos quantos lhe coube dar educação e afeto: foi mãe dos seus irmãozinhos quando a sua mãe morreu. Foi mãe, principalmente, dos seus filhos quando teve a própria família e mãe de si mesma, quando um deles morreu na infância. Foi mãe, por último e para minha grande sorte, dos seus netos, quando a modernidade impôs o trabalho fora de casa às mulheres, como minha mãe, e então nos conhecemos.
Conforme os anos de maturidade chegaram, sua figura tomou o porte que sempre teve, que o olhar baixo de criança não consegue ver, e a grandeza de seus sentimentos de amor e generosidade rapidamente tornaram-se causas confiáveis de muitos de meus sentimentos correlatos, como que numa adaptação criteriosa do que a vida deve ser a partir da verdade de vê-la de vestido na cozinha preparando o jantar, batendo com força contra a panela a colher grande que serviu para refogar o arroz.
À noite, na casa do morto, finalmente encontrei-me com ela novamente. Sentada à beira da cama, rodeada pela família e entupida de calmantes, tinha olhos, não da original esperança e fidalguia que nos transmitiu com orgulho, mas de um abatimento cruel e sem caminho, de uma morte que tudo quer para si e nada dá, de uma tristeza que era propriamente o fim de tudo.
Na sala o corpo frio e costurado do meu tio, morto num acidente motociclístico, parecia sereno a ponto de consolar os que choravam por ele, minha mãe, minhas tias e tios, meus primos.
Eu chorava baixinho pela minha avó, pelo seu perturbado coração de mãe que perdia uma parte de si subitamente, pela honorável condição de mãe de três gerações de uma família, pela graça indescritível do seu olhar que o desespero roubara naquele dia.
Então, como que numa eureca mórbida, compreendi que toda minha vida provinha da luz de seus olhos, que tinha virado gente em algum dia da primeira infância quando fui invadido graciosamente pelo amor de minha avó e, tateando como um anão bêbado e feliz, comecei a conjugar o mundo em versos que não dizia para ninguém, celebrando solitariamente a miséria de uma natureza absoluta e irremediavelmente sedenta de alegria e paixão.
Alguns meses depois, procurando o significado dos nomes dos familiares, fui olhar o dela. Seu nome de batismo é Édila, que vem de Idílio. Seu significado me perturbou mais do que poderia supor, de maneira que o pensamento foi tomado por longos dias na sua repetição incançável. O significado do nome de minha avó Nina, vejam bem meus amigos, é "pequeno poema de amor".