Da primeira vez que me deparei com essa foto tinha 15 anos. Era a foto de promoção do livro "Terra", que seria lançado em 1997, de Sebastião Salgado, um dos maiores fotógrafos do mundo.
A imagem me impressionou tanto que fiz uma montagem no meu caderno do 2º ano com ela em destaque, à direita do centro da capa da frente.
Como se fosse agora, lembro-me de comungar com essas sombracelhas contraídas de leve, na expressão de um medo que não chega a ser tão grande a ponto de ser um desespero, mas de tão real, parece mesmo o prenúncio de um choro e era sempre assim quando admirada essa menina. Havia entre nós, a foto e eu, um conúbio secreto, sendo ela o espelho de um coração confuso e pretensioso ante a certeza de sua pequenez no mundo e junto de gárgulas, marcas de roupa e fotos outras extravagâncias de adolescente, poucos sabiam que aquela foto inocente era o germe latente da minha consciência de todos os absurdos que o mundo tinha e mais que isso, da consciência de que eu estava sim inserido nesses absurdos: era meu espelho mais autêntico.
Com essa visão parcial e emocionada, guardei a impressão por alguns anos da obra de Sebastião Salgado como algo santificado nessa sensibilidade imensa das coisas do mundo até que pude conhecer todas as fotos do "Terra". Em excurção por acampamentos do Movimento dos Sem Terra e pelo sémi-árido brasileiro, o fotógrafo pode testemunhou a grande miséria que nos faz envergonhados tantas vezes, a grandissíssima pobreza dos camponeses e seu grito inflamado por dignidade e atenção dos poderes públicos para a sua condição de cidadãos privados do exercício pleno da cidadania.
Diante das fotos em preto e branco sinceramente me senti mal pela exposição daquela miséria, não que fosse feio, pelo contrário, os momentos captados eram todos significativos, bonitos, mas a exploração daquilo... digamos que os modelos de Salgado não foram tão bem pagos quanto esses que vestem grifes famosas na TV ou nas passarelas, nem tampouco recebiam os elogios pela performance, certamente mais merecidos e sinceros que os que recebem os modelos profissionais.
Depois de ver as fotos do livro lembrei-me da menina, já tinham-se passado 4 anos, devia ser uma adolescente então e eu me perguntara se aquele rosto lindo e sofrido, admirado no mundo inteiro sabia de sua fama, se sabia que a sinceridade e grandiosidade da sua expressão tinham marcado uma fase da história social brasileira... de certo que não, que não tirara proveito daquilo em nenhuma medida, foi fotografada como uma paisagem, apesar de ser um ser humano. Hoje já uma jovem adulta, talvez já com 18 anos ou mais, talvez tenha se casado com algum feliz contemplado da reforma agrária brasileira, ou mesmo conseguido para si um lote e lá se estabelecido com alguém que tivesse sobrado da família ou talvez grata por ter sido adotada pelo MST ande a organizar invasões de terra e a pressionar o governo por uma reforma agrária mais justa, quem sabe? Fato é que não sabemos dela, eu ao menos não sei, e ela não sabe de nós, mas sobrou para a eternidade essa sua expressão de menina que foi o espelho do meu coração por longos anos.
Viva a infância nacional, mesmo orfã e engajada politicamente.