sexta-feira, julho 15, 2005

Biscoito de Polvilho

Quem já provou dos biscoitos de pouvilho feitos em casa sabe do que vou falar a seguir: uma iguaria, coisa fina, da fineza que é própria do que resume um sabor, um significado e até uma saudade! Lembro do meu pai contando que seu dia mais feliz como cozinheiro foi ainda na juventude, quando, talvez por iluminação divina, combinou de uma maneira magistralmente arbirtrária os ingredientes do biscoito caseiro, tendo como resultado da fritura da massa, o biscoito de polvilho mais saboroso que já fora experimentado pela sua estirpe.
Esse mito fez com que eu tivesse na guloseima algo como uma fascinação. Foi fácil, deste modo, ceder à sugestão da minha vizinha, dona Sueli, que comprasse um pacote de polvilho doce para que ela me fizesse o tal biscoito. Aconselhou o doce, pois o azedo era indisposto! Santa sabedoria dos velhinhos octogenários! A dona Sueli tinha já os seus 84, mas conservava o bom humor e a lucidez, também o amor às coisas de cozinha, dona de hotel que fora, e de restaurante também, trata-se, portanto, de uma empreendedora reformada, assim me parece pelo seu senso de iniciativa e constante esperança em tudo.
Cheguei com o pacote em sua cozinha e entreguei-lhe com satisfação, mas a dela foi maior: que doçura a maneira como os velhos se alegram com as coisas pequenas, uma humildade que não nos foi legada pelos pais, infelizmente.
Determinada a ser julgada sozinha e receosa, evidentemente, de que eu atrapalhasse o seu emprenho em fazer o seu famoso biscoito, fiquei só observando, fazendo-lhe companhia enquanto amassava o polvilho, os ovos, o leite, a manteiga, acho que a receita leva isso, não me perguntem...
A dona Sueli sabe decorado e muito bem essas receitas, tanto que deve ser até enfadonho para ela lembrar-se de algo que cozinha há mais de 70 anos! Mas é provável que cada vez que faça o biscoito lembre-se de algo que o acompanhou no passado, como eu com o prodígio do meu pai!
Dizendo-lhe que naquela noite o programa era encher a pança de biscoito e ir dormir, ela começou a questionar sobre namoros e coisas assim e é claro que não lhe dei confiança, mas fui gentil.
Da mesma forma que com o prazer de fazer a sua receita, dona Sueli começou a discorrer longamente sobre o amor, das facetas, das paixões, das coisas más e boas e eu, empolgado em ver alguém tão idoso falar disso, fui dando confiança e acabei por perguntar se no casamento fora feliz. Já sabia que o esposo era falecido. Ela parou um instante e fitou-me friamente: "dei-lhe um tiro na barriga" disse com o olhar petrificado.
Minha primeira reação foi pensar que estava brincando, mas falava muito sério. Daí fui perguntando o que tinha acontecido, alguma razão teria para aquilo e de fato havia: a cólera da mulher que além de traída, fora ofendida. Perdeu a razão e meteu um tiro no agressor adúltero! Mas o que acabou com esse um não foi esse tiro, morreu muitos anos depois. Vale acrescentar que se sentia tão culpado por aquilo que retirou a denúncia contra a esposa na delegacia, disse-lhes "foi minha culpa, provoquei isso".
Dona Sueli tinha se casado por imposição do pai. Amava a outro.
Ficou pronto o nosso biscoito, comi e fui dormir. Mas não sem antes agradecer à minha cozinheira: pela primeira vez na vida comi uma receita de biscoito de polvilho que além dos ingredientes normais levou lágrimas de paixão de uma velhinha de 84 anos.