Na versão americana de "Vanilla Sky" o protagonista e seu psiquiatra, no subconsciente do primeiro, sobem por um elevador que parece que não vai parar nunca. Sobem como se estivessem na Torre de Babel que foi concluída, num prédio que projeta sua sombra sobre a curvatura da terra, como um ponteiro imenso de relógio à passagem do sol. Quando finalmente chegam, olham o horizonte com o vento na cara: é a hora da verdade.
Se cenas assim são marcantes no cinema, imaginem na vida. O cinema consegue tratar da coisa de uma maneira mais poética e fotográfica, como nesse filme. Mas mesmo um simples camponês, nos confins da Moldávia, escuta do seu destino aquela pergunta: "trouxeste a chave?". Podia ser engraçado imaginar o camponês respondendo ao destino que não tinha chave nenhuma e pensar no que resonderia de volta o destino, mas digamos que não ter a chave significa exatamente não saber o que fazer com a própria vida. Encarando a coisa ainda sob essa metáfora, seria como se o destino se desincumbisse da tarefa de existir pelo camponês. Com a pergunta sobre a chave, na verdade, lança um terrível "agora é contigo, meu amigo supersticioso". Se o camponês não quisesse aceitar, o destino daria de ombros, se fosse um bom gozador ainda desejaria um bom proveito, com aquele risinho de absoluta auto-confiança. Mas deixemos essa metáfora, já que não sou profeta oriental e nem autor de literatura barata pra enveredar por aí. A crise no peito fala mais diretamente, rompe com o seu universal e rude: trouxeste a chave?
Essa mesma chave abre alguns portões relevantes, o que eu pessoalmente mais prezo é do do mundo das palavras, onde estão todos os poemas que esperam ser escritos, segundo a "Procura da Poesia" de Carlos Drummond. A mesma decisão é que molda os poemas.
Não há vida mais heróica e ao mesmo tempo mais miserável do que a de um poeta de vocação, um verdadeiro poeta, como considero Camões, Bocage, Baudelaire, Verlaine, Rimbaud, William Blake, Florbela Espanca, Castro Alves e Vinicius de Moraes, gente que tinha algo apenas parecido com sangue nas veias, mas que não era sangue, gente que tinha algo como músculos, pele e ossos, mas também não era exatamente isso: eram poetas e tinham os bolsos cheios de chaves.
Ler esses poetas é como tentar roubar suas chaves. Mais de uma vez sonhei com alguns deles tentando me ensinar alguma coisa tola de se fazer, como segurar um copo de cerveja, costurar uma camisa rasgada por faca, tocar a superfície quieta da água sem perturbá-la e mesmo coisas fantásticas, como domar búfalos e conduzir um exército em guerra. Acho que com tudo isso diziam em código: "aí estão as tuas chaves! Pega e vai ter com teus poemas." Há uma grande verdade nisso, pois para haver algo que mereça o nome de poesia, há que se encarar o mundo e as coisas do mundo com alguma coragem e tirar delas, ainda assim, a sua sutileza, o seu histórico de paixão e contrariedades, para só então materializar a perturbadora presença do poema reclamão, doido para ir ao papel. Aí então é preciso força, pois não há poesia sem habilidade para despregar do sono imemorial as palavras, sem sensibilidade para juntar os músculos dos braços num empenho de desafogar o verso preso ao limbo, ao inconsciente, ao desejo inadmitido. Os portões do despertar têm sua chave de ouro. Sem chaves, não há poesia.