terça-feira, junho 05, 2007

Um olhar, um encontro


Cá em cima da escrivaninha não pude deixar de ignorar a matinal, fortuita e curiosa posição do pequenino dragão da Cracóvia com cara de tonto e do belo anjinho de gesso londrino, todo pintado à mão, a olharem-se.
Essas coisinhas, que servem para lembrarmos dos lugares por onde passamos, que sempre curti ter à vista pelo presente que são de amigos queridos, excederam um bocado a sua natureza e me despertaram um sorriso novo.
Em parte, as expressões vivas são mérito da inspiração dos criadores para fazê-los indivíduos, mas a cena dos dois a se olhar criou um conjunto belo onde não houve participação voluntária de ninguém, ao menos acredito que a faxineira tenha refletido muito para colocá-los nessa posição.
Entre aqueles olhos que não guardam nem nunca guardaram nenhuma vida biológica, quanta presença de meiguice e de encanto ao voltar a maré alta da minha surpresa pelo inusitado.
Diante dessa cumplicidade, levantaram-se algumas lembranças do calabouço fundo! Quanto olhar retido na reflexão de um encontro falhado, na esperança de remissão de uma mágoa de amor, na último sorriso antes da partida, aquele olhar era o que via... Quando dois seres se olham eles também se encontram um no outro, eles encontram-se no despropositado de si mesmos.
Nesses olhos, nada há da dureza que desprendem o modo de olhar dos chichisbéus de mulheres, dos falsos chimangos, dos calabares e dos sinecuros, dos homens da sigla e da cifra: não há nenhuma falsa pureza, pois tudo quanto é legítimo não é forçado.
É assim que a vida por vezes concede alguns olhares lindos por puro acaso, o que os faz serem ainda melhores: uma gentileza inesperada, um canto melodioso, o ato de gratidão desinteressada e a carta de amor cheia de esperanças, tudo isso dão grandes e belos olhares de acaso e qual paixão não despertam! Olhares assim são pais ausentes de grandes loucuras!
Hoje, dessa maneira à minha frente, as inocentes miniaturas, a darem-se assim um olhar dos mais circunstanciais e surpreendentes, parecem caídos de amor, perdidos no mundo, doidos por um beijo ou mesmo por alguém que lhes diga: "vivam isso sem medos, sejam felizes!" Mas os pobrezinhos não podem fazer nada diante da sua condição de seres inanimados, mas o mais curioso de tudo é que mesmo os seres animados, quando deparam-se com um olhar assim, por vezes agem como os meus amiguinhos aqui na escrivaninha, não agem e, numa triste similaridade com eles, ficam um pouco mais inanimados.
Como me aborrece a falta de iniciativa, coloquei cada qual no seu canto, cada qual a olhar numa direção, cada qual na sua solidão e não há mais nenhuma expectativa, nenhum sonho partilhado, nenhum olhar, não há nada. De repente, não mais que de repente, são de novo apenas dois seres inanimados.