terça-feira, junho 26, 2007

Amarra teu coração ao meu


Guardião da entrada da igreja de Santo Adalberto, Cracóvia


LXXIX


De noite, amada, amarra teu coração ao meu
e que eles no sonho derrotem as trevas
como um tambor duplo combatendo no bosque
contra o espesso muro de folhas molhadas.

Noturna travessia, brasa negra do sonho
interceptando o fio das uvas terrestres
com a pontualidade de um trem descabelado
que sombra e pedras frias sem cessar arrastasse.

Por isso, amor, amarra-me ao movimento puro,
à tenacidade de que em teu peito bate
com as asas de um cisne submergido,

para que às perguntas estreladas do céu
responda nosso sonho com uma só chave
com uma só porta fechada pela sombra.


Pablo Neruda
in "Cem Sonetos de Amor"
Tradução de Carlos Nejar

Estava a passear pela Praça Maior da Cracóvia naquela fria tarde de domingo, a olhar para os prédios do entorno à velha praça medieval e a calar talvez mais fundo as lembranças e os sonhos, mas mais alto calou-me a figura de dois guardiões, que na humildade de seu segredo tinham toda a virilidade do mundo, eis que lá há duas estátuas de leão a guardar uma das entradas da igreja de Santo Adalberto.
Um, mais que o outro, tomou a minha atenção, tinha a cabeça entre as patas e parecia estar entre a paciência e a resignação, a conter todo o impulso de seu coração selvagem na calma espera que lhe desafiassem. Guardava, assim julgando por um primeiro e fugaz olhar, um jeito algo tímido e triste e que podia inspirar assaltos de desafiadores, lado outro, ainda assim era um leão e mesmo que casmurro e quieto por aquele tempo, era capaz de rasgar ferozmente a presa na queda, fazer sua alma fugir com um urro e em sua magestade guardar sempre a entrada da igreja de Santo Adalberto, subitamente não era mais uma estátua de leão, era um leão.
Impossível não compará-los com os quadro gigantescos leões de bronze a guardar a Coluna Nelson, na Trafalgar Square, Londres.
A famosa praça londrina só se completa pela figura daquelas feras, postas com a cabeça no horizonte e a lançar olhares ameaçadores, mas a mim não metiam medo nenhum e nem nenhum outro sentimento, afinal é possível que lhes falte qualquer coisa como um pouco de introspecção e até beleza, mas também de humildade. Preferi a simplicidade dos leões polacos.
Na minha infância havia um leão, eu o vi muitas, sempre que íamos passear no parque onde havia um pequeno zôo cá na minha terra.
Ele se chamava Golias e tinha péssimo humor e cheiro e teria sido comprado pela prefeitura de algum circo que tava a falir. Dele, dizia-se e pela cara de mau eu nunca contestei, que procurava meios de atacar os tratadores e lançava-lhes olhares cheios de ambição. Pobre leão que é culpado de querer comer carne fresca ao invés dos piores quartos de boi que saem do matadouro municipal!
Foi lá bem encarcerado, a ver natureza por todo lado e tendo a jaula junto à ribanceira. Era triste com longos olhos negros que pareciam sempre ter acabado de chorar e não poderia ser diferente, se aceitasse feliz aquilo não seria um leão.
Assim, na humildade do que podia ser feito, ele urrava e urrava muito alto para avisar a todos que ainda estavam lá, que não os subestimassem, que merecia carne fresca de primeira classe e não as ossadas que lhe arranjavam, que cuidassem bem das trancas da sua jaula e, no caso dessa falhar, das da porta de casa!
Já no início desse ano voltei ao zôo mas... qual-o-quê! Nem mais leão e nem mais cabritinhos monteses, acabaram com aquilo tudo... Gestão nova na prefeitura, onde não acharam que valia manter os bichos. Quando lá estive tinha se tornado apenas um jardim e berçário de mudas, estranhamente rodeado por celas fantasmagóricas dos antigos moradores.
Fiquei a me perguntar onde tinha ido o leão... que teria sido feito dele, se afinal tinha se libertado, voltado à carreira circense ou (pobre bicho) sido sacrificado... o que quer que fosse, era certo que manteve sua estirpe até o fim e houve muita coesão nesse pensamento.
Como se lá da Cracóvia uma estátua tivesse ganhado vida para reafirmar em atitude toda a transmutação daquela poesia, percebi ainda na Praça Maior que onde quer que esteja ou por mais difícil que tudo pareça, um leão é sempre um leão e pior para aqueles que acharem que não!

Que Deus nos ajude.