quinta-feira, agosto 31, 2006

Deixa o verao pra mais tarde

Comprei um vinho italiano ontem que trazia no rotulo uma mulher nua, com formas muito redondas e que me fez lembrar aquelas pinturas renascentistas que quando vemos da primeira vez achamos feias, mas que depois mostram-se cheias de sentido de beleza! O vinho em si nao era bom, mas o rotulo... valeu a garrafa!
A beleza mora nas coisas bizarras, num rotulo de vinho barato, num sorriso desinteressado de um estranho, na manha subitamente ensolarada, na lembranca cheia de paciencia das pessoas que amamos e que nos amam, verdadeiramente.
"Ouvir na madrugada passos que se perdem sem memoria", cativar o proprio coracao com gentilezas habituais dos anonimos, admirar um passaro e uma torre de igreja, na ludica pretensao de o tempo pode mesmo passar mais rapido e enfim toda essa beleza possa servir para desmagnetizar a ansiedade de nao querer esperar.
Nesse meio tempo, em que a beleza vem em doses assustadoramente desmedidas e das formas mais inusitadas, passo apressadamente os dedos nas paginas do meus livros de cabeceira, tentando lembrar do que vem escrito neles, sobre a beleza que eu aprendi um dia a amar de todo coracao. Mas acho que os autores nao tomaram do mesmo vinho que eu e nem tampouco viram as torres de igreja, os passaros e os fins de tarde da Inglaterra.
Sob o ponto de vista que for, entretanto, nem tudo e' belo. Ha' terriveis poses de sensualidade nas estacoes do metro, e as casas vitorianas estao carregadas de uma tristeza tao intensa que ficam assustadoramente feias, sem contar o fato de que sao todas indenticas... Detalhes infimos que em nada prejudicam a primeira impressao.
Vi um mendigo dormindo no jardim do National Galery, que ficava rindo dos turistas que davam pao pros pombos. Sujeito de sorte: levantava a cabeca e tinha aos pes a Trafalgar Square e ao fundo um dourado Big Ben, sem duvida, o mais belo quarto do mundo, ainda que fugaz e um tanto frio, como toda ambicao humana.