terça-feira, março 31, 2009

A simular a vida com estranhos

Rose

Já faz quase um ano. Naquela altura não se tinha ainda sobre a cabeça o sol brilhante de Portugal, mas sim a espessa camada de nuvens que deixa Londres com seu aspecto soturno e introspectivo. No coração, no entanto, fazia sol. Pareceu bem uma vida de sacrifícios em segredo, no aguardo de uma felicidade que, afinal, não se verificou, ao menos não como fora esperada. Ter o que fazer, algo pelo que esperar e alguém para amar - eis o que os gregos consideravam ser a felicidade, se não acertaram, ao menos circundaram com muito jeito.

O início da primavera em Londres no ano passado foi muito mais uma continuação do inverno do que um primeiro sorriso a preparar o verão. Os dias não eram tão curtos, é verdade, mas perseverava a chuva ocasional e fria, o entardecer com vento, a necessidade das roupas pesadas - nada que eu deteste mais em termos de desconforto que estar de casaco todo o tempo. Ninguém se animava a ter esperanças sobre o verão: o do ano anterior tinha sido tão frustrante, tão molhado e ventoso, que nos olhares havia resignação com o tempo, toda gente a sonhar com casas no sul de Espanha ou no Algarve.

Entre os estudantes estrangeiros era sempre aquele estúpido "simular a vida com estranhos", como a celebração do natal, do ano novo ou do dia dos anos, ou as conversas sobre coisas pessoais, ou as viagens... não havia naquilo nada mais que uma simulação do que deveria ser algo muito mais significativo, profundo, relevante. Simulavam o amor, diziam tolices, mas não era para fazer rir, de facto, depois de alguma reflexão eram mesmo para chorar.

Abrir a caixa de pandora e dizer a eles que aquilo era um bocado sem sentido era o mesmo que dizer uma verdade inconveniente, aquela que toda gente conhece mas que ninguém quer admitir. Faltava-lhes coragem até para isso!

Não que todos os males dos relacionamentos fingidos sejam culpa dos estudantes intercambistas - eles, ao contrário de todos os outros praticantes, estão escusados com honras: só quem já enfrentou o além-mar sabe do que se trata, estar onde não há ninguém em quem confiar, ninguém com quem falar, nada que se conheça, lugar nenhum onde se possa ir. Do que a coragem é ganha quando se enfrenta esse mundo desconhecido e das suas paredes de fumo compor alicerces de uma vida nova, mesmo que provisória e assim tentar adaptar àquilo as coisas que são queridas: os colegas são rapidamente promovidos a amigos e com eles se gasta muitíssimo tempo a fazer turismo pela capital e a planejar festas, as viagens tornam-se marcos da existência, como uma forma de retirar um pouco da dureza da vida nova e ter algo a frente que tem potencial de dar alguma alegria, o curso assume uma função muito mais de entreter e desanuviar do que propriamente de aprender, enquanto outras preocupações tomam forma, nomeadamente, conseguir um trabalho a tempo parcial (o que na altura em que lá vivi fora mais fácil do que nos dias que correm, suponho eu).

De toda a palhaçada que gira em torno desses relacionamentos sociais, ou melhor, para ser mais politicamente correcto, de toda a superficialidade deles, transbordava vez ou outra uma gotinha de poesia, do que sentia o meu corpo todo se aquecer como uma lâmpada incandescente subitamente iluminada e alimentava-me daquilo com tanta gula que podia ser comparado ao faminto que, a estar a morrer a fome é presenteado com um banquete, sem a garantia, entretanto, de que vai voltar a comer.

Foi assim algumas vezes no Cittie of Yorke, o pub medieval que frequentava com meus colegas e que ficava próximo ao nosso college. Esse foi um dos únicos sítios poupados pelo grande fogo de 1666 que destruiu Londres, um acto que prova a infinita sabedoria e bondade de Deus, segundo os frequentadores mais antigos. Foi lá que ouvi Blake - um dos seus frequentadores célebres - ser declamado por um rapaz que segurava um copo de pint vazio, mas que trazia a voz cheia de paixão, foi lá que, entre sorrisos embaraçados, celebrou-se o final dos exames, foi no nosso Cittie que a vida deixou de parecer uma continuação sem sentido e fez-nos lembrar que éramos todos muito mais do que estranhos obrigados a conviver uns com os outros e destinados a uma inevitável separação - por aqueles breves instantes em que nos esquecíamos disso, das ambições e obrigações, fomos seres humanos a dividir um sorriso colectivo de satisfação, como se dividíssimos um mesmo coração venturoso e aberto, como se houvesse felicidade grega para toda gente e toda gente soubesse desses indizíveis segredos e pudesse percebê-los!

A primavera é outra, o país é outro, mas pouca coisa mudou, à excepção que cá em Coimbra não há pubs e muito menos, que Deus me perdoe, o nosso Cittie of Yorke!