Parte, e tu verás
Parte, e tu verás
Como as coisas que eram, não são mais
E o amor dos que te esperam
Parece ter ficado para trás
E tudo o que te deram
Se desfaz.
Parte, e tu verás
Como se quedam mudos os que ficam
Como se petrificam
Os adeuses que ficaram a te acenar no cais
E como momentos que passaram apenas
Perecem tempos imemoriais.
Parte, e tu verás
Como o que era real, resta impreciso
Como é preciso ir por onde vais
Com razão, sem razão, como é preciso
Que andes por onde estás.
Parte, e tu verás
Como insensivelmente esquecerás
Como a matéria de que é feito o tempo
Se esgarça, se dilui, se liquefaz
E qualquer novo sentimento
Te compraz
Repara como um novo sofrimento
Te dá paz
Repara como vem o esquecimento
E como o justificas
E como mentes insensivelmente
Porque és, porque estás
Ah, eterno limite do presente
Ah, corpo, cárcere, onde faz
0 amor que parte e sente
Saudade, e tenta, mas
Para viver, subitamente, mente
Que já não sabe mais
Vida, o presente; morte, o ausente –
Parte, e tu verás...
V. de M.
1961
in Poesia completa e prosa: "Poesias coligidas"
O coração não deve carregar consigo nenhum peso, não deve se deixar prender pelo que já passou, não se deve deixar envelhecer.
Uma vez o então presidente de um grande grupo de comunicação, em entrevista por ocasião de seus 99 anos ou algo do tipo, fez uma declaração que não pude nunca esquecer. O entrevistador perguntou o quanto ele amava a sua mulher, com quem era casado há pouco mais de um ano e o que sentia em relação aos outros amores que tinham passado. "Nunca houve nenhuma outra antes dela". É evidente que o que ele queria dizer é que o passado não significava nada, que ele não lhe ligava nenhuma, a primeira e a última namorada era a sua esposa, ela merecia e esperava essa dedicação.
É capaz que seja bem assim. Levar do passado, talvez os conhecimentos, nada mais que isso. Nem falsos cartões de natal, ou votos de feliz aniversário, aos que deixaram o convívio, tudo parece um pouco falso e sem muito sentido. Será que é sempre assim? Há amigos que perseveram no afecto e na fé? É bom que haja e é uma fortuna encontrá-los, mas a vida não é uma avenida de delícias, ao contrário, parece mais uma via rápida em que escolhas pragmáticas são precisas sempre mais rapidamente. Pobres dos amigos! Que interminável gradação de prioridades faz com que sejam empurrados em um vão de estupidez e auto-satisfação!
Sem pesares maiores, cabe o que se percebeu do brilho dos olhos deles, sempre a brilhar nos nossos de alguma forma, sem entretanto perpetuar sua ausência, sem desejá-los, sem citá-los, sem trazê-los para um convívio que não é parte deles. Passa-se algo como um velório sentimental, um sepultamento dessas esperanças e nem as saudades parecem verdadeiramente justas.
Mas os braços não lhes podem estar fechados, isso nunca. Há para eles um remanso de harmonia e bem-querer, um sorriso pronto e confiante, um desmemoriado gostar da presença, reencontrada na alegria simples do acaso que foi o primeiro encontro.
Deixar ir. Deixar ir. Para onde? Quem sabe... para outro sítio, de certeza, esse desconhecido lá onde os espectros não têm peso e nem importância e o novo senta-se à mesa no seu lugar de direito, sem ser perturbado ou calado por qualquer calafrio nosso.