terça-feira, fevereiro 17, 2009

O abrigo

Foi uma viagem de carro como outra qualquer. Saímos logo depois de tomar o pequeno almoço e pelas primeiras horas tivemos o noticiário matinal a nos entrar pelos ouvidos através do rádio para romper o silêncio.
As mãos no volante frio, a agarrar-lhe para as curvas, para lá, para cá, para lado nenhum talvez, apenas a ir... íamos os dois.
Um belo dia de sol, uma vista para não se esquecer, a experiência que talha na personalidade a sua forma e que vai ser evocada instintivamente por toda vida quando tivermos de nos comportar naquele tipo de situações outra vez.
Na volta, a imersão na sensação de gozo, a amizade boa e generosa, o riso fácil e a preciosa voz de se ouvir fizeram todas um outro momento da vida, na altura em que se acha que a bondade pode ser repartida só por teres tido a sorte (que cada vez mais parece maior) de ter tido com boa gente na tua vida até aquele momento.
Chegamos e separamo-nos, mas não era totalmente verdade. Houve participações recíprocas nos pensamentos alheios. Construiu-se uma boa via de "dar de si" que nos levava a lugares fantásticos, uma via de mão dupla, é bom fazer constar.
Foi aquela viagem, muito provavelmente, a constatação do abrigo que existia em cada um.
Impossível não associar com a emblemática conferência do doutor Campolina na Semana de Filosofia da minha universidade, quando, falando sobre aspectos da ética, ensinou que na primitiva origem grega, "ethos" significa refúgio, abrigo, ou lugar onde se está bem, acostumado. Para mim a ética, desde então, tomou uma feição mais íntima: onde encontramos a nós mesmos na hora de decidir, sem mais mentiras e fingimentos.
Qual um feroz animal em noite de tempestade que encontra um abrigo, encontrou-se paz naquele estado de cumplicidade enamorada. Como se fosse comum aquele tipo de identificação, nem espanto havia e por isso mesmo é que a alegria era sempre original, simples e viva.
Olho para a satisfação de viver com os olhos dela, não são propriamente meus esses olhos. Abraçam quem eu amo uns braços que em muito são os dela e se gargalha também num ritmo que é o da minha amiga. Só quem nos ama verdadeiramente é capaz de nos fazer melhores e nos dar o sentido, a excelência e a beleza que todo o resto das pessoas pode admirar e querer para si, mas que não lhes pertence.
Esse abrigo que é tão confortável, que sabe tão bem desfrutar, tão rico e luminoso, é feito por ela, além de todos os outros que primeiramente deram amor, ao invés de quererem ser amados. Esse abrigo é o que eu me tornei.