domingo, outubro 02, 2005

Corações a sangrar

Vou poupá-los de nomes, já que a cena por si mesma causa náuseas suficientes. Para o sumário conhecimento da cena: uma tesoura de escritório enterrada dez centímetros no lado esquerdo do peito de uma moça de vinte e um anos. A pele bastante clara e o sangue combinados eram de uma mórbida beleza, agora lembrada não tão bela quanto a fez pelo choque de cores, situação e significados. Tudo lido depois num laudo policial sobre o crime: um faxineiro apaixonado, louco de desejo e com o sangue pleno de álcool. Um bilhete datilografado trazia um falso recado do namorado da moça e tinha as letras em negrito com os dizeres: "Meu anjo, Nessa noite tenho que voltar para casa mais cedo a fim de ter com a minha mãe que sofreu um acidente, nada sério, não se preocupe, mas por isso não vou poder te apanhar no escritório. Lamento. Deixo-te beijinhos imensos e muito carinho deste que te adora de paixão. Emílio." Pelo recado a moça, que chamamos aqui Marta, não foi à porta do prédio esperar pelo namorado que também não estranhou o fato dela lá não estar, costumava ir para casa mais cedo quando ia trabalhar fora. Insistiu para levá-la a faculdade o faxineiro que bisbilhotara o bilhete. Negado o convite. Refeito com juras de amor. Negadas igualmente. Uma vez mais refeito acompanhado de súplicas, gritos e caretas de desespero. Erguia-se frente a moça um rosto de pele seca e enrugada, mais de cinqüenta invernos ajudaram a curtir os vincos fundos e feios do seu rosto, aprofundados na insegurança, na lascívia solitária, na imundície da própria solidão. Talvez a gentileza dela seja amor, pensara mais de uma vez. Como era diferente o seu dia quando ela dizia "bom dia" sorrindo para ele! E que agradável era o seu perfume! Não sabia bem qual o nome, mas era doce como das putas que ele pagava tão mal para livrar-se um pouco da angústia dos domingos à tarde, era doce mas não era vulgar como as meretrizes, trazia um traço de infância, um berço familiar, uma gentileza e um afeto tão originais que os quis para si como nada antes e faria tudo, absoltamente tudo! Ninguém lhe subjugaria daquele vez, não o ameaçariam, nem confundiriam o seu nome nem chama-lo-iam "meu bom senhor" por não sabê-lo. Chamo-me, consideremos aqui, Miguel, disse de si para consigo ao sentar-se em frente a um computador com o plano já traçado. Depois de iludi-la com o bilhete, iria levá-la a faculdade, mas não! A lição daquela noite era sobre ele, de como ele era especial e querido, de como deviam mesmo estar juntos e se amar, pois sem ao menos ter tido antes a chance de ouvi-lo, era já o amava, já era gentil e atenciosa, que se diria depois daquela noite especial entre os dois! Não havia como falhar. Na ira de ser novamente rejeitado, na angústia que sentiu por isso e os resultados da repulsa por si mesmo, estava decidido a não recuar, apanhou uma tesoura, a mesma que usou para recortar o bilhete da inteira folha de ofício em que o imprimira, e levantou-a com a mão direita, acima da cabeça, dando ordem de ir, ao que a moça, talvez por pânico, talvez por indignação frente aquele absurdo, não teve outra reação que não a de lhe dar um belo tapa no rosto, deixando pequenos ferimentos causados pelas unhas, na véspera pintadas, pela última vez de rosa claro, cor favorita do namorado para elas. Tesoura no peito de Marta, olhos esbugalhados de Miguel, coração a sangrar, de ambos.