Antes de ler o livro de Autran Dourado chamado "Uma vida em segredo" entabulava pensamentos de que tratava-se de um livro que discutiria alguma sorte de introspecção, ou então, alguma vida secreta! Algo interessante de se considerar ou emocionante de se ler se fosse também inteligente.
Li rapidamente o livro, um bom romance na verdade, mas nada do que esperava, talvez porque não houvesse nada oculto nele, nada do que eu imaginava e aí está o ponto.
O bom nome de batismo do romance, entretanto, ainda retumba no pensamento às vezes, principalmente quando algo pouco habitual revela as personalidades, aí sim desabrocham as vidas secretas.
Como foi da vez em que visitando um advogado no domingo, descobri que sua grande paixão era a horta do quintal: lá cultivava cebolinha, alface, pimentão, tomates, couve entre outras hortaliças. Tudo muito bem cuidado. Perguntei, talvez para brincar, se não confiava nas alfaces que se vendem no supermerados ou feiras, pelos agrotóxicos que são usados, e ele disse que também ele usava alguns! Gostava da horta porque lembrava-lhe o pai lavrador e enfim por amor à terra.
Questiono-me se não é assim que vivem as nossas sombras, a sonhar que podemos fazer o que por uma razão ou outra estamos impedidos, no todo ou em parte, de fazer. Talvez a sombra desse advogado nas varas criminais não acompanhasse verdadeiramente a leitura atenta dos autos de algum processo, ou as vociferações de defesa em que se clamava a piedade pessoal do magistrado, sua consideração pelo gênero humano e por fim ao próprio Deus. Talvez essa sombra estive a sonhar em desprender-se daqueles gestos para, disfarçadamente, imitar na sua expressão na parede ou no canto do corredor, alguém com uma enxada, a limpar em volta das alfaces vermes ou outras pragas. Talvez as sombras estejam secretamente ansiando pela revelação de uma vida em segredo.
Fato não questionável, entretanto, é o de que esse advogado adora defender acusados de crimes e talvez essa custosa ocupação seja recompensada nas horas de relaxamento na horta. As sombras aguardam sem muita ansiedade.
Outra vida secreta é a dos adúlteros, essa danosa à sociedade, na medida em que a promessa de fidelidade é descumprida, mas foquemos nos sentimentos verdadeiros do adúltero: desejo por outra mulher, prazer de estar com ela ou a aventura de parecer que não tem responsabilidades. Tudo isso é sonhado pela sombra dele ao entrar no quarto de casa e dizer "boa noite" à esposa acordada à espera. Talvez se sua mulher conseguisse desviar os olhos de cólera da camisa amaçada para a sombra fosca na parede conseguisse perceber mais evidências do que suspeita como atividades extralaborativas do marido. Mas as sombras não são percebidas por sentimentos violentos, temos aí então outra característica delas: para lê-las é preciso não levar nada muito a sério, as vidas em segredo não gostam dessa seriedade dos donos de sombra!
Talvez se houvesse qualquer coisa de sombra na "uma vida em segredo" o romance poderia me ter impressionado mais. Nos segredos, nas sombras e nos sonhos, há coisas insuspeitas, surpreendentemente bem guardadas nessas palavras imaginadas, abstrações do mundo dos donos de sombra. Mas, talvez por essa mesma essência, dificilmente nossas sombras revelam-se ou revelam-nos, silenciosamente sonham por nós.