domingo, outubro 02, 2005

Lança cheia de tripas

Li um poema que fazia uma metáfora com dar-se conta da paixão e ter na barriga uma lança que, ao atravessar o corpo, tinha do outro lado a ponta cheia de tripas. Que violência, pensei comigo. Interpretei como que a constatação da morte certa, saber-se atravessado pela lança e saber-se apaixonado era o mesmo que ver a realidade: não havia muito o que fazer.
É absurdo, quando se está apaixonado, pensar que o resto do mundo possa não estar, não viver sob aquele estado, porque não racionalizado em fato e conseqüências, é bastante bom haver alguém que redima de tudo e que simbolize as áureas esperanças. Gabolices para desprender sorrisos, beijos demorados, apertados abraços de despedida, como isso dói! O poema me explicou: é uma lança varada de tripas. Mas não se morre repentinamente, é um processo gradual.
O nome de mulher costuma viajar pelos pensamentos, e as sílabas cadenciadas tornam-se notas de todas as músicas e mesmo sendo constantemente repetidas, repetidas ao infinito, não há monotonia. Nessa harmonia, pensar em encontrá-la é todo o conforto e é provável que aquele agradável cheiro de ar úmido antes da chuva fique em volta. Mil idéias para fazê-la sorrir, e dois mil sorrisos seus contidos para não deixá-la tão confiante! O que é dado sem que se dê algo em troca, sabe-se bem, não tem valor!
Falar de amor sem tentar dar a ela a angústia das suas conclusões: há um céu aberto para os nossos olhares, um céu de parque a nos testemunhar. E assim, entre braços e abraços, entre beijos e planos impossíveis, entre súbitas afinidades tolas que ganham a dimensão do predestinado e do destino traçado por Deus onipotente, bem, justamente ali tem-se uma lança a varar o corpo, mas não se tem noção dela, isso acontece depois. Nem por isso condeno uma coisa ou outra... Para julgar e condenar temos juízes e solteironas desocupadas. Limito-me ao drama do momento: acho que não há maneira mais plena para se saber da própria morte.
Olhos vermelhos, chorando de felicidade numa madrugada em segredo, quantas vozes interiores não acusaram de ir por um caminho inevitável e insensato? Talvez a tristeza grande seja desacreditar a paixão ao passo que se sabe dominado dela, esse anti-Cristo do amor é mesmo mau e finca seus punhais sem dó, apunhalando pela frente, qual um amigo de verdade. Mas para ter a lança cheia das suas próprias tripas, é preciso ir além, é preciso ir além da dor, é preciso confessar os pensamentos e entre rangidas de dentes, punhos cerrados e beijos enlouquecidos no reencontro, brilhe firme a certeza de não haver morte melhor e que vida seguinte nenhuma valeria a negação daquilo.