Desaprendi a ler daquele nosso jeito antigo. Fui apanhado pelos cabelos por um índio escalpeador, cortou-me essa capacidade. Agora leio literalidades. Prefiro não tomar sustos. Aos poucos vou me tornando um ridículo burguês, talvez seja isso mesmo.
Vamos partir em breve para um destino simples? Talvez vendam passagens pra esse lugar, mas não me refiro a nenhum entorpecente ou veneno... sem mormidez hoje, sem dramas simples. Eu gosto é do gasto.
Duas paralíticas vieram me pedir dinheiro para seu orfanato, perguntei se aceitavam amor, elas se ofenderam, achavam que eu estava debochando com alguma insinuação, mas na verdade eu estava na dúvida se aceitavam amor, porque os cartões de crédito, de todos os tipos, aceitavam. Claro que não daria o meu amor a elas, não tenho para dar, perguntei por curiosidade econômico-sentimental.
Tenho curiosidade, eis o meu mal. Curto imenso os limites das curvas, quando o carro vai capotar? Haverá sobreviventes? Continuará o carro em condições de funcionar bem depois? É impossível saber... essas curvas variam muito! Viva a geografia das nossas estradas que oferecem sempre curvas imprevisíveis. Descubro o corpo de seu cobertor e dou risadas inconvenientes, mas nunca a ponto de constranger... disso não gosto. Basta de ser curioso.
Bom mesmo seria não imaginar o amanhã, viver na realidade dos bichos, bom mesmo seria não ter tanto ideal, bom mesmo seria não ser escravo da paixão de quem sabe um dia vir a ser... sei lá o quê! E ter! Ter muito dessas coisas inúteis. E ter um amor também! Claro, um bem importante.
Será que ambicionar o amor assim é ser materialista? Será que uma moral reconstruída de um cristianismo burguês pode me livrar de ser tão tristemente tolo na conduta social? Será que ela me entende mesmo tão bem a ponto de amar? Meu Deus, amar! Que verbo desconjurado do que devia mesmo ser!
Amo mesmo é o verbo contemplar. Contemplo. Dentro de mim calo tudo. Sim, não digo, não vou dizer, não digo mesmo. Curto é calar. Sorrir e calar. Embriagar em silêncio, ver triunfar uma inércia boa que é um ensaio tosco do que será a inércia do meu cadáver por bastante tempo a apodrecer sem reação, abaixo duma lápide com gentilezas dos meus entes queridos escritas, mas deixemos desses pensamentos mórbidos que não os quero hoje.
Hoje quero uma tarde quente e uma cerveja, quero falar com os meus amigos queridos, quero sorrir um tanto grande antes de desmaiar chorando! E vinho, meu Deus, muito vinho para todos! Seria bom ser daqueles vinhos caseiros que se toma no Paraná! Quero amanhecer sem que o dia amanheça comigo. E antes dessa quase manhã, na madrugadinha prestes a ceder, ter certezas de que vai amanhecer para mim, afinal.
Se as moças paralíticas aceitassem uma taça de vinho e soubessem dessas coisas, talvez não ficassem tão ofendidas. Embora eu saiba que seu sorriso me deixaria muito mais triste, é melhor construí-los que dividir minha miséria... Uma miséria que dividida, apenas cresce.